Davilym Dourado/Valor |
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Chico de Oliveira: "Lula tenta se legitimar por consensos que passam pela cooptação dos pobres. Bolsa Família não é direito, é dádiva" |
Intelectual historicamente identificado com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tendo sido filiado ao PT até 2003, o professor aposentado de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) Francisco de Oliveira tornou-se ao longo do atual governo um dos mais cáusticos críticos à esquerda do lulismo. Para este ano, o acadêmico pernambucano de 75 anos, conhecido como Chico de Oliveira, prepara um livro que irá retratar a construção de uma hegemonia às avessas. Ou seja: como um líder popular carismático trabalharia no sentido contrário aos interesses da base que o elegeu.
No ano em que rompeu com o PT, Oliveira desferiu no front literário um dos mais contundentes ataques sofridos por Lula, ao escrever "o Ornitorrinco", um posfácio ao seu livro "Crítica da Razão Dualista", editado pela primeira vez em 1972.
Neste posfácio, Oliveira procurou fazer uma aproximação entre a elite dirigente do PT e a da oposição tucana, que teriam como grande traço de união o controle do acesso a fundos públicos.
Em setembro de 2004, Oliveira participou da criação do P-SOL, formado por dissidentes do PT que discordavam da moderação econômica do governo Lula, particularmente da reforma da previdência. Meses depois, o partido receberia outra maré de adesões de desiludidos com o petismo depois da eclosão do escândalo do mensalão.
Com a eleição de 2006, ocorre um novo afastamento. Oliveira discordou da condução da candidatura presidencial da então senadora Heloísa Helena (AL), sobretudo da decisão da sigla de permanecer neutra no segundo turno da eleição presidencial, e declarou voto pela reeleição de Lula. Chegou a definir a campanha da candidata do P-SOL, calcada nas denúncias contra o governo federal no plano ético, como um "udenismo de esquerda".
No início da crise econômica global, em janeiro deste ano, Oliveira propôs que o governo federal radicalizasse suas políticas de desenvolvimento, sugerindo que se criassem "cinco Embraer por ano", uma maneira de defender a maior participação do Estado na economia. Mas a ausência de mudanças na estratégia governamental ao longo deste ano fez com que o sociólogo voltasse à posição crítica dos últimos tempos.
Nesta entrevista, concedida por telefone ao Valor, Chico de Oliveira demonstra ceticismo em relação a mudanças no quadro político com as eleições presidenciais do próximo ano. Eis a entrevista:
Valor: Qual a avaliação que o senhor faz do governo Lula, já em seu penúltimo ano? O senhor rompeu publicamente com o PT em 2003, mas depois declarou voto pela reeleição de Lula em 2006...
Francisco de Oliveira : A minha declaração de voto em 2006 foi uma atitude política. Lula estava sob ataque de forças opositoras naquele momento e havia a esperança, uma palavra que nem gosto de usar, de que um segundo mandato fosse promotor de mudanças, mas hoje podemos ver que não houve nenhuma mudança e essa chance passou. O governo de Lula, concretamente, não demonstrou nenhum avanço social no plano dos direitos. Do ponto de vista da condução econômica é uma administração medíocre, que pensou que se salvaria da crise global e percebe-se que não tem nenhum domínio da situação. Economicamente o governo Lula é um barco à deriva, que se as ondas forem boas chega a um bom porto, e caso contrário, não.
Valor: Que comparação pode-se fazer com o governo FHC?
Oliveira: Lula está à direita de Fernando Henrique [Cardoso] ao não recompor as estruturas do Estado e não avançar na ampliação de direitos. O presidente tenta se legitimar promovendo consensos que passam pela cooptação dos mais pobres. O Bolsa Família não é um direito, mas uma dádiva. Neste sentido, vivemos na gestão dele uma regressão política, porque no governo Lula houve uma diminuição do grau de participação popular na esfera pública. E quando se projeta o cenário de 2010 percebe-se como Lula resulta regressivo. Com a força perdida pelo PT e a ausência de alternativas de Lula, uma vez que a doença de sua candidata mostra sinais de gravidade, aparece o terceiro mandato.
Valor: O senhor acha que o governo está criando um caldo de cultura para o terceiro mandato?
Oliveira: Sim, porque Lula aparece, para os olhos de determinados segmentos do meio político e popular, como o homem providencial. E neste sentido a possibilidade de um terceiro mandato é perigosa. Getúlio [Vargas] ensaiou isso com o queremismo, em 1945. Agora, pode muito bem surgir um queremismo lulista: o povo ir às ruas para pedir a continuidade do governo.
Valor: E o senhor acha que o povo irá às ruas?
Oliveira: Não digo o povo, uma categoria imprecisa, mas o PT e a CUT ainda têm capacidade para promover barulho, e barulho é o que é decisivo em uma questão como essa.
Valor: Porque no campo da esquerda nem o P-SOL, nem outras siglas conseguiram se firmar como alternativas a Lula?
Oliveira: Nada surgiu porque, ao tornar-se um mito popular, Lula tornou-se infuso à política. Ele produz um consenso de forças sociais, que estão todas muito contentes com o governo, e assim torna impossível ao eleitorado fazer escolhas reais. Isto explica porque Heloísa Helena, apesar do apelo popular que teve e tem, não se tornar uma alternativa. Vivemos um consenso conservador, no sentido de não se transformar nada, mesmo com a presença das massas populares neste consenso.
