sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Porque esse povo não sai dessa vida?!



Roberto Torres













Nesta semana foi lançado no 33º Encontro Anual da Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) o livro “A ralé brasileira: quem é e como vive” (UFMG, 2009), organizado pelo Professor Jessé Souza (UFJF), com textos de pesquisadores que durante quatro anos trabalharam no projeto deste livro. Entre eles estamos Fabrício Maciel e eu. O livro é composto por uma serie de estudos empíricos sobre a reprodução da desigualdade e das condições de vida da “ralé” e é escrito numa linguagem acessível ao público não acadêmico. Tentamos tirar os jargões da acadêmica sem abrir mão da precisão analítica e da crítica ao senso comum. Nossa motivação principal: um diálogo entre “leigos” e “especialistas” não é apenas possível, mas sobretudo necessário para enfrentar a visão hegemônica sobre a mazela brasileira. O fundamento deste diálogo é o interesse em romper com o senso comum, com a aliança entre má fé e ignorância que ajuda a reproduzir e a legitimar as condições de vida injustas como as que o Brasil permite à sua “ralé”. “A ralé é a grande questão esquecida. O Brasil não tem 500 problemas, mas um grande problema, que é essa desigualdade abissal do qual decorre mais de mil problemas”, resume Jessé Souza em entrevista.
O livro é um convite ao debate sobre as consequências e os interesses dos encadeamentos ideológicos que se mostram por exemplo na crítica da classe média ao Bolsa Família. O Jornal Globo, por exemplo, insiste em vender a legitimidade de que precisa o sentimento fascista das classes privilegiadas contra os pobres no Brasil. No ultimo domingo mais uma vez fizeram uma reportagem que denuncia o quanto o programa Bolsa Família inibe a geração de empregos formais: “os beneficiados se acomodam ao padrão de vida possível com o beneficio”, eis a sentença, cujo desdobramento condenatório não dizem em publico, mas que o “publico” a qual se dirige entende muito bem: estes pobres acomodados deveriam então ser “incentivados” ao trabalho e a investir no futuro com o fim do programa de transferência de renda que estimula a falta de vontade para mudar de vida. Seria preciso um “choque de capitalismo” para “acordar” este povo “atrasado”.
Esta “polemica” me parece ser um grande exemplo de como se pode tirar proveito da aliança entre ma-fé e ignorância que constitui o senso comum conservador (existe um senso comum progressista constituído pela combinação cognitivo-motivacional entre intuição contra-fática e boa fé). Na reportagem exibida na internet via-se “Bolsa Família inibe Emprego Formal”. Ao clicar lia-se: “85 cidades do país com maior cobertura do Bolsa Família, só um 1,3 % da população trabalha com carteira assinada”. Por fim, no texto, temos a “insignificante ressalva” que, da forma como foi editada a reportagem, é apresentada como se em nada alterasse a relação causal postulada: “ A precariedade do emprego formal nessas cidades - municípios pobres, com população abaixo de 30 mil habitantes - não tem relação direta com a concessão do Bolsa Família. Existem barreiras anteriores ao programa que impedem o acesso dos trabalhadores a empregos: a baixa escolaridade e a falta de capacitação profissional. As parcas vagas com carteira assinada no comércio de Presidente Vargas exigem ensino médio.” O jornal dá o recado na manchete, constrói a legitimidade da tese que o programa Bolsa Família prende os pobres em sua vida miserável, e relativiza os fundamentos cognitivos da tese somente para quem lê “por dentro” sem comprometer o que foi “estampado”.
No dia seguinte estava lá o PSDB em sua página na internet “bebendo da fonte” e criticando o governo por esconder a miséria, sem ter, no entanto, coragem de assumir uma posição clara sobre a “tese”: pobres assistidos pelo Estado desistem de procurar trabalho e continuam pobres. Como se constrói a “plausibilidade” desta tese, como se pode “fundamentar” a mentira? Como Lukács resumiu, toda mentira ideológica é simplesmente uma inversão das causas pelos efeitos. E é precisamente esta inversão, que mesmo sendo condessada pela ressalva do Jornal, não é efetivamente “vista”(no sentido de ser levada em consideração). A pobreza, com suas privações não somente econômicas, mas também morais, culturais e políticas, não é vista em suas conexões causais que reproduzem a exclusão. Sobretudo, no caso da “tese” tornada “plausível” pela reportagem, não “salta aos olhos” de ninguém como a experiência acumulada da privação, e não a ajuda do governo para amenizá-la, impede a formação de uma disposição para “crer” e assim investir no futuro. A aliança entre má-fé e ignorância que sustenta o senso comum conservador não admite o quanto pode ser plausível para um ser humano priorizar o presente ou o futuro imediato, e não o futuro longínquo, em seu modo de conduzir a vida e tomar decisões.
Este senso comum que “naturaliza” a desigualdade e que sempre busca por a culpa do fracasso na própria vitima (ou no Estado, sempre buscando um “bode expiatório”) toma como um fato óbvio da vida “querer estudar” e “investir” numa vida melhor para daqui a 10 ou 20 anos, como se todos os indivíduos, independente de suas condições sociais, pudessem agir e conduzir a vida deste modo. Como pode não ser crível e “racional” para alguem a necessidade de sair da pobreza, por mais que ela se encontre amenizada em comparação com 10 anos antes? Uma questão como esta nunca é feita antes de se proferir a sentença condenatória – “deixem morrer estes pobres que não querem deixar de ser pobres!” - que ninguém assume, mas que todos estão dispostos a aplaudir.
O que faz um indivíduo de uma família pobre como esta que o jornal exibe em sua reportagem não investir no futuro é antes de mais nada o fato dele não ter podido acreditar no futuro. Ninguém investe naquilo que não crê e isto vale também para o mundo da racionalidade econômica com suas estratégias de futuro. Como alguem que herdou dos pais e experimentou por conta própria o saber de que o sentido da vida é protegê-la das ameaças iminentes (defendendo-a da fome, da delinquência etc. ), e cujas condições sociais insistem em confirmar este sentido, pode acreditar que vale a pena se preocupar com daqui a 10 ou 20 anos? Como pode alguem com esta trajetória sem futuro querer procurar um emprego que mude o patamar de vida, e assim achar a “porta de saída” do Bolsa Família sabendo que este emprego nunca foi para ele fonte de nenhuma segurança? Não seria mais compreensivo contar com a segurança, ainda que minguada, do Bolsa Família, do que arriscar sair do critério de cobertura do programa e logo ficar sem emprego e sem amparo do governo? Deveriam aqueles chefes de família, sem escolaridade adequada, procurar um emprego para “subir na vida” e assim arriscar a única fonte de segurança alimentar dos filhos? O que o senso comum conservador chama de “se acomodar com a pobreza” não seria o limite da razoabilidade para os que sabem na pele e no estômago como funciona a “ditadura do presente”?
Nenhuma destas questões pode ser enfrentada por este senso comum “não ilustrado” que se informa através de O Globo, Veja, Folha etc. Mas a má fé misturada com ignorância se protege de tudo isto, deixando fora de questão o “fundamento cognitivo” que motiva sua cumplicidade com a opção por “deixar morrer” os que se mostrem economicamente presos ao passado (inúteis). Com esta cumplicidade se produz uma versão tropical, embora invisível em sua radicalidade, de um totalitarismo bio-político que significativamente em nada difere do nazismo: “só devem viver aqueles corpos saudáveis (sem doencas físicas e "espirituais" como o comodismo) que contribuem para o futuro”.

