segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Excluvismo agrário versus democracia rural

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Não causou surpresa a posição da senadora Kátia Abreu (DEM-TO) frente ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Não poderia ser diferente por parte da “democrata” (sic) e dos demais intelectuais orgânicos do patronato fazendeiro cuja influência na política agrária se amplia com o monopólio da informação estabelecido neste país. Ademais, seria ingênuo pensar que a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do MST é um fato político haurido apenas no calor das discussões sobre a ocupação recente da fazenda Cutrale em Iaras - SP por militantes sem-terra, embora a repercussão do evento tenha sido capitalizada com certo êxito pela bancada ruralista do Congresso em sua oposição àquele movimento social. O interesse de classe latente nessa nova investida contra o MST tem nome, o exclusivismo agrário, uma estrutura de poder que parece ditar o ritmo da mudança social tal como uma doença resistente a quaisquer remédios reformistas surgidos nesta ou naquela conjuntura. Antes de esboçar uma análise do conflito entre donos de terra e sem-terra no Brasil convém delimitar suas razões contrapostas desde a instauração da CPI do MST há pouco mais de duas semanas (21/10).

Comecemos pela justificativa de seus propositores. Em reportagem publicada no Estadão [1], Kátia Abreu, que além de senadora é presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), diz que o objetivo da CPI é apurar possíveis irregularidades decorrentes da não prestação de contas de recursos da União e de organizações internacionais destinados ao MST. O mote para tal investigação parlamentar remete a uma reportagem da Veja. Quanto à linha editorial desta revista reservo ao leitor o melhor juízo (valendo o mesmo para o jornal mencionado). Citando exclusivamente essa revista em um de seus pronunciamentos no Plenário do Senado, Kátia Abreu bebe da fonte e defende que os “atos ilícitos” do MST não podem ser aceitos, entre outros motivos, por reforçar a ausência de transparência pública do financiamento de suas atividades. Lançando mão de tal denúncia, a senadora questiona a legitimidade do movimento para propor uma revisão dos índices de produtividade como critério para a manutenção ou desapropriação de terras, pois, a seu ver, o MST não poderia exercer qualquer contestação desses índices enquanto promover ações que atentem contra o Estado de direito tais como invasões de prédios públicos e de fazendas. A senadora afirma ainda ser inadmissível resumir à noção de latifúndio improdutivo as propriedades rurais cuja produção equivale a um terço do PIB e que constituem o único setor a manter a balança comercial positiva.

Em nota de esclarecimento da Direção Nacional do MST [2], a denúncia passível de ser averiguada por uma CPI assume outro contorno. O movimento defende a convergência de sua causa, a democratização da terra, com a Constituição Federal que preconiza a desapropriação de propriedades rurais que não alcancem uma margem mínima de produtividade prevista em lei; explorem de modo insustentável os recursos naturais; não cumpram os direitos trabalhistas; e promovam o uso da terra para o contrabando ou cultivo de drogas. O critério de ocupação das propriedades rurais adotado pelo MST não é aleatório, pois observa uma ou mais condições legalmente prescritas para enquadrá-las no programa nacional da reforma agrária. Ressalta-se ainda na nota que o resultado do Censo Agropecuário de 2006 [3] aponta a persistência da concentração fundiária no país, uma das maiores do mundo, que alude à situação de uma fração diminuta dos proprietários rurais (1%) deter o controle de quase metade do território nacional (46%). A Direção Nacional do MST não desconhece a ocorrência de “desvios de conduta” em determinadas ocupações que se distanciam de sua linha política e induzem a uma visão distorcida do movimento. No entanto, a Direção ressalva haver em sua militância de base uma “infiltração” de agentes do latifúndio e/ou da polícia que manejariam ardilosamente esses desvios.

A meu ver, o ponto a ser discutido não é a maior ou menor permissividade no recrutamento de quadros do MST ou eventuais ganhos políticos da bancada ruralista em seu trânsito privilegiado com a imprensa tradicional, pois estas variáveis mais refletem do que determinam os limites da ação coletiva orientada por lutas redistributivas quando estendemos o escopo da análise acerca das dificuldades de viabilizar um novo estatuto da terra e, por conseguinte, uma reordenação institucional da estrutura de poder que sustenta o exclusivismo agrário. Uma ponderação feita por Roberto Torres em texto recente aqui no blog, “Sobre a CPI do MST”, ajuda-nos a interpretar o problema: “Como essa gente humilhada e desacreditada todos os dias consegue encontrar força para lutar por um futuro coletivo e construir solidariedade entre si não é nada óbvio, mas um fenômeno altamente improvável”.