Valor: Ao romper com o PT, o senhor disse que o partido poderia ter o mesmo destino do peronismo, tornando-se uma força política que não consegue ter referências ideológicas e prende-se ao espólio de uma liderança...
Oliveira: Se fiz esta aproximação, foi um equívoco meu. A mídia brasileira por vezes passa uma ideia equivocada do que foi [Juan Domingo] Perón na Argentina. O Perón não despolitizou o país. Sob o vezo do autoritarismo, em seu período se produziu uma ampliação de direitos tal que a tradicional oligarquia argentina jamais se recuperou. No caso de Lula, está ocorrendo exatamente o contrário, a diminuição do espaço da política na sociedade.
Valor: O governo Lula não investiu na inclusão de minorias nos espaços de poder, por meio de políticas de ação afirmativas para negros e mulheres?
Oliveira: Ele tomou os vestígios de um discurso sociológico fajuto para negar o conflito de classes. Veja, com a análise da questão das classes se mata as charadas no Brasil. Quando a gente pensa a sociedade por meio destas clivagens de gênero e raça, não se mata charada nenhuma. O problema do Brasil é de uma grande maioria, virtual totalidade mulata, e não pode ser resolvido por políticas afirmativas étnicas, diferentemente do que ocorre na Bolívia e na Venezuela, onde a chave étnica é decisiva. Para resolver os problemas de exclusão social no Brasil, é preciso enfrentar problemas de classe. A política de cotas só faz reafirmar a exclusão. Qual as chances concretas que um negro com grau universitário obtido graças às cotas ampliação de direitos combatem a discriminação.
Valor: O senhor analisa o governo Lula como o autor de uma guinada conservadora, mas, com instrumentos como a Carta ao Povo Brasileiro, Lula já não se elegeu sob este signo?
Oliveira: Pelo contrário, Lula foi eleito em um processo de força popular crescente de um movimento político, que acumulou energia de eleição em eleição desde os anos 80. Não foi um episódio que se resume à crônica de 2002, foi um processo longo. Lula foi eleito com uma base progressista. Não houve nenhuma chancela do eleitorado para o que ele faria a seguir.
Valor: Além de sua gestão econômica até certo ponto surpreendente, o primeiro mandato de Lula foi marcado pelos escândalos na área ética, dos quais o do mensalão foi o mais emblemático. Por que a ressonância popular destes problemas foi zero?
Oliveira: Há uma tendência popular de nivelar a todos. Historicamente, a questão ética só estigmatiza políticos de estatura menor, como os exemplos recentes de [Paulo] Maluf e [Orestes] Quércia. Gostaria que tivesse sido diferente, mas este fator jamais foi decisivo em eleições brasileiras e não será na próxima.
Valor: Qual o balanço que o senhor faz da oposição brasileira nestes últimos sete anos?
Oliveira: Que crítica a oposição pode fazer ao governo Lula? Objetivamente nenhuma. Os governadores José Serra e Aécio Neves estão do mesmo lado. Em termos concretos, já há tempos a oposição deixou de existir. Isto porque a política no Brasil perdeu a capacidade decisória.
Valor: Que diferenças o senhor identifica entre Serra e Aécio?
Oliveira: Rejeito ambos por motivos diferentes. Aécio parece mais um político superficial que se faz sob a herança política familiar. Nunca vi uma opinião dele que impressionasse. Serra é uma surpresa. Faz um governo gerencial e até reacionário, ao lidar com o funcionalismo e com a universidade pública. É um político que gradualmente se converteu, quando vemos o passado dele e o local onde atua agora. É o grande líder conservador.
Valor: Sob que signo será disputada a eleição presidencial do próximo ano?
Oliveira: A eleição de 2010 será despolitizada e regionalista. Vejo agora a articulação entre São Paulo e Minas. Antes era o café com leite, hoje talvez seja o café com leite de um lado, a cana e a indústria do outro... a eleição caminha para ser uma disputa entre a confluência de São Paulo com Minas em contraposição à confluência do Nordeste e do Norte. É uma disputa que se dá em termos regionais, sem nenhum ponto político, nenhuma discussão de concepção propriamente política. Ao criar um consenso, Lula foi fortemente despolitizador. É uma dinâmica diferente do tempo de Fernando Henrique. Fernando Henrique buscou subjugar as forças contrárias, Lula as desmobiliza.
Valor: E que papel jogam atualmente os movimentos sociais?
Oliveira: Os movimentos sociais estão apagados, porque tratam-se em sua maioria de articulações em torno de objetivos pontuais, o que tornam limitadas as possibilidades de crescimento. O mais importante deles, que é o MST, busca saídas para a sobrevivência.
Valor: Esta desmobilização política não é um fenômeno global?
Oliveira: Ela é um fenômeno mundial. A França elegeu [Nicolas] Sarkozy, um direitista que se disfarça. Nos Estados Unidos, temos [Barack] Obama, que está recuando de suas posições iniciais. Na Alemanha, Ângela Merkel faz uma conciliação que junta sociais democratas e conservadores. E na Rússia, há um florescer do autocratismo. Todo mundo está convergindo para um ponto médio, que é uma espécie de anulação das posições. Mas no Brasil é mais grave, porque aqui a desigualdade é muito maior.
