sexta-feira, 6 de junho de 2008

Tempos de Escuridão e a Cidade das Luzes

por Fabrício Maciel

A interpretação dominante na academia brasileira e mundial, refletindo o senso comum de nossa época, é que presenciamos uma era de fim da história em amplo sentido. Tanto politicamente, com o fim de grandes movimentos políticos contestatórios à ordem capitalista vigente, quanto moral e ideologicamente, com o fim de formas de pensamento contestatórias aos princípios da modernidade global que reproduzem e são reproduzidos pela ordem política. Este diagnóstico não está errado. O que me parece curioso e pretendo criticar neste contexto é a força de desistência que parece sondar a todos nós, cooptando até mesmo homens de fé, acadêmicos, políticos, ou alguma combinação entre estes, que aos poucos vão sucumbindo diante de um diagnóstico que subliminarmente impõe o raciocínio conservador de que o mundo não tem mais jeito.
Termos como complexidade, fluidez das relações, crise moral, crise histórica, fragmentação, novos desafios, etc, apresentam-se cada vez mais vagos, e tanto mais quanto aparecem juntos, falsamente articulados, em função de uma suposta interpretação da realidade mundial contemporânea, o que os torna mais obscurecedores do que esclarecedores. Diante de um parecer de tantas dificuldades e de um mundo supostamente mais fragmentado do que antes, aos poucos vamos desistindo de entender um mundo tão “complexo”.
Quero ressaltar que o que está por trás de tanta complexidade é algo muito simples: o fetiche da complexidade é fruto de uma era de escuridão. A escuridão intelectual é exatamente a dificuldade de precisar os motivos dos dilemas sociais contemporâneos. Tal escuridão reflete-se também na vontade política. O que vivenciamos hoje neste aspecto é uma era de acordos e não de conflitos. Não estou pregando nenhuma violência aqui. Costumamos confundir qualquer atrito com agressividade, algo bem típico de nosso imaginário conservador brasileiro, baseado em nossa identidade fantasiosa de conciliadores de opostos e habilidosos para a resolução de conflitos. Mas não se trata só de Brasil, neste caso. A era de acordos é mundial, como consegue perceber limitadamente a idéia de fim das utopias.
Em Campos, cidade tão orgulhosa de ser a terceira do país, se não me engano, a ter luz elétrica, parece que a obscuridade toma contornos pesados. Não é por acaso que se contenta com tais feitos históricos que não passam de fetiche vazio e, pior do que não servir para nada, são conservadores, pois tiram o foco dos problemas sociais que devem ser pensados. A dificuldade política enfrentada neste momento em Campos reflete um momento maior, ou seja, toda esta era de acordos que marca o mundo de forma mais intensa a cada dia que passa.
Tenho sentido, ao acompanhar os debates recentes no blog, principalmente em torno das entrevistas que realizamos, a ansiedade, muito justa aliás, por propostas concretas para o contexto político. Se é para propor, então vamos lá. Acredito, assumidamente iluminista, no sentido de jamais desistir da capacidade de interpretação do mundo e da força que isto pode exercer sobre a ação social, que propostas abstratas fazem parte de propostas concretas. Na verdade, são propostas mais profundamente concretas. As entrevistas de Caxinguelê e Sarmet deixam clara tal possibilidade. O tema da coerência de projetos e da transparência é comum. O que isso significa? Sem pessoas de fé, que acreditem em valores democráticos e universais, não temos nenhuma prática de coerência e transparência. Este tipo de gente é o que acredito ser, bem como os demais membros do blog.
A perda da fé, ou seja, a perda da intenção em acreditar na possibilidade de interpretação e articulação de qualquer sentido, algo fundamental para a prática política em qualquer contexto moderno, é exatamente o que se perde nos tempos de fim da história ou fim das utopias. O que proponho significa intervenção política prática e imediata. Isto por que quando pensamos corajosamente sobre a realidade social, sofremos de imediato um incômodo. A marca do pensamento crítico é a inquietação, é sentir embrulhar o estômago diante da realidade observada. Esta é a verdadeira marca do progresso, pois quando realmente nos incomodamos não conseguimos ficar parados.
Um último ponto é que sem a crença em alguma verdade não há avanço político algum. Aqui, o grande problema da Era de acordos é a sutil sugestão de que há várias verdades convivendo juntas, que é preciso espaço pra todas, etc. É difícil imaginar mito mais obscurecedor atualmente, forte aliado da pseudo-teoria de que o mundo é muito complexo. Isto é um pensamento esquizofrênico, pois não há verdade a não ser relacionalmente diante de algo considerado mentira. Assim, minha proposta é o retorno à crença na verdade iluminista universalista, sutilmente perdida em uma era que prega o convívio harmônico entre culturas sem compreender as dificuldades que isto acarreta. Ser universalista é sobretudo isso, compreender por que diferenças, ou seja, verdades inconciliáveis, não convivem harmonicamente.
Este é um texto político, diante da ansiedade de soluções vigente, exatamente por ser um texto sobre fé e verdade. Mas é preciso ficar claro a que verdade se remete aqui. Trata-se da verdade iluminista sobre a contestação, sobre o incomodo pessoal de quem não quer se iludir. Tal experiência é impossível sem a admissão de que o pensamento crítico é aquele que nunca está satisfeito, que por mais que reconheça os avanços do mundo jamais se contenta. Isto nada mais é do que o retorno às utopias.