Por que improvável? Esta pergunta suscita outras: quais segmentos correspondem ao patronato fazendeiro e à massa de trabalhadores rurais sem-terra e qual o peso relativo de cada um a partir de suas posições antagônicas na estratificação social? Entre os primeiros predominam oligarquias compostas de latifundiários, usineiros e pecuaristas cujo poder funda-se na grande propriedade e no controle da mão-de-obra mediante diversas relações de trabalho que, em alguns casos, recaem em formas contemporâneas de escravidão (vale a leitura do texto "Melaço de sangue", postado por Xacal em http://atrolha.blogspot.com). Essas oligarquias transigem facilmente com o ethos empresarial da agricultura modernizada sem, no entanto, deixar de configurar o segmento mais retrógrado da classe dominante brasileira. Com relação aos sem-terra, mesmo que se queira caracterizá-los pela noção usual de campesinato há de se fazer o devido reparo histórico, pois não se confundem com assalariados rurais, parceiros ou minifundistas senão com uma camada oprimida que se distingue nas classes dominadas do campo ou da cidade por sua luta diária para mobilizar os parcos recursos com os quais consegue minorar a fome e outras privações, não poucas vezes sob ameaça da violência privada de fazendeiros.

Ora, realmente é de se admirar que de um estado de miséria tenha se consolidado uma experiência auto-gestionária como o MST. Subscrevo o argumento de Roberto Torres de que é justamente isso o que assusta. Como esse contingente numeroso, embora pequeno diante das várias categorias de trabalhadores urbanos, provoca tamanha reação em determinados setores da sociedade brasileira? A despeito de valores de feição tradicionalista passíveis de ser atribuídos àquele movimento popular, trata-se, efetivamente, de uma insubordinação às formas arcaicas de vida em que seus membros estão presos antes por constrangimentos objetivos do que por qualquer espécie de apego a uma ilusória comunidade perdida, pois só podem mesmo condenar-se ao futuro ao romperem com as relações de subordinação pessoal vigentes no mundo rural. O temor é que essa idéia de futuro traduza um projeto societário suficientemente abrangente para se contrapor à comunidade de interesses instituída na expansão da fronteira agrícola.

Qual é o projeto dos ruralistas para o Brasil? Em síntese: transformar o país em uma imensa plantation sem deixar nenhuma margem a um modelo de produção que redefina a política social para o mundo rural. A posse da terra parece ser entendida como um direito consuetudinário para a senadora Kátia Abreu e os ruralistas a ela afinados quando expõe com uma clareza desconcertante os limites estreitos do projeto pelo qual ousa defender o indefensável: o acesso aos cofres públicos para financiar suas safras liberado de qualquer mecanismo de revisão dos índices de produtividade agrícola. O que justifica a (falsa) polêmica em torno desses índices, na medida em que ainda são balizados pelo Censo Agropecuário de 1975? Por que há temor entre os ruralistas se o setor agrícola bate recordes de produtividade quase que anualmente? A resposta é simples: qualquer expediente de regulação estatal da propriedade rural deve ser confrontado, porque implica na possibilidade de a terra ser pensada como um bem público e, logo, de esta orientação normativa dotar-se de eficácia nos conflitos de interesses envolvendo a reforma agrária. Daí o questionamento do repasse de recursos públicos ao MST sob a comparação absurda do padrão de produtividade de seus assentamentos com o respectivo à monocultura de exportação da grande propriedade.

Mesmo que quiséssemos resumir o debate a uma questão de desempenho econômico, não deixaria de ser duvidoso o progresso alcançável num quadro de dependência tecnológica de parcela significativa dos insumos (sementes geneticamente modificadas) e adubos pelos quais se pagam royalties a grupos transnacionais titulares de suas patentes. Ademais, a produtividade do setor agrícola ainda é associada ao mito da eterna elasticidade da oferta de terras que resulta, na prática, em grilagem e na ocupação de áreas submetidas à proteção permanente pela legislação ambiental. Um modelo de produção cujo progresso técnico não se converte em saltos qualitativos na oferta de alimentos para o mercado interno. Não obstante, há uma dimensão do problema agrário brasileiro não restrita ao campo econômico. Joel Rufino dos Santos a apreende de modo esclarecedor quando define os sem-terra como a materialização de uma “anomalia histórica” do território brasileiro [4]. Para Santos, o caráter anômalo de nosso processo de territorialização é a convivência de “povo” e “população” no mesmo espaço. Há uma homologia estrutural entre os sem-terra e a escravaria colonial por constituírem antes uma população do que um povo, já que o seu lugar na estratificação social implica estar no Brasil sem ter um lugar em seu território:

