terça-feira, 7 de julho de 2009

Nova Cult e pílulas conjunturais sobre a imprensa


Estamos vivendo um momento particularmente interessante na atual conjuntura no que tange uma instituição importantíssima para se avaliar a esfera pública. Ora, falo objetivamente da imprensa tradicional e sua profunda crise de legitimação.

Em sociedades centrais do capitalismo temos uma maior profusão de jornais e revistas, além de opções televisas e radiofônicas, que ao menos transmitem uma relativa sensação de “pluralidade” dentre as fontes expressivas, estéticas e normativas encontradas na sociedade. Podemos discutir a qualidade destas, se escapam de maneira efetiva daquilo que Fredric Jameson chama de “lógica cultural do capitalismo tardio”, com sua reprodução pré-reflexiva do niilismo moral, da apologia ao individualismo possessivo ou mesmo tão pura e simplesmente na recusa deliberada de discutir projetos societários. Afinal, como diria aquela a propaganda da famosa marca de tênis: “Just Do It”. Nestas circunstâncias, para que devemos discutir projetos de longo prazo?

Mas, a despeito das opções normativas rasas impostas, estamos vendo o declínio de uma forma específica de se produzir e circular as informações. O desaparecimento gradativo de jornais tradicionais nos países centrais é apenas um dos elementos mais espetaculares produzidos pelos incrementos tecnológicos nos últimos anos... E de súbito há um aumento exponencial e descentralizado na quantidade de bens simbólicos em circulação, o que faz com que na lógica sistêmica de regulação de mercado possam competir diferentes produtores de informação (amadores ou não). Evidente que, como em qualquer mercado onde há a escassez inerente de recursos, há “pontos na rede” mais aparelhados e outros menos. Mas, hoje mais do que nunca, dificilmente encontramos a viabilidade, em sociedades minimamente abertas, de uma “versão única dos fatos”. Acho pouco crível que mesmo o mais positivista dos jornalistas, com sua apologia de “narrar o ocorrido”, recuse afirmar que a narrativa, em si, é uma leitura possível, dentre outras tantas, sobre aquilo que Bourdieu afirmava ser “construído”. Não há o “fato”, há a narrativa sobre o fato se quisermos realizar uma inflexão hermenêutica. E, quer queiram ou não, este monopólio (ou o oligopólio) da produção de narrativas sobre os fatos morreu com a popularização dos computadores pessoais e as conseqüentes novas ferramentas de informação. Descontando as desproporções entre grandes corporações e os autores domésticos (como eu), não há versão sem contra-versão. Devemos é discutir o alcance real dos movimentos de contra-hegemonia (contra-versões), como já fiz em outro momento.

Nas sociedades periféricas não vislumbramos a pluralidade ou qualquer sinal de democratização das formas de comunicação em um primeiro momento. Com uma estrutura oligopolística bastante fechada de produção de informações em diferentes escalas (local, estadual e nacional), a imprensa brasileira constitui-se enquanto pequenos ou grandes impérios blindados, dependentes profundamente do dinheiro público e/ou simplesmente porta-voz daqueles que mais se beneficiam do erário. O chamado “quarto poder” deu suas inúmeras demonstrações da capacidade de criação de fatos políticos de toda ordem. Este mesmo “quarto poder”, afinal, participou há pouco das mais lamentáveis aventuras republicanas da história do Brasil. Ajudou a eleger e a depor Fernando Collor na nossa recentíssima Nova República. No momento de suspensão da normalidade institucional em 1964 foi adesista de primeira hora, objetivamente a grande imprensa, tripudiando em tom ufanista das instituições democráticas. O que revela o caráter anti-liberal e autoritário de parte de seus quadros. De lá para cá fez todas as chantagens que o leitor bem informado e minimamente culto pode analisar no cotidiano. Enquanto porta-voz onipresente de interesses inconfessáveis ajudou a aprofundar um dos elementos mais danosos e perversos dos nossos mitos de “origem”: o asco ao Estado. O Estado, enquanto pior dos mundos, paradoxalmente é guloseima a ser degustada com propagandas institucionais de toda ordem. Não é à toa que Wanderley Guilherme dos Santos (aqui) nos lembre o quão bárbaro e atrasado pode ser o “quarto poder”.

Por essas e outras considerei interessante e subversiva a resposta em forma de blog dada pela Petrobrás. Na ótica da ruptura com a produção unilateral da “verdade sobre os fatos” a Petrobrás participa diretamente desta possibilidade, em um ato eminentemente de cunho político, de que a imprensa e seus sacerdotes não mais detenham o monopólio da produção dos discursos sobre a sociedade. Tampouco tenha a autoridade discursiva inabalável sobre o real. Creio que finalmente, em uma ótica habermasiana, poderemos ver o triunfo do melhor argumento, algo que a maioria da imprensa esqueceu há tempos de como fazê-lo. O exercício de pluralidade discursiva pode nos levar, sim, a um renascimento da esfera pública onde a imprensa é obrigada a conviver com diferentes e incontroláveis influxos comunicativos. A imprensa morreu, viva a imprensa!

