O assassinato de Eliza Samudio em que está envolvido como suspeito o goleiro Bruno, ex-capitão do Flamengo, vencedor do último campeonato brasileiro de futebol, não deve ficar confinado às páginas do noticiário policial. O horror que ele suscita por seu enredo escabroso, a história dos personagens, a gratuidade do crime, a forma da execução ? os restos mortais da vítima foram lançados a cães para serem devorados -, a presença do mal em estado bruto, tudo isso reclama que se olhe para além das patologias dos indivíduos já indiciados como culpados. Em primeiro lugar para o clube, agremiação mais que centenária, e para a estrutura do futebol, o esporte de massas que é uma paixão nacional. Em segundo, para o tipo de sociabilidade selvagem, à margem da vida civil, que se reproduz em escala crescente e que encontra na cultura do narcotráfico e do consumismo, alçado a valor supremo, os seus paradigmas.
Bruno, um dos mais altos salários do seu clube, era uma liderança, portando a braçadeira de capitão por indicação de seus dirigentes, em que pese várias manifestações arrogantes de sua parte, inclusive nas relações com o seu técnico, e já se envolvera, com alguns colegas, em escândalos públicos em festas promovidas em domínios territoriais do narcotráfico. Em uma dessas ocasiões, proferiu uma declaração em que, explicitamente, admitiu ser normal a violência física entre casais, e, embora sua agremiação desportiva fosse dirigida por uma mulher ? uma ex-atleta olímpica -, manteve a honraria da braçadeira.
Registre-se, ainda, que dois companheiros de clube, como o noticiário esportivo com frequência denunciava, eram contumazes participantes de pagodes em redutos do crime organizado, um deles fotografado ao lado de marginais armados com metralhadoras, o outro levado à polícia para esclarecer relações mercantis com notórias lideranças do mundo do tráfico em favelas cariocas.
Para ela, o futebol do país se resume a ser mais um ator no processo de globalização dessa atividade esportiva graças à qualidade dos seus praticantes, um celeiro de craques de exportação. Nesse sentido, a expressão esportiva e cultural que ele representa se encontra crescentemente contaminada pela ameaça de ser submetida inteiramente à lógica mercantil. E não à toa não se pode mais descrever a sua história atual sem incluir o papel dos empresários no recrutamento de jovens jogadores talentosos que passam a administrar suas carreiras, relegando o papel das agremiações esportivas a um lugar subordinado, quando não inteiramente ausente, na sua formação como homens e cidadãos.
Os frutos bem-sucedidos desse sistema se convertem em mercadorias do mercado globalizado do futebol, as transferências para os milionários clubes europeus, para onde migram cada vez mais jovens, significando a realização de suas carreiras. Nada mais natural que seus praticantes, desde cedo sem tempo para se dedicarem aos estudos, encapsulados na bolha do mundo do futebol, manifestem fortes opções religiosas, em geral pentecostais, aí encontrando escoras emocionais que lhes permitam suportar as pressões do mercado que condiciona suas vidas.
Sem essas escoras, seus profissionais, com uma educação formal em geral precária, muitos vindos de lares destroçados - o caso de Bruno -, se veem à mercê da cultura do consumismo, o tempo livre de jogos e treinamentos dissipados em meio a uma legião de fãs, sua presença prestigiosa disputada em pagodes e orgias em que são convidados de honra. Os clubes, indiferentes ao comportamento dos seus profissionais, cerram os olhos a seus desvios de conduta, por sua vez prisioneiros da lógica de resultados que comanda o futebol. Assim, os clubes e seus heróis do maior esporte de massas do país, que poderiam exercer um papel na difusão dos valores civis na formação da juventude, tornam-se uma vitrine a estimular o hedonismo e o comportamento narcísico.
