segunda-feira, 27 de julho de 2009

Questão fundiária e quilombolas: sobre dívidas históricas e políticas de reconhecimento

Prezad@s,

Desta vez utilizo o espaço do blog para um pequeno experimentalismo textual. Dentre minhas obrigações e compromissos profissionais assumi a composição de um texto no campo da chamada "divulgação científica", assim como da "batalha das idéias", sobre a questão quilombola. Visando testar o argumento diante dos olhares sempre argutos dos leitores deste espaço, resolvi lançá-lo aqui antecipadamente.. embora reforce que ele será divulgado em publicação oficial em breve.

Até lá aguardo o generoso retorno crítico de sempre. Chegando em tempo pretendo incorporar as críticas e sugestões certamente para a versão "final".



Questão fundiária e quilombolas: sobre dívidas históricas e políticas de reconhecimento


George Gomes Coutinho

Tornar-se-ia tão enfadonho quanto repetitivo trazer ao espaço público elementos acerca do problema fundiário brasileiro na medida em que são reconhecidos e amplamente divulgados os elementos factuais que constituem o nosso Estado-Nacional. De fato, assim seria se não houvesse um persistente senso comum político e midiático que invariavelmente esforça-se para criminalizar os movimentos sociais do campo em prol do direito sagrado à “propriedade privada”, clausula pétrea em sociedades com fundamentos constitucionais liberais.

Primeiramente cabe dizer que a terra enquanto meio de produção, no Brasil, jamais passou por um processo fático macro-estrutural de reforma agrária. Em verdade seu formato latifundiário, vide as infames Capitanias de outrora, tornou-se um sustentáculo do poder que gerou os potentados locais que se concentrou nas franjas do poder, tanto no Império, quanto notadamente na República Velha e atravessa as décadas chegando ao Brasil contemporâneo. A obra de Vitor Nunes Leal, “Coronelismo, Enxada e Voto” (Editora Alfa e Ômega) é somente um dos relatos mais competentes desta problemática.

Pela sua capacidade de arregimentar recursos simbólicos, econômicos, privados e estatais, e por manterem uma das bancadas tão corporativas e longevas no legislativo nacional, os ruralistas enquanto grupo de pressão, realizam intervenções públicas ou representações jurídicas que constrangem os já parcos avanços na questão fundiária nacional. Todavia, qual não foi a minha surpresa, quando ainda no mês de fevereiro último, li em um jornal de circulação nacional que um destes grupos ia ao Superior Tribunal Federal representar contrariamente ao processo de reconhecimento e titulação dos territórios das comunidades quilombolas, passível mediante a lei 4.887 de 2003, regulamentada pala Instrução Normativa 49 de 19 de setembro de 2009. O argumento, que constava no referido jornal, alardeava que a titulação das comunidades sobre a propriedade transcorreria com facilidade. Penso que o argumento certamente seja construído por quem não conheça o trâmite para a titulação ou por quem não compreenda o trâmite. Ou simplesmente trata-se de exercício de má fé pois o processo pode ser adjetivado de qualquer forma. Só não me parece ser merecedor do adjetivo “fácil”.

A elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, documento fundamental neste processo, segue trâmites invariavelmente lentos, ricos em detalhes etnográficos, na estrutura insuficiente do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), onde há parcos recursos humanos para atender as demandas de um território nacional vasto como o do Brasil. Entram como variáveis, dentre outras: o autoreconhecimento (tarefa nem sempre viável dado o espraiamento de elementos religiosos forâneos nestas comunidades), a associação comunitária, a titulação enquanto quilombolas conferida pela Fundação Palmares em Brasília, a etnografia realizada por um etnógrafo credenciado pelo INCRA, os caminhos jurídicos e processuais de idas e vindas, etc.. Por tudo isto cabe a dúvida se o que se encontra no preâmbulo da Constituição Nacional de 1988, que ano passado completou 20 anos de existência, a prevalência dos direitos sociais sobre os direitos estritamente civis (individuais) faz de fato algum sentido prático. Todavia, poderia-se constituir todo tipo de crítica. Mas não que a titulação seja “fácil”.

Em verdade, a resposta dos movimentos sociais envolvidos com a questão fundiária e étnica para as modificações nos processos de titulação foi diversa. Dentre estas, levantadas pelas associações quilombolas e agrupamentos envolvidos na representação das comunidades tradicionais, está a maior burocratização do processo na medida que os remanescentes de quilombos, visto que a cultura é sempre dinâmica, possam ter sua auto-compreensão simplesmente apagada no longo trâmite dos processos. Resumidamente, na leitura dos movimentos sociais aí envolvidos, deu-se um passo para frente, onde delimita-se com ainda maior exatidão formal o que venha a ser uma comunidade remanescente de quilombo. Mas, optou-se por dar dois passos para trás ao complexificar demasiadamente a titulação de terras sem o incremento logístico que garanta a agilidade estatal para as demandas apresentadas. Isto sem contar na queixa pela opção top-down como diriam os americanos, no encaminhamento destas questões, ou em bom português, uma dinâmica encaminhada de cima para baixo, na medida em que houve parca mediação com os movimentos sociais.