7 comentários:

Vitor Menezes disse...

Rapaz, então deve ser por isso que eu perco tantas noites de sono... (rs). Abs!

Brand Arenari disse...

Belo texto Fabrício, não só pelas letras, mas sobretudo pelo valor emocional claramente detectável. Vê-se que o texto foi escrito com sangue. No seu texto destaca-se a assertiva que a fé é uma necessidade universal humana, o homem não vive sem transcendência. Parece que o projeto iluminista ruiu neste ponto, a fé na razão e as formas de ação religiosa que a partir disso surgiram (humanismo, socialismo etc.), não encantam mais as pessoas. Como diria Weber, só mesmo novos Profetas, com idéias muito novas para nos tirar desta escuridão.

Roberto Torres disse...

Brand, talvez novos profetas capazes de recuperar a capacidade de transcendência da própria razão. É interessante como Bourdieu concorda com Weber sobre a necessidade do carisma como antítese necessária da racionalidade de modo que esta nao se reduza à racionalidade instrumental.

bill disse...

Mas quem nos dirá que sua verdade é verdadeira? Você mesmo?

Fabrício Maciel disse...

Bil, um dos grandes insights weberianos é a idéia de que qualquer indivíduo ou grupo social necessita buscar sua auto-legitimação para que sua vida faça um mínimo de sentido. Toda auto-narrativa pessoal ou coletiva, e estas anda sempre juntas, sempre possui pretensão de verdade. Assim, temos várias verdades competindo o tempo inteiro nas relações sociais. NO entanto, não podemos ser relativistas e achar que elas convivem bem e que há lugar para todas. Esta é uma das principais distorções acerca do universalismo. A verdade, para aproveitar o trocadilho, é que sempre há verdades que ganham, ou seja, que prevalecem sobre outras, numa dinâmica relacional, como pus no texto. Não há conciliação neste aspecto. É assim que verdades acerca do mérito individual, por exemplo, prevalecem na sociedade ocidental gerando e mantendo desigualdades. A tarefa da sociologia crítica então é compreender, através da relação entre valores morais e seus suportes sociais (instituições, pessoas, estruturas materiais), por que algumas correntes de valores prevaleceram enquanto verdades e não outras.

bill disse...

Sua posição iluminista é bem-vinda, o problema é que ela tem que se julgar como bem intencionada. Se ela prevalece a tendência é a erupção de qualquer sistema totalitário. é claro que vc não quereria tanto, mas sempre precisamos de um etnocentrismo relativista para que possamos reafirmar nossas verdades em um espectro complexo delas, como um mecanismo de controle de nossas próprias paixões.

abraço.

Fabrício Maciel disse...

Interessante Bill, mas o que de melhor temos do iluminismo não é a parte que culminou em sistemas totalitários, mas sim a possibilidade, única do iluminismo, de uma crítica racional à própria razão, como em autores do perfil de Foucault ou Taylor. Grande abraço xará.