O momento é bastante oportuno e interessante para discutir limites e potencialidades das corporações de ofício, posto que recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu sentença contrária aos mesmos pleitos das corporações de ofício dos jornalistas.
Não há possibilidade de ser sério o livro sobre formação do Estado brasileiro e constituição da identidade nacional que não mencione a importância exercida pelas corporações dos bacharéis em Direito, Medicina e Engenharia. Da mesma forma, e por conseqüência mesmo, também não há outro meio de versar sobre o estágio atual da Educação Superior no Brasil negligenciando as influências das corporações nas instituições reguladoras do Ensino Superior (MEC, CNE, INEP).
Recordo-me de um debate com colegas de profissão, ocorrido em 2004, acerca do conceito de “necessidade social” para a abertura de novos cursos ou vagas no Ensino Superior. Diante da exponencial expansão dos cursos de Ensino Superior, muitas corporações lançaram-se em empreitada contrária a abertura de novas vagas nas IES baseando seus discursos na defesa da qualidade do ensino. Posto que muitas corporações já exerciam controle das reservas de mercado por meio das provas (OAB, principalmente), foi interessante constatar essa nova engenharia montada para se protegerem da concorrência. O conceito de “necessidade social” era uma forma de reserva de mercado inovadora, pois as IES que pretendessem abrir novos cursos (ou simplesmente novas vagas em cursos já existentes) deveriam antes comprovar que a região necessitaria de tais vagas ou cursos. Para operacionalizar tal conceito, inventaram uma esdrúxula fórmula que relacionava o número de vagas existentes no município e o número de habitantes. Construíram um seguinte raciocínio: se muitas vagas, baixa qualidade. Esqueceram-se os defensores da qualidade do ensino de que o número de vagas oferecidas em um determinado município poderia ser oriundo de péssimas IES, portanto, uma IES com boa avaliação não poderia entrar no mercado daquele município com muitas vagas oferecidas por IES com avaliações ruins. Dito de outra: o fato de existir uma relação habitantes/vagas alta não significava que as vagas eram de qualidade. Portanto, no intuito de “proteger” a qualidade, propuseram um péssimo critério que poderia, se implementado, piorar e muito a situação. Por esse conceito, dificilmente a UERJ conseguiria abrir um curso de Direito em Campos, por exemplo.
A tal “necessidade social” é apenas um exemplo da intromissão das corporações de ofício na Educação Superior. Existem muitos outros, tais como o engessamento das grades curriculares e exigência de número mínimo de horas para cada disciplina. Intromissões que já seriam discutíveis caso o Estado as fizessem, porém, quem as produz não é exatamente o Governo ou Parlamento democraticamente eleito, mas sim instituições privadas onde nem o Estado nem a Sociedade possuem qualquer controle, posto que as corporações gozam de quase absoluta liberdade de constituição e formação. Daí surge o pseudo-paradoxo de que maior controle/intromissão significa maior atuação do Estado na Educação Superior. Como exposto, muito provável o oposto, já que os Conselhos são aparelhados pelas corporações de ofício.
Ainda sobre as ingerências das corporações de ofício nos cursos de Ensino Superior e nas reservas da atividade profissional propriamente dita, e aqui me refiro ao exercício profissional no mercado de trabalho, surpreendo-me com uma movimentação audaciosa da Federação Nacional dos Sociólogos (FNS), qual seja, de tomar as mesmas ações das corporações dos jornalistas já recusadas no STF, só que com uma inovação: pretendem ao mesmo tempo impor ingerências tanto no mercado de trabalho quanto nos cursos superiores em Ciências Sociais. Em panos claros, os representantes dos sociólogos pleiteiam exclusividade nas atividades docentes nos cursos de graduação em Ciências Sociais. Pleito completamente desprovido de sentido lógico e que negligencia toda a formação das Ciências Sociais, o que me faz duvidar se os que representam a categoria e possuem o diploma já não constituem as próprias provas concretas que o diploma não garante qualidade alguma.
O mínimo de conhecimento sobre as Ciências Sociais já seria suficiente para constatar as características inter e multidisciplinares da área. Lembro-me de uma das primeiras conferências que assisti na ANPOCS do antropólogo Gilberto Velho, em 1999, que proferiu um discurso sobre a dificuldade de classificação de que áreas comporiam as Ciências Sociais, já que a História se dedicava aos mesmos temas que as três áreas habitualmente reconhecidas como Ciências Sociais (Antropologia, Ciência Política e Sociologia). Eu acrescentaria duas outras áreas: Economia e Psicologia, que em muitos casos guardam mais similaridades com a Ciência Política e Sociologia do que a Antropologia propriamente o faz. Isso sem falar na Filosofia que pode ser considerada a mãe de todas as Ciências, ainda mais no que se refere às Ciências Sociais. Correria o risco ainda de colocar na mesma situação das Disciplinas já citadas tanto a Literatura quanto a Comunicação Social.
O fato de discordar com várias abordagens metodológicas destas disciplinas não permite desprovê-las de sentido ontológico e até mesmo instrumental dentro da constituição do que seriam as Ciências Sociais. Afinal, não há curso sério em Ciências Sociais que exclua das suas grades curriculares essas Disciplinas.
Como se não bastassem os argumentos da constituição e formação das Ciências Sociais, acrescento ainda o fato de que a maior parte da formação do profissional da área se dá nos cursos de pós-graduação, posto que no Mestrado e no Doutorado que o aluno passa maior parte do tempo da sua formação (6 anos nestes e apenas 4 na Graduação). E não somente a maior parte do tempo de formação, como também a parte mais importante desta, ou se esqueceram os sindicalistas que existe hierarquia meritocrática na Academia? Quiçá investissem mais tempo no labor acadêmico os ajudassem a compreender as idiossincrasias da área e dos profissionais que pretendem representar.