Para ser ter uma noção quantitativa, estima-se que tenhamos pouco menos de 1300 comunidades reconhecidas pela Fundação Palmares, portanto auto-reconhecidas enquanto comunidades remanescentes de quilombos. Destas apenas 150 obtiveram também a titulação de suas terras, um número infinitamente menor das reconhecidas pela Fundação Palmares dentre tantas outras que ainda podem estar sem qualquer aparato técnico ou institucional , que permitam sua sustentabilidade em acordo com a convenção169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que prescreve acerca dos direitos dos povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário.

O que deve ficar claro, em um sentido progressista, é que práticas como as que permitam a titulação de terras para estas comunidades são enquadradas em uma concepção de Estado onde há saltos civilizatórios qualitativos. Em outras palavras, temos o que autores contemporâneos como o Axel Honneth ou Nancy Fraser chamam de “política de reconhecimento”, visto que o Estado, longe do agente individual abstrato liberal, traz para si a compreensão de que é preciso tratar desigualmente os desiguais. Ou que se trata de materializar os sujeitos em contraposição a uma noção de indivíduo que não encontra solo em qualquer apreensão fática.

Ainda, o Estado detém uma dívida simplesmente inviável de ser mensurada em termos monetários, na medida em que garantiu institucionalmente meios de perseguição e violência, então legítimas, naquele momento contra escravos em prol de seus senhores. A sociedade brasileira livre participou de maneira decisiva e usufruiu, direta e indiretamente, da mão de obra escrava negra e indígena. Devemos ter me mente o quanto de subversivo há na poderosa imagem dos negros “fugidos” que por uma questão pragmática necessitavam de um tipo de asilo simbólico que somente os quilombos, afastados geograficamente e ocultos simbolicamente do restante da sociedade, poderiam oferecer.

Finalizando, em cada momento em que o senso comum midiático ou mesmo os agrupamentos políticos movem-se criminalizando ou obstaculizando as políticas de reconhecimento, como as que permitem a titulação de territórios de remanescentes de quilombos, ou mesmo quando setores militares arrastam indefinidamente a complexa situação da comunidade da Marambaia (litoral do Estado do Rio), estamos retroagindo nos processos civilizatórios que indiquem a possibilidade real de que seja paga esta dívida histórica de nossa sociedade. Mesmo que seja para as gerações atuais e vindouras.

domingo, 19 de julho de 2009

CRACK. NEM PENSAR (?)

Fabrício Maciel
A propaganda atual contra o uso do crack, droga sinistra que tem matado rápido parte considerável da ralé brasileira, toma dimensões curiosas. Foi rápida a difusão desta droga e tem sido igualmente também seus efeitos. Já há um site e adesivos em carros de classe média. O crack está assustando. Chama a atenção da sociedade, já ameaçando todas as classes. Na ralé ele já é um problema de saúde pública, não enfrentado pelo Estado.
A chamada "Crack, nem pensar", sugere naturalmente que não devemos nem pensar em seu uso. Correto. Mas devíamos pensar em quem mais o usa. Por todas as cidades onde passei vi a ralé se matando nas "cracolândias". A droga já parece substituir a tradicional "pedra", onde os bebedores de cachaça se matavam antigamente e ainda se matam. A "pedra" agora é outra, pois este é o apelido mais comum do crack.
Uma espécie de lixo da cocaína e algo mais, o crack tem efeito cruel. Sua onda, dizem, é intensa e rápida, ou seja, uma espécie de viagem do inferno ao céu de ida e volta em poucos segundos. A sequencia é marcada pela busca incessante de mais, o que se traduz praticamente em prostituição e roubo. È uma droga suja, o que deve contribuir para seu estigma. É a cocaína da ralém, porém aditivada, como todos os problemas desta subclasse.
Estudos e políticas públicas de saúde e de classe são urgentes. Ao invés do slogan "nem pensar", acho que temos muito o que pensar e agir diante deste fenômeno. Ele é de todos nós, assim como todas as desgraças sociais que geralmente atribuímos apenas àqueles que "não pensaram". E agora, como sempre, as classes incluídas dizem: "nem pensar".

sexta-feira, 17 de julho de 2009







O “pobrismo” dos ambientalistas

Roberto Torres

Niklas Luhmann, o grande sociólogo alemão da segunda metade do século XX, trouxe no fim de sua carreira um prognóstico bastante incômodo para a consciência crítica ambiental de seus compatriotas, a pedra angular do orgulho moralizador da Alemanha enquanto vanguarda preservacionista no mundo. Luhmann, de modo sistemático em “Die Gesellschaft der Gesellschaft” e “Die Religion der Gesellschaft”, previu que, além dos limites ambientais, a sociedade moderna haveria que enfrentar no século XXI um outro problema estrutural incapaz de ser resolvido pela compreensão consolidada que esta sociedade moderna mundial tem sobre si mesma: o problema da exclusão crescente e duradoura de indivíduos que atravessa todos os sistemas da sociedade (economia, política, direito, sistema de ensino, família), exceto a religião.