Futebol é cultura - no nosso caso uma de suas mais vigorosas manifestações -, fazendo as vezes de uma escola moderna em que se ensina a competir sob a jurisdição de regras interpretadas por um árbitro e que são de prévio conhecimento dos seus praticantes e do seu público. Atividade generalizada na juventude do nosso país, presente no mais remoto dos rincões, a política e os partidos não podem ser estranhos a ela, esperando-se da sua intervenção a criação de regras que venham a atuar no processo de formação dos seus profissionais, que chegam a ela, em muitos casos, como pré-adolescentes. De outra parte, cabe à opinião pública, reclamar que os clubes adotem padrões de conduta que impeçam os seus atletas de manterem relações privilegiadas com o submundo da criminalidade.
Entre tantos fatos estarrecedores no caso de Bruno, está a revelação de que ele estava conscientemente envolvido com personagens e com os padrões vigentes nas redes do crime organizado. Só faltou o uso de micro-ondas na eliminação da pobre Eliza para tornar ainda mais evidente as impressões digitais da cultura do narcotráfico nesse caso.
Luiz Werneck Vianna é professor-visitante da UERJ e ex-presidente da Anpocs. Escreve às segundas-feiras.
3 comentários:
Engraçado...
No sábado passado eu comentei com o Luiz Ribeiro sobre a necessidade de o clube exercer algum tipo de formação educacional cidadã junto a estens jovens que ascendem profissionalmente/financeiramente tão rápido e evidentemente sem estrutura emocional para lidar com isto.
O ensaio do Luiz Werneck Vianna traz alguns enfoques interessantes sobre a proximidade de alguns jogadores com o mundo do tráfico e seus valores, mas não se aprofunda o suficiente no mundo da política, dos empresários, da evasão fiscal e do lucro fácil em que vivem os cartolas, todos oriundos de classes mais abastadas e que em última análise, à meu ver, modelam a exclusão social que gera a cultura da violência e da subversão.
Ao debate...
Concordo com voce Cláudio.
é comum a ressalva de que eleger culpados nao resolve nenhum problema. Eu acho que sem eleger bem esses culpados é que nao se resolve. rs.
Mas claro que a atribuicao de culpa nao deve subistituir uma explicacao mais complexa do tema.
Nesse caso, acho que, além dos cartolas, os empresários tem um papel muito importante, uma vez que a eles tem cabido a "formacao dos atletas". Na verdade, creio ser este o ponto. O que podemos entender como a formacao dos atletas? Porque ela era feita de forma bem sucedida antes e nao mais agora? Ou melhor, será mesmo que era feita de forma bem sucedida antes ou é poque antes a "cultura do narcotráfico" nao era tao forte nas periferias e entre "famílias desestruturadas" como é agora?
Neste sentido eu acho interessante dois aspéctos. O primeiro é discutir em que medida o clube pode, de fato, desempemhar esse papel de formacao da pessoa, do "habitus". Talvez o fato das carreiras se tornarem mais flexíveis tenha diminuído este poder dos clubes. Neste sentido, talvez seja mais fácil de compreender a "opcao pentencostal" entre muitos atletas, os quais se destacam pelo esforco de se manterem distantes deste mundo hedonista que engoliu o Bruno.
O segundo ponto é em que medida a origem social do atleta compromete todo o esforco seguinte. Aqui penso especificamente na questao das famílias desestruturadas, que na verdade sao sim estruturadas, mas para formar pessoas com outras disposicoes, diferentes daquelas que vem das famílias "corretamente estruturadas". É importante perceber que, assim como nao existe "família desestruturada", também nao existe pessoa nao socializada. Ou seja, mesmo o deliquente, mesmo o "mal em estado bruto" foi socializado de algum modo.
abraco
Decididamente acho que a maior lacuna do texto é ausência de qualquer menção a respeito da mulher na cultura ocidental, o seu lugar na cultura e nas práticas sociais..
Algo muitíssimo bem trabalhado por Bourdieu apresentando a mulher enquanto "ser percebido" e "dona" postiça de seu corpo.. Um dos únicos capitais que são incentivadas a manejar em prol do deleite do outro, igualmente dominado nessa relação mas, em vantagem relativa inegável...
Postar um comentário