domingo, 7 de março de 2010

A miséria moral de ex-esquerdistas


por Emir Sader

Alguns sentem satisfação quando alguém que foi de esquerda salta o muro, muda de campo e se torna de direita – como se dissessem: “Eu sabia, você nunca me enganou”, etc., etc. Outros sentem tristeza, pelo triste espetáculo de quem joga fora, com os valores, sua própria dignidade – em troca de um emprego, de um reconhecimento, de um espaçozinho na televisão.

O certo é que nos acostumamos a que grande parte dos direitistas de hoje tenham sido de esquerda ontem. O caminho inverso é muito menos comum. A direita sabe recompensar os que aderem a seus ideais – e salários. A adesão à esquerda costuma ser pelo convencimento dos seus ideais.

O ex-esquerdista ataca com especial fúria a esquerda, como quem ataca a si mesmo, a seu próprio passado. Não apenas renega as idéias que nortearam – às vezes o melhor período da sua vida -, mas precisa mostrar, o tempo todo, à direita e a todos os seus poderes, que odeia de tal maneira a esquerda, que já nunca mais recairá naquele “veneno” que o tinha viciado. Que agora podem contar com ele, na primeira fila, para combater o que ele foi, com um empenho de quem “conheceu o monstro por dentro”, sabe seu efeito corrosivo e se mostra combatente extremista contra a esquerda.

Não discute as idéias que teve ou as que outros têm. Não basta. Senão seria tratar interpretações possíveis, às quais aderiu e já não adere. Não. Precisa chamar a atenção dos incautos sobre a dependência que geram a “dialética”, a “luta de classes”, a promessa de uma “sociedade de igualdade, sem classes e sem Estado”. Denunciar, denunciar qualquer indicio de que o vício pode voltar, que qualquer vacilação em relação a temas aparentemente ingênuos, banais, corriqueiros, como as políticas de cotas nas universidades, uma política habitacional, o apoio a um presidente legalmente eleito de um país, podem esconder o veneno da víbora do “socialismo”, do “totalitarismo”, do “stalinismo”.

Viraram pobres diabos, que vagam pelos espaços que os Marinhos, os Civitas, os Frias, os Mesquitas lhes emprestam, para exibir seu passado de pecado, de devassidão moral, agora superado pela conduta de vigilantes escoteiros da direita. A redação de jornais, revistas, rádios e televisões está cheia de ex-trotskistas, de ex-comunistas, de ex-socialistas, de ex-esquerdistas arrependidos, usufruindo de espaços e salários, mostrando reiteradamente seu arrependimento, em um espetáculo moral deprimente.

Aderem à direita com a fúria dos desesperados, dos que defendem teses mais que nunca superadas, derrotadas, e daí o desespero. Atacam o governo Lula, o PT, como se fossem a reencarnação do bolchevismo, descobrem em cada ação estatal o “totalitarismo”, em cada política social a “mão corruptora do Estado”, do “chavismo”, do “populismo”.

Vagam, de entrevista a artigo, de blog à mesa redonda, expiando seu passado, aderidos com o mesmo ímpeto que um dia tiveram para atacar o capitalismo, agora para defender a “democracia” contra os seus detratores. Escrevem livros de denúncia, com suposto tempero acadêmico, em editoras de direita, gritam aos quatro ventos que o “perigo comunista” – sem o qual não seriam nada – está vivo, escondido detrás do PAC, do Minha casa, minha vida, da Conferência Nacional de Comunicação, da Dilma – “uma vez terrorista, sempre terrorista”.

Merecem nosso desprezo, nem sequer nossa comiseração, porque sabem o que fazem – e os salários no fim do mês não nos deixam mentir, alimentam suas mentiras – e ganham com isso. Saíram das bibliotecas, das salas de aula, das manifestações e panfletagens, para espaços na mídia, para abraços da direita, de empresários, de próceres da ditadura.

Vagam como almas penadas em órgãos de imprensa que se esfarelam, que vivem seus últimos sopros de vida, com os quais serão enterrados, sem pena, nem glória, esquecidos como serviçais do poder, a que foram reduzidos por sua subserviência aos que crêem que ainda mandam e seguirão mandado no mundo contra o qual, um dia, se rebelaram e pelo que agora pagam rastejando junto ao que de pior possui uma elite decadente e em vésperas de ser derrotada por muito tempo. Morrerão com ela, destino que escolheram em troca de pequenas glórias efêmeras e de uns tostões furados pela sua miséria moral. O povo nem sabe que existiram, embora participe ativamente do seu enterro.

3 comentários:

Paulo Andrade disse...

Perante a grandes redes de comunicações do senhor Edir e Jonny Saad (bandeirantes e suas relações umbilicais com Oi/iG) e seus contratos estatais (CAIXA , playTV e BR Petrobras - entre inúmeros - na band e record), não entendo a questão deste blog em relação a "grande imprensa". Ademais, sempre é interessante garantir tetas na Universidade publicíssima, bolsas e empregos mediante "concursos publicíssimos". Talvez seria interessante publicar este comentário e dialogar sobre relações amistosas entre "compadres" na academia publicíssima brasileira, além , é claro, da atuação dos veículos de comunicação citados.
Paulo Andrade.

Roberto Torres disse...

Caro Paulo Andrade, o que voce quis ressaltar sao relacoes de favorecimento entre o Estado e certa parte da mídia? Também relacoes de favorecimento na academia?

Sobre "nossa questao" com grande impresa. Antes de mais nada, é preciso saber que nao se trata de uma questao nossa, mas sim de uma posicao de setores da sociedade em defesa da democracia. É muito simples: nao há democracia sem pluralismo nos meios de comunicacao de massa. E nao há esse pluralismo no Brasil.

Basta comparar com democracias como EUA, Franca, Alem, etc. para ver que vivemos sobre uma regime de nao liberdade de expressao.

Claro que precisamos discutir, questionar privilégios em todos os ramos, inclusive na academia. Eu acho fundamental isso. Mas isso nao pode servir de desculpa para nao tematizar o grande problema da democracia que é a dominacao oligopolista na mídia.

Dizer que todas as questoes tem o mesmo peso é o caminho do cinismo e da míseria moral aludida no texto.

Brand Arenari disse...

Caro Paulo Andrade,
Obrigado pela visita e pelo comentário.
No entanto, não entendi bem sua questão, é uma crítica a falta de transparência na universidade pública e suas verbas?