Para Luhmann, esta exclusão intersistêmica cria uma “funesta integração negativa” da sociedade (mundial), por meio de uma convergência de status que funciona como uma espécie de espiral para baixo. Esta “integração negativa” é a “sombra da modernidade”, ou seja, aquilo que a auto-compreensão moderna deseja atribuir a um outro externo (ao “ ambiente” – Umwelt – como atraso pré-moderno) para não assumir como parte necessária de sua afirmação enquanto sociedade moderna. A sociedade moderna se representa como a sociedade da inclusão; a exclusão deve ser representada como algo que não e produzido por ela, como algo sobre o que a modernidade ainda não chegou. A projeção no passado se torna a operação básica da justificação ideológica. A semântica que produz a auto- compreensão da modernidade parte do pressuposto de que a modernidade funciona num ambiente de indivíduos que não provém de uma origem social que lhes atribua um status diferenciado capaz de fazer convergir uma dinâmica de exclusão de modo integrado por sistemas de funções diferenciados entre si. Assim a exclusão é sempre percebida como passageira no tempo e restrita a um ou outro sistema funcional. Sorte no jogo, azar no amor.......

O aviso de Luhmann de que o problema ambiental poderia não ser o maior impasse no futuro da sociedade moderna parece não ter nenhum eco entre os ambientalistas que desejam ensinar os povos da Amazônia a conservar a floresta recuperando a “vocação indígena” dos “povos nativos” ou adaptá-la para reafirmar as virtudes da família camponesa pobre e feliz, destinada a conciliar o passado idílico de uma vida plena pré-capitalista com os desígnios da consciência crítica ambiental. Estes arautos da modernização ambiental desejam, como disse o ex- Ministro Mangabeira Unger, que a floresta seja o jardim onde a humanidade possa se reabilitar dos dissabores da Historia. Imaginam camponeses convictos em rejeitar o consumo e a “ vida falsa” do mundo urbano,fora do mercado e da busca por produtividade e eficiência econômica. A vanguarda que busca redimir o mundo da destruição capitalista sonha com um bom selvagem civilizado pela ecologia como estilo e horizonte de vida para os 25 milhões de brasileiros da Amazônia.

Os que desejam progresso econômico, aumento da renda e os confortos de uma vida de classe media são vistos como os pequeno-burgueses que reproduzem cegamente as ambições materiais responsáveis por destruir o mundo. Enquanto isso os ativistas da classe media internacionalizada se percebem como os portadores da mensagem para salvar o mundo. Acontece que o Brasil de Lula e de sua base social deslumbrada com a possibilidade de levar uma vida de classe media seriam por demais atrasados para atender ao chamado da consciência critica ambiental. Os ativistas não entendem porque o “pobrismo” não seduz o Brasil de Lula como proposta de vida feliz para preservar a Amazônia. Não entendem a recusa de brasileiros em abrir mão dos “dissabores trazidos pela prosperidade moderna” em nome do que, para os ambientalistas, seria a grande questão do mundo. Não entendem porque esses pobres, ao invés de buscarem conservar o mundo, inclusive sua posição fora dele, querem levar uma vida parecida com a dos que se empenham para salvar o planeta.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

XIV Congresso Brasileiro de Sociologia

Prezad@s,

Venho avisar que a programação do XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, a famosa SBS-2009 Rio, está no ar. A novidade de alto nível é a disponibilização antecipadamente dos papers que lá serão apresentados.

Como é praxe no evento, se não me falha a memória da última edição em 2007 em Recife (UFPE), está mantida a diversidade da produção das ciências sociais, e não só da sociologia. Em uma olhadela rápida os colegas poderão encontrar trabalhos sobre a região Norte Fluminense (Quissamã, Lagoa de Cima), o que denuncia o resultado da formação de cientistas sociais na UENF. Incomodamente para alguns a região é objeto de análise muito mais frequente após a instalação do CCH em terras goytacá.

Igualmente pude perceber a predominância de algo que Ulrich Beck chamou de "nacionalismo metodológico", ou alguma dificuldade na hora de lidar com elementos em outras escalas de análise que não sejam as "locais-nacionais". A escala transnacional é ainda periférica. Ou mesmo há a prevalência de estudos de caso localíssimos. Mas, não se apeguem a isso.. são observações causadas por um olhar já viciado. E tampouco trata-se de uma crítica. É, antes, uma constatação.

De toda forma, para aqueles que se interessam pelo que as ciências sociais contemporâneas, em seus estudantes e profissionais, andam pensando em solo nacional temos uma amostra muito significativa aqui: http://www.sbs2009.sbsociologia.com.br/

domingo, 12 de julho de 2009

Virada Cultural Solidária em Campos RJ

Prezad@s,

Tomando emprestado o vídeo no site dos colegas urgentistas eu venho divulgar a "Virada Cultural Solidária" de Campos dos Goytacazes. Não se trata exatamente de um evento com 24 horas de duração, como estamos acostumados a ver nas "Viradas Culturais", mas, certamente trata-se de uma novidade. Primeiramente a motivação para o evento é mais do que nobre. Luiz Ribeiro, líder da banda campista "Avyadores do Brasil", invariavelmente conhecida pelos fãs do gênero em Campos e região, encontra-se em estado delicado de saúde. Portanto o que for arrecadado será revertido em prol da recuperação de Luiz.

Outro ponto que faz esta virada cultural ser oportuna: hoje é o dia internacional do rock. Certamente, como aqui em Campos, teremos outras comemorações ao redor desta expressão da música moderna e popular por todo o mundo.