20 comentários:
Acho que o que mais incomoda intelectuais de esquerda como esse , que embora tenham uma "luz"em insistir na teoria do valor trabalho para compreender o capitalismo (o que deveria ser apenas o começo..) sempre olharam para a luta de classes no Brasil como se estivéssemos na Europa, como se aqui houvesse uma classe trabalhadora, é o fato de que Lula no fundo é melhor sociólogo do que eles. Tudo que não ntra no modelo de uma mobilizaçao sindical ele ve como cooptação e despolitização. Não há espaço para o carisma como possibilidade de mobilização, entoando irremediavelmente a hegemonia de uma esfera pública onde nao há espaço para os pobres sem a mobilização que ele considera legal. Que seja uma dádiva o Bolsa Família! Que ele torne os pobres clientes permanentes e exigentes de um Estado que proponha a lhes assegurar a sobrevivência! A dádiva, quando tornada segura e impessoal, é o próprio mecanismo da moralidade, do bem comum. Dádiva não se opõe a direitos. Ao contrário, é a condiçao de sentir depositário de uma igniçao moral por parte do Estado que pode gerar o impulso para exigir mais deste Estado. Se para Francisco de Oliveira a questão da fome e da provição familiar, com imperativos de aprendizado prático sobre o lidar com o futuro dos filhos, é sinal de esvaziamento da esfera pública é porque ele ainda (?) não entendeu o que significa fazer política para os pobres nesse país.
Roberto, eu concordo que ele se equivoca neste ponto do Bolsa família. No entanto, acho importante explorar um certo inconformismo que, ainda que um pouco mal feito, aponta para um tipo de despolitização social novo que vivemos e ainda precisamos analisar. Diferente do discurso predominante dos novos tempos e da conciliação, incorporado principalmente por Obama, ele pelo menos percebe que há uma questão de classe, que ficar em questões de gênero ou étnicas não é suficiente, e que Lula conseguiu um feito, apesar de todos os pontos altos de seu governo que apreciamos e que ele ignora por ressentimento, qual seja, o de se tornar um mito quase incriticável. Concordo que devemos meditar sobre isso, pois é perigoso para a democracia, ainda que seu governo seja melhor do que FHc, em quase tudo, no que Chico tb se equivoca por ressentimento. Mas a insistência, ainda que fraca, de não ceder ao discurso do conformismo e da conciliação predominante é um ímpeto com o qual compartilho e do qual não quero me afastar. grande abraço e obrigado a Vitor pela entrevista, ela põe um debate crucial no momento certo.
Fabrício, só que eu não acho que haja mais conformismo hoje do que antes. E a mobilização que falta não é porque Lula esteja se tornando um Mito inatacável. Acho que a figura dele contribui para explicitar os conflitos de classe. Não adianta o cara usar a idéia de classes sem apontar para a especificidade da ralé, como se ela pudesse ser mobilizada no lastro da classe trabalhadora. É por perceber que este lastro já não tem poder de mobilização que eu acredito no diagnóstico do Mangabeira: se há um idela de vida ligado ao trabalho capaz de mobilizar pelo menos parte da ralé ele tem a ver muito mais com a condição pequeno-burguesa.
O messianismo de esquerda é libertário? Qual é a opinião da ilustremissionária Heloísa Helena sobre o aborto? Para o governo Lula é uma questão de saúde pública que deve ser debatida pela sociedade brasileira! Para a Madre Teresa do psol é um tema tabu pois não se coaduna com suas crenças religiosas fundamentalistas! Sobre o bolsa família: por que será que os juízos de valor essencialistas do professor Chico de Oliveira tem o mesmo alvo político do da agenda dogmática neoliberal? Se dizer de esquerda e não apresentar nenhum projeto real ou proposta de política pública é ridículo!
A vaidade narcísica é o ópio dos intelectuais!
