Fabrício Maciel
O Brasil comemora, neste momento, a vitória do Rio de Janeiro para sede dos jogos olímpicos de 2016. Copacabana está em festa. O discurso de Lula, comovente, agora no início da tarde, é emblemático da condição atual do país na política internacional, por um lado, e da eterna necessidade de legitimação interna, por outro. O evento já é considerado histórico por sua peculiaridade: a primeira vez que um país sul-americano será sede dos jogos.
Como brasileiro, é difícil não se emocionar com Lula. E esta fala é especial. Foram vários minutos em rede nacional de extrema comoção e sinceridade. Lula atualizou todos os mitos sobre o nosso povo. Afirmou nosso mérito pela capacidade que o brasileiro terá de realizar a olimpíada mais bonita de todas. E também que nenhum outro concorrente poderia ganhar pois apenas a gente conseguiu transmitir com os olhos a vontade sincera de realizá-la. Ele considerou o evento a última etapa que faltava para que o mundo reconhecesse totalmente o valor do povo brasileiro. Foi, em sua fala, o último preconceito quebrado. Uma vez já reconhecidos economicamente, agora ninguém mais duvida, em nenhum aspecto, do povo brasileiro. Um ponto alto da fala é que o Brasil consegue agora provar ao mundo seu valor econômico, político e social.
É claro que para nossa política externa e nossa economia o fato deve ser comemorado. Legitima o papel destacado do Brasil no eixo Sul do mundo. Em termos de política internacional de fato estamos muito bem. Alguém brincou que hoje Lula ganhou de Obama. E ele responde bem: o Rio ganhou de Chicago, uma das competidoras. Para fora, a força do mito está cada vez mais atualizada e cumpre uma função importante. No mundo moderno, nenhuma vitória nacional, em termos políticos e econômicos, pode legitimar-se por si mesma. A singularidade cultural é que a legitima, ainda que se trate de um país periférico como o nosso. Todo país precisa disso, seja qual for seu lugar na divisão internacional do trabalho.
O curioso neste fato é que a ênfase abstrata nas relações internacionais, no crescimento de uma nação como a nossa, em termos econômicos e políticos, continua tirando o foco das questões concretas de vida ou morte, como diria Bourdieu, de uma nação moderna. Trata-se da legitimação de desigualdades de classe no mundo moderno sobre as quais os mitos nacionais exercem função fundamental, ao lado da ideologia do mérito. Assim, se externamente o mito parece exercer agora uma função positiva, legitimando e reforçando conquistas nacionais no contexto das relações internacionais, internamente ele continua operando sua função negativa, legitimando nossa desigualdade. Paralelo e articulado ao mito da singularidade cultural nacional, está o mito da estabilidade econômica. A mesma lógica econômica e política assimétrica do capitalismo, enquanto sistema mundial desdobrado em seus subsistemas nacionais, opera então dois movimentos.
De um lado, o crescimento relativo das economias periféricas por conta das necessidades de produção do capitalismo mundial. Por outro, a reprodução das desigualdades de classe internas, nas quais apenas as classes qualificadas participam dos efeitos positivos, em termos objetivos e subjetivos, que o crescimento relativo das economias periféricas proporciona internamente. Neste movimento, o papel ambíguo do mito nacional, perfeitamente exemplificado no evento em foco, parece ainda fundamental.
5 comentários:
Xará,
permita-me uma colocação no texto interessante. Consegui ver na festa de hoje em Copenhague um certo discurso de reconhecimento da mazela, da desigualdade, embora os mitos, como você o diz, estejam lá. ora, vi muitas pessoas ressaltando o "rei negro", a "pobre emergente" e o "presidente operário", e, principalmente, fome, pobreza, violência. Fiqui perplexo a ponto de ouvir o Lula ressaltar, em uma fala ainda na cerimônia, que temos pobreza, fome, desigualdade, mas que temos o direito a sediar a olímpíada. Pelo que sei, nestes momentos há a tendência a rememorar antigos mitos. Vi, no entanto, o reconhecimento de demandas ainda pendentes. Isso, para mim, soou surpreendente em um contexto em que as "expectativas estruturadas" são para ressaltar a beleza e esconder o feio.
Grande abraço.
Pobre país...
Interessante sua observação Xará. Me parece que hoje em dia já não é mais possível esconder certas mazelas tão evidentes em um país como o nosso. No entanto, pode-se lidar com elas. è o que parece acontecer no que vc narra. Os mitos são ainda mais eficazes quando reconhecem que não somos nenhuma maravilha mas ainda assim temos um lado bom que legitima nosso direito em fazer uma olimpíada. Seria ridículo alguma autoridade brasileira hoje negar nossa desigualdade. NO entanto, podemos suavizá-la com dados parciais. E também podemos criar uma compensação para ela. É aqui que entram os mitos. De fato, o reconhecimento de demandas sociais é presente. E no mundo inteiro, acho que nunca se assumiu tanto os problemas sociais. Mas continuaremos apresentando dados parciais e justificativas morais que os amenizam.
grande abraço
Fabricio, nao podemos esquecer que o mito e a semantica nacional, contem uma ambiguidade, e um dos lados desta ambiguidade contradiz o outro. A valorizacao da mestissagem, ressaltada por Lula como qualidade do povo brasileiro, ao mesmo tempo em que serve para esconder desigualdades, nao deixa de atualizar um valor com seus efeitos positivos, mesmo que restritos a uma esfera da vida, como a esfera privada que o mito privilegia.
É verdade Roberto, em termos subjetivos podemos reconhecer algum sentido para o mito, assim como o reconheci em termos de seus efeitos para nossa política externa. é exatamente por tais efeitos que a tematização do mito é sempre difícil e que ele sempre se atualiza, pois sempre poderemos ver algum lado bom. NO entanto, em termos objetivos, sua força continua a mesma, na reprodução de nossa desigualdade, e tal força depende mesmo dos efeitos subjetivos, em termos de satisfações substitutivas para nossas desgraças, que pode proporcionar. grande abraço
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