Por fim, para os curiosos e todos aqueles que pensam sobre a dinâmica da cultura, vale muito a pena conhecer as pessoas que há muito atuam como divulgadores desta faceta da música popular em terras Goytacá. O rock provavelmente se tornou um dos maiores exemplos de instituições modernas que se tornam "amalgamadas" com outras expressões culturais particulares. Nascido nos países centrais, particularmente moldado nos países de lingua inglesa, por sua estrutura relativamente simples, este tipo de música tornou-se afeito às particularidades locais tanto em termos estético-expressivos quanto emprestou seu vigor para narrar as misérias autóctones. Particularmente no Brasil o rock se mistura com o forró, gera o "samba-rock", lustra e cospe no status quo.. e em Campos há igualmente suas especificidades. Até hoje considero interessante o número de jovens de classe baixíssima, vizinhos dos "subcidadãos", que aderiram às facetas mais "extremas" do gênero (death metal, grindcore, black metal e adjacências). Da mesma forma que em algum momento o blues eletrificado tornou-se parte da "cultura legítima" servindo como adorno cultural por parte de uma elite econômica em busca de hegemonia.

Assim, por curiosidade etnográfica, pela demonstração de solidariedade ou mesmo pelo mais simples e genuino desejo de ouvir a tríade guitarra-baixo-bateria, ora, vale muito a pena ir hoje no Shopping Estrada.




Domingo (12/07) a partir das 15h.*

Segunda-feira, a partir das 20h.
Local: Shopping Estrada


Blog IN Rock, Blues, MPB, Reggae, Teatro, Poesia & Baratos Afins
Homenagem ao Avyador do Rock Luizz Ribeiro

Maratona musical com a participação dos músicos:
Lolô, Cris Dalana, França, Álvaro Manhães, Ângelo Nani, Bia Reis, Nelsinho Meméia (Blues Band Vidro), Reubes Pess Band, Evolução das Espécie, Adriana Medeiros, Grupo de teatro Nós na Rua (São João da Barra), Lene Moraes, Renato Arpoador, Leo Navarro, Dalton Freire, Artur Gomes, Fernando Guru, Harlem Pinheiro, Matheus Nicolau, Betinho Assad, Tribalion, Wellington Cordeiro, Adriano Lopes, entre outros.

* Informações e vídeo descaradamente retirados do blog dos camaradas urgentistas: http://urgente.blogspot.com/

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A "burrocracia" ataca as Ciências Sociais


O momento é bastante oportuno e interessante para discutir limites e potencialidades das corporações de ofício, posto que recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu sentença contrária aos mesmos pleitos das corporações de ofício dos jornalistas.

Não há possibilidade de ser sério o livro sobre formação do Estado brasileiro e constituição da identidade nacional que não mencione a importância exercida pelas corporações dos bacharéis em Direito, Medicina e Engenharia. Da mesma forma, e por conseqüência mesmo, também não há outro meio de versar sobre o estágio atual da Educação Superior no Brasil negligenciando as influências das corporações nas instituições reguladoras do Ensino Superior (MEC, CNE, INEP).

Recordo-me de um debate com colegas de profissão, ocorrido em 2004, acerca do conceito de “necessidade social” para a abertura de novos cursos ou vagas no Ensino Superior. Diante da exponencial expansão dos cursos de Ensino Superior, muitas corporações lançaram-se em empreitada contrária a abertura de novas vagas nas IES baseando seus discursos na defesa da qualidade do ensino. Posto que muitas corporações já exerciam controle das reservas de mercado por meio das provas (OAB, principalmente), foi interessante constatar essa nova engenharia montada para se protegerem da concorrência. O conceito de “necessidade social” era uma forma de reserva de mercado inovadora, pois as IES que pretendessem abrir novos cursos (ou simplesmente novas vagas em cursos já existentes) deveriam antes comprovar que a região necessitaria de tais vagas ou cursos. Para operacionalizar tal conceito, inventaram uma esdrúxula fórmula que relacionava o número de vagas existentes no município e o número de habitantes. Construíram um seguinte raciocínio: se muitas vagas, baixa qualidade. Esqueceram-se os defensores da qualidade do ensino de que o número de vagas oferecidas em um determinado município poderia ser oriundo de péssimas IES, portanto, uma IES com boa avaliação não poderia entrar no mercado daquele município com muitas vagas oferecidas por IES com avaliações ruins. Dito de outra: o fato de existir uma relação habitantes/vagas alta não significava que as vagas eram de qualidade. Portanto, no intuito de “proteger” a qualidade, propuseram um péssimo critério que poderia, se implementado, piorar e muito a situação. Por esse conceito, dificilmente a UERJ conseguiria abrir um curso de Direito em Campos, por exemplo.

A tal “necessidade social” é apenas um exemplo da intromissão das corporações de ofício na Educação Superior. Existem muitos outros, tais como o engessamento das grades curriculares e exigência de número mínimo de horas para cada disciplina. Intromissões que já seriam discutíveis caso o Estado as fizessem, porém, quem as produz não é exatamente o Governo ou Parlamento democraticamente eleito, mas sim instituições privadas onde nem o Estado nem a Sociedade possuem qualquer controle, posto que as corporações gozam de quase absoluta liberdade de constituição e formação. Daí surge o pseudo-paradoxo de que maior controle/intromissão significa maior atuação do Estado na Educação Superior. Como exposto, muito provável o oposto, já que os Conselhos são aparelhados pelas corporações de ofício.