Apesar do grande respeito que tenho pelas analises econômicas de Francisco de Oliveira, quando se trata de política, o mesmo intelectual se mostra de uma fragilidade analítica sem tamanho. Segundo Chico de Oliveira, Lula estaria a direita de FHC, pois que, ao contrário desse último presidente que em seu governo estimulava a mobilização politização ao tentar impor e subjugar os interesses de classe – Lula com sua política de “consenso transclassista”, estaria desmobilizando e enfraquecendo as forças progressistas da sociedade. Além disso, ainda conforme Chico de Oliveira, políticas como Bolsa Família funcionariam mais como uma dádiva do que um direito social legitimo. Bom, me desculpe Chico, mas essa análise é de um absurdo sem tamanho. Situar Lula como politicamente mais atrasado do que FHC simplesmente porque Lula adota o consenso como instrumento de ação política, enquanto que FHC com sua ação política truculenta e até em alguns casos violenta ( Lembrem-se de Carajás e da perseguição ao MST), seria mais progressista, na medida que estimula a luta de classes é típico de uma análise marxista rasteira. Lembro-me bem daquela máxima marxista da teoria da lutas de classes, isto é, da passagem da “classe em si” para a “classe para si”. Na primeira situação, teríamos o consenso transclassista acerca da ordem burguesa. Porém, com a irremediável “contradição de classes”, passaríamos para uma nova etapa política descrita de “antagonismo de classe”. Esta, por sua vez, com a sua radicalização, resultaria na “luta de classes” e, consequentemente, na revolução. Seguindo esse raciocínio, Lula estaria impedindo essa passagem “natural” e necessária dos conflitos de classe ao instituir consensos mais ou menos transclassistas. Um dos vários problemas nesse tipo de análise da luta política é que não leva em consideração os feitos práticos disso. Se, segundo Chico de Oliveira, FHC foi mais progressista do ponto de vista da ação política, pois seu governo foi um período de grande mobilização das forças antagônicas, por que as forças progressistas, assim como os trabalhadores de maneira geral, colecionaram mais derrotas políticas e sociais do que em qualquer outro período histórico (greves nas universidades sem resultados satisfatórios, privatização geral, criminalização dos movimentos sociais, sindicatos sem prestigio algum)? Alguém aqui lembra de alguma conquista social relevante das classes trabalhadoras no governo FHC? Qual foi??? E o Estado? Quantos concursos houve no governo FHC? Quantos houve no governo Lula? Concurso publico não significar o estado, mas recrutar e forma um corpo de especialistas burocratas (fundamental para o funcionamento do aparelho de estado, diria Weber). Bem, Chico de Oliveira não quer tematizar isso, pois significa repensar o seu enquadramento “tosco” de situar Lula como um “líder conservador”. E francamente, trocar o nome de “direito” por “dádiva” é muita malícia retórica de Chico de Oliveira...
Olá pessoal, gostaria de fazer alguns apontamentos sobre o tema.
Em primeiro lugar, tenho uma discordância bem profunda com o Roberto no que diz respeito à classe trabalhadora no Brasil. A chamada "ralé" é, ela sim, classe trabalhadora também, ou seja, para usar um conceito do Ricardo Antunes, uma parte fundamental da "classe-que-vive-do-trabalho" e, ainda mais, a suposta "ralé" é parte de um proletariado crescente - e não decrescente - na sociedade, entendendo este conceito como definição dos trabalhadores assalariados. No entanto, a partir daí, concluir que a única forma de organizar e mobilizar esta ampla, complexa e heterogênea classe trabalhadora é pela via sindical é um absurdo, na verdade, ninguém defende mais isso. A luta de classes é um imperativo téorico-prático mais efetivo e necessário hoje do que antes.
Com relação ao Bolsa-Família é importante apontar algumas coisas. Se por um lado, ele é um mecanismo que não pode ter sua eficiência imediata e urgente contra a indigência de milhões negada, por outro lado, não podemos também perder de vista o fato de que ele se coloca como um suporte político de um modelo de gestão econômico-social - ainda profundamente preso aos pressupostos neoliberais - que reproduz precarização das condições de vida das maiorias por todos os lados. Incorporar a concepção estadunidense de política social é um desastre e um retrocesso radical no Brasil. Política social como suavização da miséria dos "perdedores" e sobrantes numa sociedade de mercado, e não como garantia universal de direitos fundamentais por parte da esfera pública, é justamente a concepção do grande capital financeiro.
Por último, a afirmação de que Lula está à direita de FHC é descabida, no entanto, o fato é que Lula serve de modo muito mais eficiente que FHC ao propósito de estabilização da dominação burguesa sobre a sociedade brasileira. O consenso conservador está objetivamente posto na realidade e a cooptação de grande parte dos movimentos sociais e da intelectualidade progressista é um de seus eixos básicos.
Um abraço e sigamos o debate!
Roberto, trata-se de tematizar a especificidade do conformismo atual, não é que não tenha havido um antes. Não vejo como Lula ajuda a explicitar conflitos de classe. Pelo contrário, ele me parece a encarnação da brasilidade mais perfeita de toda a história, por isso consegue administrar uma síntese de forças sociais distintas como raramente se fez e assim manter sua governabilidade.
Caro Maycon, o critério do trabalho assalariado para qualificar a classe a ralé como classe que vice do trabalho nao se sustenta empiricamente. Parte significativa desta classe vive de bicos e trabalhaos autonomos desqualificados, o que torna muito improvável a possibilidade de sua identidade ser constituída coletivamente em relacao ao salário e em oposição ao capital. Quando falo que nao existe classe trabalhadora no Brasil é no sentido desta identidade.
Concordo que o Bolsa Família serve também para tirar o foco da luta por outros direitos. Acho que políticas para uma classe tendem sempre a ser em alguma medida nao universais, na medida em que se trata de combater condiçoes subhumanas que nao sao universais.
Fabrício, Lula ajuda a explicitar o conflito de classes na medida em que ele torna visível as demandas de uma classe (comer, receber ajuda para construir familia) e na medida em que ele tenta demonstrar que parte da rejeiçao que possui da classe média e uma rejeiçao aos pobres. Ele diz isso com muita frequencia.
Nao acho que o fato dele conseguir admnistrar um consenso tenha a ver com brasilidade. O otimismo com a economia, que o sustenta para alem dos pobres, e um fator legitimador em qualquer lugar do mundo. Brasilidade nao explica isso.