Dentre as possibilidades geradas pela descentralização da circulação de informação eu sinceramente espero que dois bastiões caiam juntos: o da péssima qualidade da produção analítica e textual da imprensa e o do corporativismo jornalístico. Afinal, para se produzir análises de fato relevantes, precisas, informativas e que contribuam com a saúde da esfera pública é necessário algo mais do que um diploma de comunicação social. Certamente não estou reivindicando a regressão de qualquer movimento da divisão social do trabalho, mas, que a formação destes produtores de informação forneça de fato instrumentais que permitam uma atuação reflexiva. Inclusive que se obedeçam a critérios de “qualificação” e não de diploma, em uma reserva de mercado tão cega quanto danosa. Afinal, como bem sabemos, os jornalistas não são os únicos interessados em escrever sobre a sociedade. E estes tem dado demonstrações cabais, salvo as raras e honrosas exceções de sempre, de que quando o fazem nem sempre realizam contribuições efetivas para as instituições ou para a qualidade da democracia.

Espero que a concorrência estimulada no mercado de bens simbólicos, a despeito dos chiliques, nos leve a um patamar de reflexividade não operado ainda. Seja ela de esquerda ou de direita. Afinal, neste campo da disputa no mercado de bens simbólicos, tem sido queixa constante de diferentes segmentos a baixa qualidade, o maniqueísmo de esquerda ou de direita, o faccionismo explícito (traduzido em pressupostos inegociáveis) e a recusa pela crítica dos elementos que constituem aquelas relações. Entre esquerda ou direita a recusa ao esclarecimento não produziu nada mais do que piorar a qualidade de nossa combalida esfera pública. Um lamentável papel, anti-iluminista, ainda não superado até o presente momento onde as expressões alternativas no espaço público somente engatinham.

Portanto não posso deixar de expressar meu entusiasmo com o último número da Revista Cult. Neste momento é a única revista, de periodicidade mensal, que por hábito invisto meus parcos caraminguás há um bom tempo. O número 136 da revista, que custa R$ 9,90 ainda encontrável nas bancas, prossegue em um esforço ainda sem par de divulgação e popularização do que a humanidade produz de mais elevado: a alta cultura. Usualmente o menu oferecido pela Cult é entremeado por literatura, cinema, poesia, artes plásticas, política, filosofia, boa música (popular ou erudita), sociologia e seus sempre informativos dossiês. Já foram capa da revista e objeto de diferentes dossiês: Goethe, Weber, Bourdieu, Hannah Arendt, dentre tantos outros e, desta vez, Jürgen Habermas.

Embora reconheça um certo domínio paulistano usual nas páginas da Cult em sua trajetória, este dossiê especialmente apresenta um painel com alguma diversidade geográfica, com intelectuais de diferentes pontos do sudeste e do sul do Brasil. Diria que faltas sentidas imediatamente foram as dos professores Marcelo Neves, Flavio Beno Siebeneichler e do casal Sérgio Paulo Rouanet e Bárbara Freitag Rouanet que, de maneira diversa, participam de maneira inegável do esforço de divulgação e/ou de interpretação do legado habermasiano entre nós.

Todavia neste dossiê nos oferecem um painel eficiente e, na medida do possível “acessível”, autores que não constituem necessariamente o establishment intelectual do momento como Luiz Bernardo Leite Araújo (UERJ), José Pedro Luchi (UFES), Delamar Volpato Dutra (UFSC), Jessé Souza (UFJF), dentre outros. Possivelmente a escolha destes autores se dê visando obter pontos de interpretação ainda não suficientemente assimilados e/ou divulgados. Ou mesmo como um tom de provocação e desafio aos leitores iniciados ou não no esforço habermasiano de interpretação da modernidade. De forma ou de outra o texto funciona ao apresentar “um pensador da razão pública” como apresenta a capa da revista.

Neste número, como é a tradição da Cult, certamente o leitor não terá a sua inteligência menosprezada. Em verdade é desafiador e corajoso que tenham optado por um autor usualmente tão conhecido nos meios acadêmicos e ainda tão pouco digerido. Mas, creio que Souza, conhecido dos campistas por sua passagem na UENF, nos apresente de maneira tão fulminante quanto desconcertante por qual via Habermas pode ser subversivamente apreendido na periferia: “Pensadores críticos, como Habermas, não devem ser usados apenas como meio de ‘distinção erudita’, como mero ‘adorno da inteligência’, como um fim em si, como é tão comum entre nós. Eles são uma ‘arma prática’ para se perceber nossa própria sociedade de outro modo, mais crítico e menos autoindulgente e superficial como nos acostumamos a nos perceber”. (Souza, Cult 136, 2009: p.62).

Retornando a um dos fios condutores deste ensaio, ora, que estes influxos reflexivos possam ter um retorno para a própria imprensa neste momento de crise de legitimação. Mas, até lá, que contemos com um oásis como a Cult.

Um comentário:

Roberto Torres disse...

Grande texto George! Nao se trata de otimismo, mas sim de perceber possibilidades. Com a I Conferencia Nacional de Comunicacao a imprensa vai ser forcada a adotar uma postura reflexiva sobre si mesma, o que já está em marcha por causa da internet.