Ainda sobre as ingerências das corporações de ofício nos cursos de Ensino Superior e nas reservas da atividade profissional propriamente dita, e aqui me refiro ao exercício profissional no mercado de trabalho, surpreendo-me com uma movimentação audaciosa da Federação Nacional dos Sociólogos (FNS), qual seja, de tomar as mesmas ações das corporações dos jornalistas já recusadas no STF, só que com uma inovação: pretendem ao mesmo tempo impor ingerências tanto no mercado de trabalho quanto nos cursos superiores em Ciências Sociais. Em panos claros, os representantes dos sociólogos pleiteiam exclusividade nas atividades docentes nos cursos de graduação em Ciências Sociais. Pleito completamente desprovido de sentido lógico e que negligencia toda a formação das Ciências Sociais, o que me faz duvidar se os que representam a categoria e possuem o diploma já não constituem as próprias provas concretas que o diploma não garante qualidade alguma.

O mínimo de conhecimento sobre as Ciências Sociais já seria suficiente para constatar as características inter e multidisciplinares da área. Lembro-me de uma das primeiras conferências que assisti na ANPOCS do antropólogo Gilberto Velho, em 1999, que proferiu um discurso sobre a dificuldade de classificação de que áreas comporiam as Ciências Sociais, já que a História se dedicava aos mesmos temas que as três áreas habitualmente reconhecidas como Ciências Sociais (Antropologia, Ciência Política e Sociologia). Eu acrescentaria duas outras áreas: Economia e Psicologia, que em muitos casos guardam mais similaridades com a Ciência Política e Sociologia do que a Antropologia propriamente o faz. Isso sem falar na Filosofia que pode ser considerada a mãe de todas as Ciências, ainda mais no que se refere às Ciências Sociais. Correria o risco ainda de colocar na mesma situação das Disciplinas já citadas tanto a Literatura quanto a Comunicação Social.

O fato de discordar com várias abordagens metodológicas destas disciplinas não permite desprovê-las de sentido ontológico e até mesmo instrumental dentro da constituição do que seriam as Ciências Sociais. Afinal, não há curso sério em Ciências Sociais que exclua das suas grades curriculares essas Disciplinas.

Como se não bastassem os argumentos da constituição e formação das Ciências Sociais, acrescento ainda o fato de que a maior parte da formação do profissional da área se dá nos cursos de pós-graduação, posto que no Mestrado e no Doutorado que o aluno passa maior parte do tempo da sua formação (6 anos nestes e apenas 4 na Graduação). E não somente a maior parte do tempo de formação, como também a parte mais importante desta, ou se esqueceram os sindicalistas que existe hierarquia meritocrática na Academia? Quiçá investissem mais tempo no labor acadêmico os ajudassem a compreender as idiossincrasias da área e dos profissionais que pretendem representar.

Destarte, divulgo abaixo a carta do um coordenador da PUC-SP, Claudio Couto, contra o intento da Federação Nacional dos Sociólogos (FNS), publicado no Boletim da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Um libelo pela qualidade e liberdade da Universidade.


Vitor Peixoto






Sobre o requisito do diploma de graduação Ciências Sociais para a
docência em Ciência Política – carta de Cláudio Couto (PUC-SP)

O Boletim publica abaixo a carta que o colega Cláudio Couto, chefe do DCP da PUC-SP, encaminhou à diretoria da ABCP em resposta à carta da Federação Nacional dos Sociólogos (FNS), dirigida ao Reitor da PUC-SP, na qual lhe solicitou que o diploma de graduação em ciências sociais passe a ser exigido nos editais de seleção de professores para disciplinas do curso de graduação em ciências sociais. A FNS justifica essa demanda pelas dificuldades de acesso à carreira docente enfrentadas pelos graduados em ciências sociais, processos judiciais que têm provocado a anulação ou suspensão de processos seletivos e a qualidade do ensino, para a qual é necessário que o conhecimento científico do professor seja adequado à disciplina oferecida.

“Magnífico Sr. Reitor, Sra. Pró-Reitora de Graduação, Sra. Diretora da Faculdade de Ciências Sociais, Sra. Coordenadora do PEPG em Ciências Sociais e chefes de Departamento,

Escrevo-lhes motivado pela carta cuja cópia segue anexa, enviada pela Federação Nacional dos
Sociólogos ao magnífico reitor de nossa Universidade. Como providências cabíveis são solicitadas aos chefes de Departamento, creio que deva me manifestar. Nessa carta, o presidente da referida entidade requere que nossa Universidade restrinja a possibilidade da contratação de professores das áreas de Sociologia, Antropologia e Ciência Política àqueles graduados em cursos de Ciências Sociais, exclusivamente.

Alega que a razão para tal solicitação é o fato de que algumas universidades têm contratado
profissionais com formação em outras áreas do conhecimento, e que isto seria prejudicial à formação de estudantes que precisam cursar disciplinas das três áreas das ciências sociais acima mencionadas. Parece-me que tal solicitação é completamente descabida. Trata-se, para ser mais claro, de um verdadeiro despautério corporativista e, com o perdão do trocadilho, burrocrático.

Em primeiro lugar porque – felizmente – não existe qualquer exigência legal para que sejam contratados exclusivamente graduados em ciências sociais como professores que venham a ministrar disciplinas das três áreas das ciências sociais. Em segundo lugar porque a graduação em cursos que não sejam de ciências sociais não torna os profissionais necessariamente incompetentes na área de ciências sociais. Tal competência pode ser obtida pela atuação profissional e de pesquisa na área, posterior à obtenção da graduação.