Caro Roberto, eu já estava sentindo falta de nossos debates. Bem, vamos lá, ainda que eu não esteja de posse dos dados, e ainda que haja uma considerável parcela da população que viva como proprietários das próprias pequenas bancas de camelôs ou das próprias vans que dirigem, o fato é que, nos setores populares, estes não são maioria.
Ainda que na atividade informal, maioria é aquela que trabalha destituída dos recursos fundamentais que garantem sua fonte de renda,atuando como empregados das bancas de camelôs alheias, como cobradores nas kombis e vans alheias e etc. O fato é que o salário, pago por mês, por dia, ou por tarefa, possui a mesma natureza, é expressão da extração de sobre-trabalho e, na concepção clássica de classe (marxista), define em sua ampla heterogeneidade o proletariado.
A identidade comum e a solidariedade ativa na ação política enquanto classe é o resultado de uma ação político-cultural própria aos socialistas no interior da classe definida a partir da posição dos indivíduos na organização econômica da sociedade, e não é, nem nunca foi, um dado nascido espontaneamente na realidade social.
Quanto ao governo Lula, caro companheiro, entendo que é necessária uma leitura mais atenta à dinâmica concreta de suas ações. A manutenção de um sistema tributário altamente regressivo, a continuidade de uma situação de total desregulamentação dos fluxos de capital, o apoio ativo à expansão do agronegócio por sobre a ruína da agricultura familiar, da reforma agrária e da política ambiental, a promoção interna e externa dos interesses das grandes empreiteiras e corporações monopolísticas, inclusive financiadas com recursos públicos para o processo de aprofundamento da concentração de capitais, o favorecimento à desnacionalização da economia, o contingenciamento dos investimentos públicos em saúde e educação, os pronunciamentos contrários à luta sindical pela defesa dos salários e empregos, todos estes aspectos determinam o caráter de classe do governo Lula, são irrefutáveis enão favorecem os trabalhadores, o povo e nem a "ralé".
"Com relação ao Bolsa-Família é importante apontar algumas coisas. Se por um lado, ele é um mecanismo que não pode ter sua eficiência imediata e urgente contra a indigência de milhões negada, por outro lado, não podemos também perder de vista o fato de que ele se coloca como um suporte político de um modelo de gestão econômico-social - ainda profundamente preso aos pressupostos neoliberais - que reproduz precarização das condições de vida das maiorias por todos os lados. Incorporar a concepção estadunidense de política social é um desastre e um retrocesso radical no Brasil. Política social como suavização da miséria dos "perdedores" e sobrantes numa sociedade de mercado, e não como garantia universal de direitos fundamentais por parte da esfera pública, é justamente a concepção do grande capital financeiro"
Sobre essa passagem, o colega demonstra total desconhecimento sobre a história e os modelos de políticas sociais. A concepção estadunidense de política social é liberal, isto é, o social não deve ser objeto de ação direta do estado. É função da própria sociedade civil organizada – sob a forma de fundações, ONGs , etc - assumir a agenda do social. Isso porque para os liberais “o trabalho é a melhor fonte de respeito do que um cheque do governo”. Ainda, segundo os liberais, qualquer forma de política social que parte do estado é interpretada como estimulo ao parasitismo estatal. Essa crença de que a dependência estatal é humilhante ficou conhecida como “tese da infantilização”. A concepção que originou o bolsa-familia é a de renda mínima e tem origem na doutrina do Welfare State. Segundo essa doutrina, a realização plena da cidadania passa pela cobertura dos três direitos fundamentais (político, jurídico e social) Para a doutrina estadunidense, apenas os dois primeiros (jurídico e político) devem ser objetos de cobertura estatal. Radicalmente diferente do modelo europeu que postula que a cidadania implica fornecer a cada cidadão condições de vida minimamente dignas (comida, moradia, educação e saúde) para a sua plena realização. Os neo-liberais são radicalmente contra políticas de renda mínima. Aliás, algo em comum com os marxistas ortodoxos (claro que por razões diferentes). Para os liberais, a dependência estatal é traço de condição humilhante e de parasitismo social. Para os marxistas, instrumento de desmobilização política das classes trabalhadoras. Duas faces da mesma moeda...! O colega precisa estudar mais a doutrina estadudinense de política social. Se conhecesse bem, saberia que o modelo americano de política social foi importado no governo FHC com a idéia de transferir para o terceiro setor a agenda social.
Continuando...
o colega Maycon também afirma:
"Por último, a afirmação de que Lula está à direita de FHC é descabida, no entanto, o fato é que Lula serve de modo muito mais eficiente que FHC ao propósito de estabilização da dominação burguesa sobre a sociedade brasileira. O consenso conservador está objetivamente posto na realidade e a cooptação de grande parte dos movimentos sociais e da intelectualidade progressista é um de seus eixos básicos."
