terça-feira, 6 de julho de 2010


Falta a Campos dos Goytacazes uma teoria de si mesma? (parte 1)

Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.

(Tolstói)

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Eis a pergunta que continuará impulsionando o debate na blogosfera local e que foi tão bem traduzida por Brand Arenari no texto "Por que nós sempre perdemos para o Garotinho?". Tal pergunta é passível de se materializar em alternativa de poder quando lideranças e organizações da sociedade civil buscam, sem prejuízo de suas reivindicações e interesses específicos, um programa com o qual se possa investir num parâmetro de representação política diverso daquele cristalizado na aceitação, ora ingênua ora cínica, do "garotismo" como modelo de gestão pública tanto pelos setores médios que, para o bem ou para mal, dele se beneficiam, como pela maioria que nele é destituída não apenas de direitos mas da própria crença de que lutar pela efetividade de direitos implica afirmar a realidade como castradora de outras realidades. Estas podem ser antecipadas pelo pensamento desde que este esteja ancorado na crítica dos costumes e das instituições desta "planície lamacenta" por meio de uma comunicação a mais inclusiva possível. Até aqui há relativo consenso em torno desse desiderato à esquerda do espectro político... ao menos quanto aos obstáculos para transformá-lo em ação.

Sem dúvida, é pouco projetarmos no futuro a negação do presente sem reelaborarmos aquela pergunta a partir do dia-a-dia com todas as suas incertezas em relação ao presente imediato dos indivíduos e grupos prisioneiros de necessidades das quais, reiterando o argumento de Brand Arenari, nada sabemos quando não nos tornamos vigilantes perante nosso preconceito de classe. Neste sentido, creio que o historiador Joel Rufino dos Santos contribui para o esforço de homens e mulheres tomarem para si a construção do bem comum em Campos dos Goytacazes, pois cai como uma luva o título de seu livro: Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres? Trata-se de discutir o quão inconclusa é a tarefa a que nós, "intelectuais", comprometemo-nos quando não conseguimos responder, sob uma perspectiva relacional, quem somos "nós" a partir de quem são os "pobres". Joel Rufino lembra algo que, num primeiro olhar parece óbvio, mas que aproximando um pouco mais nossas lentes mostra-se altamente problemático: "Pobre é quem só tem amigos pobres".

Uma das tantas evidências de que pobres são aqueles que, para além das ocupações subalternizadas no mercado de trabalho, continuarão confirmando o que "são" no convívio exclusivo com outros pobres, foi o comentário de uma senhora (cinquenta e tantos anos) quando conversávamos sobre o caso das "Meninas de Guarus". Eis o comentário: "No tempo de Rockfeller de Lima esse problema (a prostituição, em sentido lato) foi resolvido". O contexto de sua fala dizia respeito ao deslocamento do ponto localizado numa rua ao lado da que morava (arredores do Hospital Ferreira Machado). Para essa senhora, a proximidade de mulheres cujo trabalho situava-se numa esfera de transgressão moral era constrangimento suficiente para uma intervenção do governo municipal. A seu ver, agiu-se de modo razoável, pois "foram construídas 'casinhas' para elas em um bairro bem distante" e, assim, as relações de vizinhança voltaram a estar de acordo com o costume das famílias, garantindo o que, nas palavras dela, fora uma "limpeza" do lugar. Ainda que seja discutível a precisão factual sobre as ações do governo da época, seu relato é sugestivo quanto à produção da invisibilidade social dos pobres, no caso, as prostitutas. Na ótica desse senhora de classe média o lugar daquelas trabalhadoras é o "bairro bem distante" tal como um ser cuja presença reclama dialeticamente o seu contrário: a ausência dos(as) pobres até onde suas vistas pudessem alcançar.

Não é aleatório o uso da expressão "bem distante" quando se trata de um evento associado a Guarus, pois antes de ser uma circunscrição político-administrativa, Guarus constitui uma espécie de condensação do medo e da ignorância com os quais os grupos e classes integrados vêem a população que compõe a base da estratificação social em Campos dos Goytacazes, buscando dela se diferenciar por meio de uma distância rígida, mesmo que as não poucas pontes sobre o rio Paraíba do Sul pareçam desmenti-lo. Ademais, a circunscrição do ódio de classe em Campos independe de que sentido se adote ao transitar naquelas pontes. Guarus (e poderíamos incluir a área rural de Campos) é o outro. Contudo, aqui está uma primeira lição de Joel Rufino, é enganoso mirarmos nossas lentes para o "outro" recorrendo à idéia de exclusão. Ora, como é possível estar excluído da sociedade? Há algo exterior à sociedade? A sociologia espontânea afeita àquela idéia tem por efeito negar que a "inclusão" é função da "exclusão", justamente porque uma é a negação da outra, uma antítese que dota a sociedade de um movimento real.