Em terceiro lugar porque esse tipo de solicitação representa uma intromissão inaceitável em assuntos acadêmicos internos das Universidades, atentando contra a autonomia universitária num aspecto dos mais importantes: sua independência funcional para definir os critérios de mérito válidos para a seleção de quadros docentes. Se o esdrúxulo critério defendido pela Federação Nacional dos Sociólogos fosse adotado nas instituições de ensino superior brasileiras, não teriam podido atuar como professores de ciências sociais intelectuais notáveis como os que listo a seguir, apenas a título de exemplo:

• Emir Sader – ex-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS), atual Secretário do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), graduado em filosofia.
• Maria Manuela Carneiro da Cunha – ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), membro da Academia Brasileira de Ciências, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago, graduada em Matemática Pura.
• Wanderley Guilherme dos Santos – ex-presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), membro da Academia Brasileira de Ciências, premiado com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico na área de Ciências Sociais e Humanas, ganhador do Prêmio Vitor Nunes Leal para melhor livro no ano 2006 em Ciência Política, por anos principal liderança intelectual do IUPERJ (instituição de ponta na pesquisa e pós-graduação em Ciência Política e Sociologia), graduado em Filosofia.

Tendo isto tudo em vista, creio que devamos simplesmente desconsiderar por completo a carta
enviada a nossa Universidade por essa entidade, que nenhuma relevância tem nos debates travados pela comunidade de ciências sociais em suas principais associações: ANPOCS, ABA, SBS (Sociedade Brasileira de Sociologia) e ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política).

Atenciosamente,
Cláudio Gonçalves Couto
Chefe do Departamento de Política - PUC/SP”

terça-feira, 7 de julho de 2009

Nova Cult e pílulas conjunturais sobre a imprensa


Estamos vivendo um momento particularmente interessante na atual conjuntura no que tange uma instituição importantíssima para se avaliar a esfera pública. Ora, falo objetivamente da imprensa tradicional e sua profunda crise de legitimação.

Em sociedades centrais do capitalismo temos uma maior profusão de jornais e revistas, além de opções televisas e radiofônicas, que ao menos transmitem uma relativa sensação de “pluralidade” dentre as fontes expressivas, estéticas e normativas encontradas na sociedade. Podemos discutir a qualidade destas, se escapam de maneira efetiva daquilo que Fredric Jameson chama de “lógica cultural do capitalismo tardio”, com sua reprodução pré-reflexiva do niilismo moral, da apologia ao individualismo possessivo ou mesmo tão pura e simplesmente na recusa deliberada de discutir projetos societários. Afinal, como diria aquela a propaganda da famosa marca de tênis: “Just Do It”. Nestas circunstâncias, para que devemos discutir projetos de longo prazo?

Mas, a despeito das opções normativas rasas impostas, estamos vendo o declínio de uma forma específica de se produzir e circular as informações. O desaparecimento gradativo de jornais tradicionais nos países centrais é apenas um dos elementos mais espetaculares produzidos pelos incrementos tecnológicos nos últimos anos... E de súbito há um aumento exponencial e descentralizado na quantidade de bens simbólicos em circulação, o que faz com que na lógica sistêmica de regulação de mercado possam competir diferentes produtores de informação (amadores ou não). Evidente que, como em qualquer mercado onde há a escassez inerente de recursos, há “pontos na rede” mais aparelhados e outros menos. Mas, hoje mais do que nunca, dificilmente encontramos a viabilidade, em sociedades minimamente abertas, de uma “versão única dos fatos”. Acho pouco crível que mesmo o mais positivista dos jornalistas, com sua apologia de “narrar o ocorrido”, recuse afirmar que a narrativa, em si, é uma leitura possível, dentre outras tantas, sobre aquilo que Bourdieu afirmava ser “construído”. Não há o “fato”, há a narrativa sobre o fato se quisermos realizar uma inflexão hermenêutica. E, quer queiram ou não, este monopólio (ou o oligopólio) da produção de narrativas sobre os fatos morreu com a popularização dos computadores pessoais e as conseqüentes novas ferramentas de informação. Descontando as desproporções entre grandes corporações e os autores domésticos (como eu), não há versão sem contra-versão. Devemos é discutir o alcance real dos movimentos de contra-hegemonia (contra-versões), como já fiz em outro momento.

Nas sociedades periféricas não vislumbramos a pluralidade ou qualquer sinal de democratização das formas de comunicação em um primeiro momento. Com uma estrutura oligopolística bastante fechada de produção de informações em diferentes escalas (local, estadual e nacional), a imprensa brasileira constitui-se enquanto pequenos ou grandes impérios blindados, dependentes profundamente do dinheiro público e/ou simplesmente porta-voz daqueles que mais se beneficiam do erário. O chamado “quarto poder” deu suas inúmeras demonstrações da capacidade de criação de fatos políticos de toda ordem. Este mesmo “quarto poder”, afinal, participou há pouco das mais lamentáveis aventuras republicanas da história do Brasil. Ajudou a eleger e a depor Fernando Collor na nossa recentíssima Nova República. No momento de suspensão da normalidade institucional em 1964 foi adesista de primeira hora, objetivamente a grande imprensa, tripudiando em tom ufanista das instituições democráticas. O que revela o caráter anti-liberal e autoritário de parte de seus quadros. De lá para cá fez todas as chantagens que o leitor bem informado e minimamente culto pode analisar no cotidiano. Enquanto porta-voz onipresente de interesses inconfessáveis ajudou a aprofundar um dos elementos mais danosos e perversos dos nossos mitos de “origem”: o asco ao Estado. O Estado, enquanto pior dos mundos, paradoxalmente é guloseima a ser degustada com propagandas institucionais de toda ordem. Não é à toa que Wanderley Guilherme dos Santos (aqui) nos lembre o quão bárbaro e atrasado pode ser o “quarto poder”.