Embora possa reconhecer o papel de Lula na reprodução da ordem de dominação burguesa, afirmar que ele “serve de modo mais eficiente do que FHC aos interesses da burguesia” é ridículo e não tem base empírica alguma. No governo FHC, os estratos da burguesia que se encontravam no aparelho de estado eram homogêneos, não havia praticamente conflito interno na esfera do poder. A burguesia simplesmente realizava sua dominação estatal sem qualquer tipo de interferência (havia um consenso de classe no interior na esfera estatal). Quanto aos outros estratos de classe ( pequena-burguesia, classe média, trabalhadores urbanos e camponeses), estes se encontravam fora do Estado em situação de crescente marginalização social. No governo Lula, houve uma mudança na distribuição de poder na esfera política. Novos estratos, oriundos de diferentes camadas da própria burguesia (tecnocratas, desenvolvimentistas) e das classes trabalhadoras (ambientalistas, sindicalitstas, camponeses) foram inseridos na arena estatal, constituindo um espaço pluriclassista, marcado por lutas por posição no interior da máquina estatal - basta lembrar os diversos atritos entre membros da pasta econômica do governo, a exemplo do desenvolvimentitas x monetaristas. Ou mesmo a disputa entre a pasta do meio ambiente e a pasta da agricultura). Até mesmo internamente entre agentes econômicos das finanças (fundos de pensão x banqueiros como Daniel Dantas). FHC já previa essa situação e apostava na incapacidade de Lula para gerir esses conflitos de estratos de classes na própria esfera estatal. É tanto, segundo o mesmo, não imaginava que Lula conclui-se o seu mandato com índice elevado de popularidade. Em certa medida, Lula demonstrou maior competência para gerir conflitos internos do que FHC. E num ambiente marcado pela ausência constante A grande questão posta atualmente é sobre como reagirá esses diferentes estratos diante da possibilidade de perder o poder num eventual novo governo. É isso que pode produzir um consenso político em torno do chamado “queremismo” de Lula. Algo que Luis Wenerki Vianna vem problematizando atualmente.Esses conflitos de classe na esfera estatal praticamente inexistiam no governo FHC. Isso é um fato empírico, não especulação aprioristica
Caro Pescador, a necessidade de defender o governo Lula da crítica pela esquerda tem produzido ou reforçado uma tremenda miopia analítica entre intelectuais que reforça a miopia original produzida por um confuso ecletismo teórico predominante na academia desde, pelo menos, o início da década de 1990. Esta miopia somada a um certo pedantismo academicista dá origem a um método de debate que considero ruim e autoritário pois tende a buscar converter a divergência do contraditor em ignorância, de qualquer forma vamos ao debate.
Em primeiro lugar, diferentemente do que costumam gostar os pensadores afeitos ao neokantismo weberiano, eu não dissociei, em meu comentário, o Bolsa-família do conjunto da política social do governo Lula, eu o encarei como o que ele é em realidade, uma parte de uma totalidade mais complexa, desvinculada da qual perde seu significado concreto. Entendo que você fez uma bela análise do que são os princípios doutrinários do liberalismo estadunidense mas a realidade da aplicação prática da política social estadunidense não é uma reprodução automática destes princípios ideais. Na verdade, diferentemente do que pensam os intelectuais idealistas, a realidade social quase nunca é o reflexo imediato de princípios ideais.
Nos Estados Unidos, a maior parte dos bens e serviços que constituem sua política social é viabilizada no âmbito do mercado, com o poder público recusando-se a compreender como sua a tarefa de produzir estes bens e gerir estes serviços, ainda que financie as empresas privadas que o fazem. No entanto, nem o neoliberalismo mais duro de Reagan ou de Bush, se propôs a pagar o risco de deixar de conceder aos comprovadamente indigentes, os sobrantes na sociedade de mercado, uma assistência material direta proveniente do poder público, entendida, no contexto liberal em que se insere, como suavização da miséria dos “perdedores” e não como direito social que deve garantir ao conjunto da cidadania um padrão mais ou menos comum de acesso aos frutos da produção coletiva.
No Brasil de Lula, o estabelecimento do Bolsa-Família simultaneamente com a expansão do setor privado na produção de bens e serviços constituintes da política social e com o permanente contingenciamento de recursos para educação e saúde, entre outros setores, que leva a sua precarização, vai consolidando uma política social estatal que se molda aos padrões estadunidenses e que vai bem longe do modelo de política social da social-democracia européia, modelo esta que se baseia em ampla desmercantilização dos serviços e bens sociais, em redistribuição efetiva de renda (fundamentada em uma tributação progressiva) e na concepção de direitos sociais fundamentais que devem ser garantidos a toda a cidadania como obrigação do poder público. Tomar o Bolsa-Família isoladamente – cuja origem vai mais longe no tempo que a renda mínima do welfare state, remete na verdade à Speenham Law da Inglaterra oitocentista – não nos capacita para analisar a concepção da política social ampla do governo Lula.
No que se refere ao seu segundo comentário Pescador, eu resisto a crer no conteúdo de sua intervenção. Justamente por haver conseguido trazer para dentro do aparato estatal o conjunto dos setores do capital e grande parte dos movimentos sociais dos trabalhadores e seus intelectuais, o governo Lula garantiu uma quase neutralização do conflito social organizado no país e, como conseqüência, uma estabilização tremenda da ordem do capital. Ora, no que se refere ao questionamento da ordem estabelecida do capital, o que são as indisposições passageiras entre Mantega e Meirelles (desenvolvimentistas e monetaristas) diante da greve nacional do petroleiros de 1995 que levou à mobilização de tropas federais em boa parte do território nacional? O que são as disputas entre as direções dos fundos de pensão das estatais e os bancos de investimento – com a manutenção das posições conquistadas pelos últimos respaldada pelo governo – diante da marcha nacional do MST de 1997? Na verdade, o que o Werneck Vianna afirma é justamente o que estou afirmando. Sigamos o debate.
