Honduras: um golpe que pode fazer diferença
Roberto Torres
Voltemos quatro ou cinco décadas o nosso olhar sobre a história da América Latina. Militares seqüestrando um presidente eleito num pequeno “quintal” da intervenção imperialista dos EUA; a Igreja Católica com sua vocação autoritária e arrogante vindo a público para legitimar o golpe com a desculpa de se preocupar com a vida das pessoas; a imprensa colonizada e golpista do Brasil doida para encontrar um porto seguro que aceite seu discurso de que este golpe não é mais condenável que o “populismo” de Hugo Chaves e sua influencia sobre o presidente deposto, já que ambos desprezam a “democracia”. Muitos ingredientes de fato nos levam ao passado, mas o fim da Guerra Fria e os contornos de uma nova atenção dos EUA para o sul do continente não. O golpe de Estado que afastou o presidente Manuel Zelaya do governo de Honduras nos oferece uma grande chance de observar como as relações políticas do continente atravessam mudanças significativas. Uma combinação contingente de eventos, impulsionada pela nova política externa dos EUA para o continente, faz com que este golpe possa ter um significado muito diferente para as relações políticas do continente do que, por exemplo, o golpe dos generais e empresários venezuelanos contra o presidente eleito Hugo Chaves, quando o governo americano apoiou a intervenção militar.
Pela primeira vez na História os EUA condenam um golpe militar no America Latina. Com isso fortalecem a postura da Organização dos Estados Americanos (OEA) e legitimam a resistência democrática dos hondurenhos que defendem a constituição e a democracia. À medida que a OEA se vê como caixa de ressonância de um discurso público internacional que também condena um golpe militar no continente, abrem-se possibilidades de que este tema permaneça de tal modo na ordem do dia, que a afirmação dos valores democráticos encontre um parâmetro de referencia capaz de balizar um consenso promissor. A condenação ao golpe, ao unir Obama e Hugo Chaves, promete expectativas recíprocas que buscam como ponto de partida a convergência em torno de um programa democrático que simbolicamente une os EUA e as democracias reformistas da América Latina. O “inimigo comum” funciona sempre como referencia eficaz para a produção de uma convergência. Quando a convergência demarca publicamente uma diferença entre os regimes políticos de países como Venezuela e Bolívia e o golpe militar hondurenho, ela funciona como um espaço de dês-estigmatização dos modelos alternativos de constitucionalidade democrática destes dois países e abre precedente, com a demarcação precisa do que é um regime não democrático, para a legitimação internacional em torno da variação das formas institucionais da democracia. Ao condenar a força, não se pode deixar de lembrar que a prática plebiscitária de um Hugo Chaves ou a reforma constitucional de Evo Morales são bem diferentes da truculência e da arrogância das elites golpistas militarizadas. Neste momento, há uma giganteca aglomeracao de hondurenhos marchando para o aeroporto da capital Tegucigalpa para receber o presidente Manuel Zelaia. Os militares cercam o aeroporto e dizem que nao aceitarão o pouso do avião que trará Zelaia. Os olhares da esfera pública internacional esta atentos para o desafio trazido pela atitude de usar a presenca nao violenta no espaco público como acao moral capaz de mobilizar constrangimentos ao uso despido da forca. A estrutura simbólica desta acao consiste em mostrar a arrogancia da forca, precipitando o uso contrário de uma forca resistente. "Eu peço a todos os trabalhadores do campo, das cidades, índios, jovens, amigos, que me acompanhem em meu retorno a Honduras. Não tragam armas. Pratiquem o que eu sempre preguei: a não-violência.", disse Zelaya ao convocar seus apoiadores. O interessante desta vez é que esta resistencia tem o aval da parca opiniao pública internacional. Durante todo o século XX, as inssurecoes democratizantes latino americanas eram fortemente deslegitimadas pela posicao político-ideológica do EUA. O caso de Honduras é uma experiencia interessante na medida em que a posicao americana se ve na contingencia de aceitar como legitima a manifestao dos hondurenhos que "eles também podem", como dizia um indigena em cartao (Obama, we also can!).
4 comentários:
Excelente texto Roberto. Também acredito que estamos em um outro momento na América Latina o que implica que não somos mais as republiquetas de outrora.
Só guardo alguma discordância no que diz respeito a uma "parca opinião pública". O espaço internacional, que até bem pouco tempo atrás era considerado um "espaço anárquico" por estar além dos Estados Nacionais, já começa a ter uma opinião pública sufucientemente robusta ao ponto de causar constrangimentos institucionais. Seu texto mesmo é uma objetivação desta opinião pública funcionalmente diferenciada, que clama critérios normativos com pretensões universalista, no caso a democracia.
Abçs e estamos na "era das transições" sim.
George
Ótimo texto,
e para emendar o comentário do George sobre as transições...
é necessário muito cuidado para abandonar velhos consensos e estabelecer novos paradigmas, que resultarão ou não em novos consensos...
essa "zona cinzenta e rica" da transição deve ser cultivada, sempre de olho e cientes da sua natureza, ou seja: apontar para novos rumos...
é possível que incidentes como esse, nos alertem para a possibilidade das inflexões conservadoras do processo...
temas como Democracia, consolidação de conquistas progressistas, as tentações continuístas-caudilhescas, os limites instituições e do aparto jurídico-normativo, etc, devem estar sob constante debate...
mas, a minha esperança é de que caminhamos no rumo certo...
abraços...
Nessa construcao de uma esfera pública internacional, sobretudo em torno destes temas que tocam o núcleo normativo de legitimacao da democracia, e particulrmente na América Latina, me parece ser de centralidade estratégica discutir as relacoes militares,as cooperacoes entre as castas armadas dos diversos países. O limite prático que vejo como mais decisivo para a esfera pública, inclusive quando ela ganha corpo na producao legislativa, é a existencia autônoma do Estado policial no contexto de legitimidade do Estado de direito.Até onde os militares aprenderam a obedecer a lei?
essa é a questão:
quem detém armas, sempre se acha "acima" da lei...
e não é só por um fetiche-idelógico de soluções de força e emergência...
é uma legitimação conferida pela sociedade, que elabora discursos quase sempre baseados não nas possibilidades de consensos, mas na demarcação dos campos de sua paranóias de perseguição e sobrevivência sobre o outro...
em resumo simplista: quem anda armado, legitimado como manu miliari do Estado, decide quem vive e quem morre...literalmente...!
um abraço...
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