Por essas e outras considerei interessante e subversiva a resposta em forma de blog dada pela Petrobrás. Na ótica da ruptura com a produção unilateral da “verdade sobre os fatos” a Petrobrás participa diretamente desta possibilidade, em um ato eminentemente de cunho político, de que a imprensa e seus sacerdotes não mais detenham o monopólio da produção dos discursos sobre a sociedade. Tampouco tenha a autoridade discursiva inabalável sobre o real. Creio que finalmente, em uma ótica habermasiana, poderemos ver o triunfo do melhor argumento, algo que a maioria da imprensa esqueceu há tempos de como fazê-lo. O exercício de pluralidade discursiva pode nos levar, sim, a um renascimento da esfera pública onde a imprensa é obrigada a conviver com diferentes e incontroláveis influxos comunicativos. A imprensa morreu, viva a imprensa!

Dentre as possibilidades geradas pela descentralização da circulação de informação eu sinceramente espero que dois bastiões caiam juntos: o da péssima qualidade da produção analítica e textual da imprensa e o do corporativismo jornalístico. Afinal, para se produzir análises de fato relevantes, precisas, informativas e que contribuam com a saúde da esfera pública é necessário algo mais do que um diploma de comunicação social. Certamente não estou reivindicando a regressão de qualquer movimento da divisão social do trabalho, mas, que a formação destes produtores de informação forneça de fato instrumentais que permitam uma atuação reflexiva. Inclusive que se obedeçam a critérios de “qualificação” e não de diploma, em uma reserva de mercado tão cega quanto danosa. Afinal, como bem sabemos, os jornalistas não são os únicos interessados em escrever sobre a sociedade. E estes tem dado demonstrações cabais, salvo as raras e honrosas exceções de sempre, de que quando o fazem nem sempre realizam contribuições efetivas para as instituições ou para a qualidade da democracia.

Espero que a concorrência estimulada no mercado de bens simbólicos, a despeito dos chiliques, nos leve a um patamar de reflexividade não operado ainda. Seja ela de esquerda ou de direita. Afinal, neste campo da disputa no mercado de bens simbólicos, tem sido queixa constante de diferentes segmentos a baixa qualidade, o maniqueísmo de esquerda ou de direita, o faccionismo explícito (traduzido em pressupostos inegociáveis) e a recusa pela crítica dos elementos que constituem aquelas relações. Entre esquerda ou direita a recusa ao esclarecimento não produziu nada mais do que piorar a qualidade de nossa combalida esfera pública. Um lamentável papel, anti-iluminista, ainda não superado até o presente momento onde as expressões alternativas no espaço público somente engatinham.

Portanto não posso deixar de expressar meu entusiasmo com o último número da Revista Cult. Neste momento é a única revista, de periodicidade mensal, que por hábito invisto meus parcos caraminguás há um bom tempo. O número 136 da revista, que custa R$ 9,90 ainda encontrável nas bancas, prossegue em um esforço ainda sem par de divulgação e popularização do que a humanidade produz de mais elevado: a alta cultura. Usualmente o menu oferecido pela Cult é entremeado por literatura, cinema, poesia, artes plásticas, política, filosofia, boa música (popular ou erudita), sociologia e seus sempre informativos dossiês. Já foram capa da revista e objeto de diferentes dossiês: Goethe, Weber, Bourdieu, Hannah Arendt, dentre tantos outros e, desta vez, Jürgen Habermas.

Embora reconheça um certo domínio paulistano usual nas páginas da Cult em sua trajetória, este dossiê especialmente apresenta um painel com alguma diversidade geográfica, com intelectuais de diferentes pontos do sudeste e do sul do Brasil. Diria que faltas sentidas imediatamente foram as dos professores Marcelo Neves, Flavio Beno Siebeneichler e do casal Sérgio Paulo Rouanet e Bárbara Freitag Rouanet que, de maneira diversa, participam de maneira inegável do esforço de divulgação e/ou de interpretação do legado habermasiano entre nós.

Todavia neste dossiê nos oferecem um painel eficiente e, na medida do possível “acessível”, autores que não constituem necessariamente o establishment intelectual do momento como Luiz Bernardo Leite Araújo (UERJ), José Pedro Luchi (UFES), Delamar Volpato Dutra (UFSC), Jessé Souza (UFJF), dentre outros. Possivelmente a escolha destes autores se dê visando obter pontos de interpretação ainda não suficientemente assimilados e/ou divulgados. Ou mesmo como um tom de provocação e desafio aos leitores iniciados ou não no esforço habermasiano de interpretação da modernidade. De forma ou de outra o texto funciona ao apresentar “um pensador da razão pública” como apresenta a capa da revista.