Caros, eu entendi mal ou acusam o atual governo por tornar obsoletas algumas formas de mobilização?
Existe um conceito nas teorias de causalidade que se chama "endogeneidade", que designa fenomenos cujas direções da causalidade são difíceis ou impossíveis de se determinar (mesmo que probabilisticamente). Em muitos casos, a endogeneidade pode ser traduzida, a grosso modo, como causalidade mútua. Não seria esse o caso da não-mobilização de alguns setores como o MST nesse governo? Não seria o caso de nos perguntarmos o(s) porquê(s) destes setores terem se mobilizado no governo FHC em vez de direcionarmos a pergunta do contrário no governo Lula? Será que a ausência dos fatores explicativos da mobilização no governo Lula pode ser uma fonte de acusação a este governo? Estou equivocado ao interpretar que aquela antiga leitura de "o quanto pior, melhor" pode estar voltando?
Para não destoar do debate, gostaria que explicitassem o que se denomina de "contingenciamento na saúde e na educação". Afirmar que o governo não empenhou toda a previsão é pouco frutífero. Seria mais interessante, acredito, se comparássemos o existente com o que já experimentamos recentemente. Eu, particularmente, defendo mais gastos com a saúde e com a educação, mas olhando para as experiências recentes em nosso país não consigo enxergar nada muito próximo ao que já fora alcançado, muito menos com o que está em curso.
Por fim, nunca pensei em concordar tanto com o Roberto e em tantas questões. Algo muito estranho no ar! RS,RS,RS...
Grande abraço,
Oi Maycon,
Primeiramente, quero dizer que aceito sua crítica que é típica de um marxista hegeliano que adora reduzir a multicausalidade da realidade a uma realidade totalizante ( e ainda chama isso de “complexo”, bom, essa palavra é moeda corrente mesmo nos dias de hoje, rsrs...). Brincadeiras a parte, vou procurar ser mais polido nas análises, como um bom bourdiesiano ( e não, neo-kantiano weberiano).
Dito isso, diferentemente do que acreditam os intelectuais materialistas de boa vontade, a realidade social não se resume a oposição fictícia entre o idealismo e o materialismo. Oposição essa que tem uma origem histórica na oposição hierárquica entre mente e corpo elaborada por Platão, motivado por razões “políticas” (mas também escolásticas), conforme o seu posicionamento e tomada de posição no campo filosófico da época. Para os ideólogos marxistas, as idéias burguesas constituem um conjunto de falsas idéias que mascaram a essência da vida social, ou seja, a vida material (econômica para muito marxistas “vulgares”). Esse pressuposto analítico da crítica da ideologia que tem pretensões de ser complexo não tem nada de complexo em sua essência. Isso porque desconsidera a eficácia simbólica e material das daquilo que nomeiam como ideologia (apenas em termos negativos). As idéias ou representações não são meros epifenomenos da atividade material dos indivíduos. Elas também atende a “interesses” imateriais, diria um weberiano. E podem também emergir sem atender a priori a nenhuma “necessidade objetiva”, basta a existência de uma relação social, diria um durkheimiano e, felizmente (ou não), muitos neo-marxistas atuais.
Continuando, não pretendo retomar o debate sobre a doutrina estadunidense porque creio que chegamos a um “acordo”, ainda que você tente forçar um pouco com o exemplo de Reagan e Bush. Estes dois não cederam ao social motivados por compromissos ou medo de pagar um preço político, mas porque perderam politicamente nas suas tentativas de avançar mais em políticas reformistas liberalizantes. Sobre a associação entre o bolsa família e Speenhamland Law do século XVIII, achei formidável para o enriquecimento do nosso debate.
A speenhamland Law ou “sistema de abonos” surge num contexto político e social bastante interessante. Na Inglaterra de 1795, já havia se constituído duas modalidades mercados nacionais (mercado de terras e mercado monetário) fundamentais para a formação de uma economia de mercado. Entretanto, faltava a existência de um mercado livre de trabalho. Fato esse impedido pela speenhamland. Como se sabe, essa lei foi criada como uma reação social e política ao mercado livre de trabalho e visava resguardar o sistema paternalista das organizações de trabalho da época. É nesse contexto que surge de fato a primeira política de renda mínima. No entanto, se a intenção era reagir ao estabelecimento de um mercado de trabalho nacional, suas conseqüências foram outras. É o que chamamos sociologicamente de conseqüências não-premeditadas da ação. Qual foi o efeito não-previsto? A introdução de uma inovação social e econômica sem precendentes na história: o reconhecimento do “direito de viver”. Apesar desse avanço social, seu efeito prático durou pouco. Com a crescente pauperização das massas camponesas, resultado do mercado de terras, aqueles estratos de trabalhadores imigraram em direção às cidades se beneficiando também da mesma lei. Isso criou um paradoxo, pois impedia a proletarização do homem. Problema resolvido apenas com a Poor Law Reform de 1834 que acabou com a obstrução ao mercado de trabalho. O interessante é que a Poor Law Reform contou com o apoio pitoresco de forças intelectuais antagônicas (Jeremy Bentham, Karl Marx, Malthus, Robert Owen, Stuart Mill, Darwin e Spencer). Quem diria que nossos heróis de esquerda míopes iriam dar uma forcinha ao mercado auto-regulável?!! Tudo em nome do progresso e do desenvolvimento das forças produtivas!Santa ingenuidade. Como diria Max Weber, nem sempre boas intenções produzem resultado bons e nem sempre más intenções resultam em bons resultados. Não existe uma lei de causa e feito única, como pensam os hegelianos (será que agora eu fui neo-kantiano?). Bom Maycon, quero te dizer que respeito a sua análise e que adoraria debater mais com você. Mas pretendo me esquivar de continuar esse debate. Não por falta de argumentos (ao contrário, tenho muuuitos), mas porque não seria produtivo para nós dois. De qualquer forma, peço desculpas se fui indecoroso com você.