O espraiamento da idéia de exclusão preconiza uma visão dual de sociedade - incluídos versus excluídos - que acaba redundando noutras dicotomias como, por exemplo, atraso versus moderno. O que se omite no tipo de raciocínio que postula o atraso como uma "etapa" a ser vencida rumo ao moderno é que o "atraso" se imiscui no "moderno" como a possibilidade dos pobres se incluírem na sociedade cujo bem-estar se mede pela tentativa das classes economicamente estatutárias os excluírem de seu mundo. Uma segunda lição de Joel Rufino: a tentativa de excluir alguém é ilusória, pois o "excluído sempre bate à porta do seu excluidor, agora como fantasma ou monstro, desestruturando-o". A fantasia, única faculdade humana não sujeita ao princípio de realidade, é o plano no qual a literatura ficcional expõe sentimentos suscitados por conflitos naturalizados pelo uso acrítico do conhecimento especializado:

A história de um país é escrita, de fato, pelo cortejo de fantasmas que é a sua literatura e não pela história que, junto com a moral, internou em papéis amarelecidos os testemunhos das classes perigosas. Os monstros que assombram hoje os habitantes de bem do Rio e de São Paulo (poderíamos acrescentar de Campos) nos sinais, nos estacionamentos, embuçados na noite, são os excluídos da sociologia vulgar. Como fantasmas é que se incluem (SANTOS, 2004, p.33; parênteses meus).

Da extensa lista de autores e obras visitados por Joel Rufino, destaco O coronel e o lobisomem de José Cândido de Carvalho, escritor campista que cavou fundo nosso imaginário social. O duelo entre o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, natural da Praça de São Salvador de Campos dos Goytacazes, e o lobisomem, uma peça de vinte palmos de pêlo e raiva, tem seu pano de fundo na dominação pessoal do coronel-oligarca. Este se apropriava do produto do trabalho dos moradores do latifúndio (homens dependentes) ao assegurar-lhes proteção "contra os monstros" que ameaçavam de fato a própria continuidade da dominação. Desse modo, o estilo irônico e jocoso de José Cândido destrona o coronel Ponciano ao descrever o patético de sua caça ao lobisomem, a criatura que desejava destruir e cuja crença em seus poderes mágicos recriava o poder do coronel em todo o seu arbítrio. Mutatis mutandis, podemos reter dessa estória o princípio de representação política que desde o período da democratização (opto por não usar o prefixo "re") se institui em Campos com a, digamos assim, metamorfose do coronel. Esta seria operada no agrupamento político que sucede a oligarquia do açúcar do processo decisório, vide a ascensão de uma liderança não oriunda de suas fileiras como o Garotinho, engendrando expectativas de mudança suficientes para reagrupar segmentos aspirantes a integrar um projeto de poder que, sabemos, provou em sucessivos governos não estar à altura de uma via programática que superasse a insegurança econômica das camadas baixas da população como moeda de troca sempre à mão no mercado político.

É digno de nota que já se reúnem na blogosfera análises sobre o "garotismo" que, em conjunto, lançam mão de uma louvável dissecação do cadáver político. No entanto, mesmo que sejam jogados (merecidamente) na lata de lixo da história o cadáver que teima em ficar insepulto e suas não poucas carpideiras, o que vem depois? Ora, é provável que as avenidas do poder em Campos continuem fechadas àqueles que não enxergarem alternativas para percorrer caminhos que se encontram além das barreiras de classe que atam a esquerda aos seus pequenos círculos. A aposta de Joel Rufino na literatura como uma "experiência vivida" (Erlebnis) da qual não pode se ausentar a história do presente vai ao encontro de uma tarefa que se agiganta em nossa militância: questionar a percepção (tentadora, eu sei) de que, a despeito dos conflitos pelos quais tomamos posição, nada muda em Campos.

(Continua...)

8 comentários:

Roberto Torres disse...

Ótima reflexao Paulo. Achei interessante a forma como voce observou o binomio da incluscao/exclusao, sobretudo a tendencia de ver a exclusao como algo que nao é produto das operacoes sociais que produzem a própria inclusao. Neste sentido, a questao com a qual voce encerra, parece indicar que erramos ao achar que nada munda em Campos justamente por partimos sempre do pressupostos de que a "ralé" é excluída, como se a exlusao que descrevemos nao fosse sempre resultado de uma inclusao subalterna, mas ainda assim dotada de sentido.

Abraco

Brand Arenari disse...

Belo texto paulo, estou no aguardo da continuacao.
Um abraco.

douglas da mata disse...

Bissexto na peridiocidade de publicação, mas preciso como sempre!

Ótimo texto.

Fabrício Maciel disse...

Lindo texto Paulo, digno de quem conhece bem sua cidade, nao por acaso Guarus e seus interstícios que nunca aparecem na mídia sempre foram o nixo tanto do Garotismo quanto do coronelismo dos anos 80.

Paulo Sérgio Ribeiro disse...

Vou tentar ser menos "bissexto", Douglas (rs). Abraço a todos.

Mr Gayrrisson disse...

Ei, que tal dar uma força paras as bibas da cidade?

Acrescenta o blog www.camposdosgaytacazes.blogspot a sua lista de blogs, que acha?

Bjx!

Ps, isso é "luta por reconhecimento" viu!?

douglas da mata disse...

Mr Gayrisson,

Eu tive a garantia do pessoal daqui que vão apoiar a causa, e inclusive, muitos deles pensam em fazer Antropologia ou História, como formação complementar.

Rs.

Brand Arenari disse...

Gayrrisson, em breve nós vamos dar uma repaginada no Blog, fazer uma mudanca legal, aí reorganizaremos a lista, e adicionaremos o seu na lista.
Vou falar com a galera do blog que tá aí em Campos para dar um apoio. É que eles sao tímidos, nao gostam de aparecer, vao dar um apoio só por trás.