Neste número, como é a tradição da Cult, certamente o leitor não terá a sua inteligência menosprezada. Em verdade é desafiador e corajoso que tenham optado por um autor usualmente tão conhecido nos meios acadêmicos e ainda tão pouco digerido. Mas, creio que Souza, conhecido dos campistas por sua passagem na UENF, nos apresente de maneira tão fulminante quanto desconcertante por qual via Habermas pode ser subversivamente apreendido na periferia: “Pensadores críticos, como Habermas, não devem ser usados apenas como meio de ‘distinção erudita’, como mero ‘adorno da inteligência’, como um fim em si, como é tão comum entre nós. Eles são uma ‘arma prática’ para se perceber nossa própria sociedade de outro modo, mais crítico e menos autoindulgente e superficial como nos acostumamos a nos perceber”. (Souza, Cult 136, 2009: p.62).

Retornando a um dos fios condutores deste ensaio, ora, que estes influxos reflexivos possam ter um retorno para a própria imprensa neste momento de crise de legitimação. Mas, até lá, que contemos com um oásis como a Cult.

domingo, 5 de julho de 2009

Honduras: um golpe que pode fazer diferença

Roberto Torres

Voltemos quatro ou cinco décadas o nosso olhar sobre a história da América Latina. Militares seqüestrando um presidente eleito num pequeno “quintal” da intervenção imperialista dos EUA; a Igreja Católica com sua vocação autoritária e arrogante vindo a público para legitimar o golpe com a desculpa de se preocupar com a vida das pessoas; a imprensa colonizada e golpista do Brasil doida para encontrar um porto seguro que aceite seu discurso de que este golpe não é mais condenável que o “populismo” de Hugo Chaves e sua influencia sobre o presidente deposto, já que ambos desprezam a “democracia”. Muitos ingredientes de fato nos levam ao passado, mas o fim da Guerra Fria e os contornos de uma nova atenção dos EUA para o sul do continente não. O golpe de Estado que afastou o presidente Manuel Zelaya do governo de Honduras nos oferece uma grande chance de observar como as relações políticas do continente atravessam mudanças significativas. Uma combinação contingente de eventos, impulsionada pela nova política externa dos EUA para o continente, faz com que este golpe possa ter um significado muito diferente para as relações políticas do continente do que, por exemplo, o golpe dos generais e empresários venezuelanos contra o presidente eleito Hugo Chaves, quando o governo americano apoiou a intervenção militar.

Pela primeira vez na História os EUA condenam um golpe militar no America Latina. Com isso fortalecem a postura da Organização dos Estados Americanos (OEA) e legitimam a resistência democrática dos hondurenhos que defendem a constituição e a democracia. À medida que a OEA se vê como caixa de ressonância de um discurso público internacional que também condena um golpe militar no continente, abrem-se possibilidades de que este tema permaneça de tal modo na ordem do dia, que a afirmação dos valores democráticos encontre um parâmetro de referencia capaz de balizar um consenso promissor. A condenação ao golpe, ao unir Obama e Hugo Chaves, promete expectativas recíprocas que buscam como ponto de partida a convergência em torno de um programa democrático que simbolicamente une os EUA e as democracias reformistas da América Latina. O “inimigo comum” funciona sempre como referencia eficaz para a produção de uma convergência. Quando a convergência demarca publicamente uma diferença entre os regimes políticos de países como Venezuela e Bolívia e o golpe militar hondurenho, ela funciona como um espaço de dês-estigmatização dos modelos alternativos de constitucionalidade democrática destes dois países e abre precedente, com a demarcação precisa do que é um regime não democrático, para a legitimação internacional em torno da variação das formas institucionais da democracia. Ao condenar a força, não se pode deixar de lembrar que a prática plebiscitária de um Hugo Chaves ou a reforma constitucional de Evo Morales são bem diferentes da truculência e da arrogância das elites golpistas militarizadas. Neste momento, há uma giganteca aglomeracao de hondurenhos marchando para o aeroporto da capital Tegucigalpa para receber o presidente Manuel Zelaia. Os militares cercam o aeroporto e dizem que nao aceitarão o pouso do avião que trará Zelaia. Os olhares da esfera pública internacional esta atentos para o desafio trazido pela atitude de usar a presenca nao violenta no espaco público como acao moral capaz de mobilizar constrangimentos ao uso despido da forca. A estrutura simbólica desta acao consiste em mostrar a arrogancia da forca, precipitando o uso contrário de uma forca resistente. "Eu peço a todos os trabalhadores do campo, das cidades, índios, jovens, amigos, que me acompanhem em meu retorno a Honduras. Não tragam armas. Pratiquem o que eu sempre preguei: a não-violência.", disse Zelaya ao convocar seus apoiadores. O interessante desta vez é que esta resistencia tem o aval da parca opiniao pública internacional. Durante todo o século XX, as inssurecoes democratizantes latino americanas eram fortemente deslegitimadas pela posicao político-ideológica do EUA. O caso de Honduras é uma experiencia interessante na medida em que a posicao americana se ve na contingencia de aceitar como legitima a manifestao dos hondurenhos que "eles também podem", como dizia um indigena em cartao (Obama, we also can!).