“Os elementos característicos do Estado-nação se apresentam no Brasil como retardo. O mais grave desses retardos, o que engole sistematicamente os projetos de desenvolvimento econômico e social, é a desterritorialização primitiva. A posse da terra funda a democracia rural, a apropriação do território funda a nação – esta diferença tem escapado, em geral, aos observadores de nossa história social. Os pobres no Brasil não descendem, como na Europa, de expropriados dos meios de produção, mas de escravos e servos, o que significa despossuídos. O que definia o escravo (negro ou índio) era, antes de tudo, a não-posse do seu próprio corpo – e a ocupação do território é o fundamento do que, no Ocidente, chamamos pessoa humana” (SANTOS, 2004, p.216).

Não é a toa que além dos muitos, mas insuficientes, assentamentos consolidados mediante o aporte do Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), os integrantes do MST ocupem um lugar intersticial no espaço físico e social – os acampamentos entre a cerca e a estrada –, demarcando para parte das massas rurais a parte que lhes cabe na divisão do trabalho: nada. Mesmo a aspiração acalentada por um militante sem-terra de simplesmente partilhar o mínimo socialmente aceitável na distribuição da riqueza a partir de um papel ancilar ao setor agrícola – os cultivos em pequena escala para o abastecimento de mercados locais – é tomada como uma virtual ameaça à conservação das condições adscritas do poder do latifundiário-oligarca, pois qualquer projeto de reforma agrária esbarra na rede de privilégios instituída no monopólio da terra. Daí a obsessão sociopata com a manutenção da ordem, mesmo que em bases ilegais, como o caso “Cutrale” o confirma, uma vez que a primeira “invasão” praticada fora a da empresa ao grilar terras públicas no município de Iaras - SP para a instalação de sua fábrica de sucos, uma informação que longe esteve de configurar o foco da cobertura jornalística. Um dado “menor” em face do efeito performativo produzido pela imagem de destruição de laranjais. Algo a ser avaliado pelo MST em sua ação estratégica.

Ao menos há um ganho inequívoco nessa ocupação. Na luta pela ampliação do possível o MST alcançou o "improvável": o capital cede terreno às lutas sociais por redistribuição, vide a recente e inédita devolução de terras griladas à União por parte de um representante do patronato fazendeiro, a Cutrale, que publicizou a revelância de as terras serem destinadas à reforma agrária [5]. Pasme, até o staff da Cutrale, cuja totalidade de terras ultrapassa em muito a área que grilou em Iaras - SP, consegue ser menos reacionário do que a bancada ruralista em sua posição irredutível de criminalizar esse movimento social.

[2] Disponível em: http://www.mst.org.br/node/8319.

[3] Disponível em:
[4] Cf. Santos, Joel Rufino de. Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres? São Paulo: Global, 2004.

4 comentários:

Roberto Torres disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Roberto Torres disse...

Muito boa a relacao que voce mostrou entre pessoa e território paulo. A autonominzacao da esfera de onde comeca a se constituir a pessoa em condicoes competividas, a socializacao familiar, nao pode ser constituída no contexto rural sem que tenha terra.

Os movimentos por território vao sempre portar este "germe reflexivo" de que uma pessoa nao se forma sem o dominio de um territorio, ainda que este seja movel.

Fabrício Maciel disse...

Mais uma pérola de Paulo Sérgio contra os inimigos do povo. Não há projeto nacional sem o enfrentamento efetivo dos problemas de todas as classes, e não o contrário, como ocorre, a saber, o enfrentamento de uma classe poderosa contra todos os que desafiam seus interesses. O Brasil nunca será uma nação enquanto houver no campo ou na cidade o abandono da ralé, que se reproduz e atualiza através de novos mecanismos, como a referida CPI.

George Gomes Coutinho disse...

Fundamentais informações Paulo! É mais do que o momento de darmos um passo adiante no processo de democratização deste país enfrentando a questão agrária e o lobby encrustado no aparato do Estado que dificulta avançar nesta discussão.

E um dos momentos é a ressignificação do problema, justamente como vc fez, onde uma militância ruralista travestida de jornalismo não faz muito mais do que perpetuar o atual estado de coisas.