Abraço fraterno,
Vitor,
Sua reflexão sobre análise causal é formidavel e sofisticada. Isso, sim, é sair das evidências da aparência imediata...
Assino tudo o que disse em baixo!!!
Caros Maycon e Kadu,
O debate sobre os pressupostos das concepçoes de políticas públicas ficou muito interessante. Acho desse mato ai sai muito coelho. Gostei particularmente quando o parametro comparativo foi levado para o processo historico de proletarizacao e o combate as politicas de combate a fome.
Acho interessante esse foco porque assim colocamos os direitos sociais universais da social democracia europeia no seu dedivo lugar: politicas de estado eficazes para fomentar o estilo de vida de um publico que tem seu "direito de viver" ja assegurado. Caro Maycon, toda minha discordancia com vc desembonca neste ponto: se conseguimos ver e saber da existencia de uma classe de pessoas cuja luta diaria e cujo estilo de vida e marcado pela ameaca de nao comer, e de nao desfrutar do ambiente familiar como retaguarda indispensavel da competicao pela vida, como isso pode ser combatido diretamente por direitos como saude e educacao? Ate pode haver efeitos positivos indiretos, mas a necessidade de uma politica de renda minima para favorecer esta classe nao se subsume neste modelo europeu universalista (universalista so dentro da suecia rs ). O que a politica de renda minima precisa ser e uma politica publica de fomento material e simbolico para estruturar familias pobres, produzir coesao moral. Acho que uma critica pela esquerda ao governo, papel de enorme valia executado sobretudo pelo PSoL, deveria defender tambem o aperfeicoamento do Bolsa Familia (aumento do valor, defender sua permanencia alem de governos).
Outra coisa Maycon, ate sou simpatico a ideia de uma totalidade como referencia para o conhecimento, desconfio que nao passe de uma simpatia mesmo. Me parece que a nocao de totalidade e mais uma metafora para a nocao de mundo, de modo que na pretensao de ultrapassar todos os horizontes particulares, se esquece de que nao podemos ter acessso ao mundo senao atraves de esquemas cognitivos segundo os quais o mundo ja nos aparece selecionado. Quando falamos em totalidade, sem buscar a referencia cognitiva segundo a qual selecionamos a totalidade (em relacao a alguma cosia outra), o hegelianismo vira misticismo: escolhemos analisar a totalida simplismente porque ela esta em nos e nos nela.
Vitao, acho que a gente tem potencial para concordar com muita coisa rs. Uma pergunta? (fora do debate) Essa concepcao de endogeneidade causal tem parentesco com a teoria dos sistemas autopoieticos?
Pois é, Roberto!
Já faz algum tempo que venho ruminando idéias sobre a possibilidade de escrever um texto acerca dos pressupostos valorativos e históricos por trás do preconceito (dos liberais e marxistas) acerca de políticas de renda mínima, entre outras políticas sociais. Lembremos que os marxistas também desclassificaram as chamadas políticas de bem-estar-social na década de 1950, sob o argumento de cooptação das classes trabalhadoras. Acho que isso é interessante de tematizar: os diferentes contextos históricos em que o marxismo e o liberalismo se encontram "ideologicamente". Não é por acaso que o discurso crítico de Francisco de Oliveira encontra coro em FHC, assim como vice-versa.Isso também parece um consenso pré-reflexivo em torno do que se entende por "política paternalista" e "populismo"
Acho que muitos pontos do debate estão superados ou são insuperáveis, ao menos no limite deste espaço, por partirmos de concepções epistemológicas e teóricas radicalmente distintas.
No entanto acho importante apontar algumas coisas. Em primeiro lugar, nem eu, nem o PSOL e nem a maioria dos marxistas que conheço somos contrários à existência de um programa de renda mínima como o Bolsa-Família, o problema está no fato deste programa ser concebido paralelamente à precarização dos serviços públicos universais e com a privatização de boa parte deles, como o projeto governamental das fundações de direito privado agora pretende institucionalizar.
Em segundo lugar, é um fato que as políticas do Welfare State foram produzidas com a cooptação de amplos setores do movimento operário, da social-democracia em especial, que comprometida com a gestão da ordem capitalista, não pôde não capitular aos imperativos do capital a longo prazo, e passar à gestão do enfrentamento ao próprio Welfare State, como desde os anos 80, no interesse do grande capital.
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