6 comentários:

Unknown disse...

Ótimo texto, Roberto!

Paulo Sérgio Ribeiro disse...

Parabéns Roberto e Fabrício! Sem dúvida será uma leitura de cabeceira. Eu acredito nesta sociologia.

Abraços, meus caros.

George Gomes Coutinho disse...

Perfeito!

Inclusive também notei a má fé explícita dos editores de "O Globo" ao discutir a conexão espúria que deveria existir,e ilustra em letras garrafais na capa desmentindo (?!?) no texto, entre um programa social como o "Bolsa Familia" e a geração de emprego formal. Vi por aqui na blogosfera que determinados blogueiros simplesmente, por ignorância, incapacidade ou preguiça se permitiram apenas reproduzir o que viram na capa. Talvez não tenham lido a matéria embora arrotem que tenham feito.

Diga-se de passagem que empregos formais em pequenas cidades são raros inclusive na nossa região, onde há cidades com um contingente menor de atendidos pelo "Bolsa" do que nas cidades observadas na matéria.

De toda forma o "Bolsa" é um dos programas mais complexos que conheço.... Programa não focalizado, dado o volume de recursos, mas, que assim é interpretado por uma determinada esquerda. Programa "acomodador" ante os olhos de uma elite conservadora que acredita piamente em suas mentiras de mobilidade social desmentidas diariamente pela própria realidade brasileira.

No mais parabéns pela escolha dos termos que ilustram o seu texto Roberto. Suas opções denunciam tanto a crueza quanto a urgência do problema. E parabéns para os autores do livro. É preciso coragem para nadar contra a corrente.

Abçs

bill disse...

ótimo texto.

Em tempo: O bigodinho do Merval parece com o bigodinho do...

abraço.

Fabrício Maciel disse...

Obrigado Paulo, e acrescentando, o livro no geral é também uma crítica ao liberalismo atual no Brasil, algo que ninguém faz exatamente por nunca se colocar a esquerda de nosso liberalismo. A crítica ao liberalismo hoje se resume a reconstruções históricas de dados descritivos e a críticas do passado. Jessé tem enfatizado a crítica ao "charminho crítico" dos pseudo críticos brasileiros que atribuem todas as mazelas ao Estado e contribuem para o vigor da concepção implícita da imparcialidade e virtuosidade do mercado.

O livro é ainda o início de uma tentativa inédita de costrução de uma teoria de classes para o Brasil contemporâneo. Busca explicitar a condição estática historicamente de uma classe de inaptos e inadaptados ao mercado, vagando pela fome, bolsa família, ou alguns biscates casuais.

agitadorcultural disse...

Boa análise.