Destarte, divulgo abaixo a carta do um coordenador da PUC-SP, Claudio Couto, contra o intento da Federação Nacional dos Sociólogos (FNS), publicado no Boletim da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Um libelo pela qualidade e liberdade da Universidade.
Vitor Peixoto
Sobre o requisito do diploma de graduação Ciências Sociais para a
docência em Ciência Política – carta de Cláudio Couto (PUC-SP)
O Boletim publica abaixo a carta que o colega Cláudio Couto, chefe do DCP da PUC-SP, encaminhou à diretoria da ABCP em resposta à carta da Federação Nacional dos Sociólogos (FNS), dirigida ao Reitor da PUC-SP, na qual lhe solicitou que o diploma de graduação em ciências sociais passe a ser exigido nos editais de seleção de professores para disciplinas do curso de graduação em ciências sociais. A FNS justifica essa demanda pelas dificuldades de acesso à carreira docente enfrentadas pelos graduados em ciências sociais, processos judiciais que têm provocado a anulação ou suspensão de processos seletivos e a qualidade do ensino, para a qual é necessário que o conhecimento científico do professor seja adequado à disciplina oferecida.
“Magnífico Sr. Reitor, Sra. Pró-Reitora de Graduação, Sra. Diretora da Faculdade de Ciências Sociais, Sra. Coordenadora do PEPG em Ciências Sociais e chefes de Departamento,
Escrevo-lhes motivado pela carta cuja cópia segue anexa, enviada pela Federação Nacional dos
Sociólogos ao magnífico reitor de nossa Universidade. Como providências cabíveis são solicitadas aos chefes de Departamento, creio que deva me manifestar. Nessa carta, o presidente da referida entidade requere que nossa Universidade restrinja a possibilidade da contratação de professores das áreas de Sociologia, Antropologia e Ciência Política àqueles graduados em cursos de Ciências Sociais, exclusivamente.
Alega que a razão para tal solicitação é o fato de que algumas universidades têm contratado
profissionais com formação em outras áreas do conhecimento, e que isto seria prejudicial à formação de estudantes que precisam cursar disciplinas das três áreas das ciências sociais acima mencionadas. Parece-me que tal solicitação é completamente descabida. Trata-se, para ser mais claro, de um verdadeiro despautério corporativista e, com o perdão do trocadilho, burrocrático.
Em primeiro lugar porque – felizmente – não existe qualquer exigência legal para que sejam contratados exclusivamente graduados em ciências sociais como professores que venham a ministrar disciplinas das três áreas das ciências sociais. Em segundo lugar porque a graduação em cursos que não sejam de ciências sociais não torna os profissionais necessariamente incompetentes na área de ciências sociais. Tal competência pode ser obtida pela atuação profissional e de pesquisa na área, posterior à obtenção da graduação.
Em terceiro lugar porque esse tipo de solicitação representa uma intromissão inaceitável em assuntos acadêmicos internos das Universidades, atentando contra a autonomia universitária num aspecto dos mais importantes: sua independência funcional para definir os critérios de mérito válidos para a seleção de quadros docentes. Se o esdrúxulo critério defendido pela Federação Nacional dos Sociólogos fosse adotado nas instituições de ensino superior brasileiras, não teriam podido atuar como professores de ciências sociais intelectuais notáveis como os que listo a seguir, apenas a título de exemplo:
• Emir Sader – ex-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS), atual Secretário do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), graduado em filosofia.
• Maria Manuela Carneiro da Cunha – ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), membro da Academia Brasileira de Ciências, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago, graduada em Matemática Pura.
• Wanderley Guilherme dos Santos – ex-presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), membro da Academia Brasileira de Ciências, premiado com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico na área de Ciências Sociais e Humanas, ganhador do Prêmio Vitor Nunes Leal para melhor livro no ano 2006 em Ciência Política, por anos principal liderança intelectual do IUPERJ (instituição de ponta na pesquisa e pós-graduação em Ciência Política e Sociologia), graduado em Filosofia.
Tendo isto tudo em vista, creio que devamos simplesmente desconsiderar por completo a carta
enviada a nossa Universidade por essa entidade, que nenhuma relevância tem nos debates travados pela comunidade de ciências sociais em suas principais associações: ANPOCS, ABA, SBS (Sociedade Brasileira de Sociologia) e ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política).
Atenciosamente,
Cláudio Gonçalves Couto
Chefe do Departamento de Política - PUC/SP”
Um comentário:
Jessé Souza, Marcelo Neves, Pierre Bourdieu e e Niklas Luhmann também nao poderiam dar aula nas graduacoes de acordo com os critérios do FNS. Este corporativismo dos sociólogos da FNS é uma reacao contra a competicao academica, na qual o mérito individual é o critério indiscutivelmente justo. A virada para a ciencias sociais de gente de outras áreas costuma, as vezes, ser marcada por um envolvimento e um desepenho vocaional muito satisfatório. Dos autores brasileiros, lembro sempre que Jessé Souza e Marcelo Neves, dois dos mais proeminentes sociólogos brasileiros de hoje, fizeram graducao em direito. A tal da "necessidade social" existe mesmo: é a necessidade social de reservar o mercado para os graduandos que nao podem apostar no próprio desemepenho.
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