Parte I: um breve olhar sobre o passado
Neste dia em que lembramos o "fim" da escravidão, gostaria de levantar e articular algumas questões sobre o significado histórico e sociológico do trabalho forcado no Brasil. Tentarei ser rápido e direto. Qual o significado da escravidão para a construção do capitalismo e da modernidade no Brasil? A escravidão atrapalhou ou viabilizou nosso processo de integração à sociedade global moderna? A escravidão foi um obstáculo para que o Brasil realizasse seu "potencial" na modernidade ou ela foi precisamente uma forma moderníssima de resolver problemas igualmente modernos?
Em nenhuma colônia do "Novo Mundo" o trabalho escravo foi tão importante quanto aqui. Todas as relações sociais giravam em torno do trabalho escravo, de seus lucros, de seus privilégios e de seus conflitos. A ordem privada e a ordem pública estavam ligadas a partir da escravidão. Nenhuma questão ou interesse deu mais coesão à colônia portuguesa do que as questões e os interesses ligados à escravidão. Como demonstra sobejamente em seus trabalhos o historiador Luis Felipe de Alencastro, a escravidão produziu um sistema estável e intenso de relações econômicas no "Atlântico Sul", ligando diretamente a colônia e as costas africanas. Nenhum mercado se desenvolveu tanto e era tão importante quando o mercado de mão-de-obra escrava, e o mais importante é que este mercado se diferenciou a partir do "Atlântico Sul", ou seja, tornou-se relativamente autônomo do controle político burocrático da Metrópole: "desde o século XVII, interesses luso-brasileiros ou, melhor dizendo, brasílicos, se cristalizam nas áreas escravistas sul-americanas e nos portos africanos de trato. Carreiras bilatérias vinculam diretamente o Brasil à África Ocidental".
A meu ver, a questão decisiva aqui é a idéia de que o fato social mais importante da formação econômica e social do Brasil colônia, a escravidão, era resultado de relações e interesses gestados e organizados na própria colônia. Esta constatação quebra ao meio um hábito de pensamento que é central na construção de nosso imaginário nacional: o que foi feito de mau no Brasil, de "patológico", de violento seria decorrência da "herança portuguesa", sobretudo da "herança do Estado português". Ao fim e ao cabo temos uma oposição simbólica entre "Estado português" e "sociedade brasileira", consagrada, mais tarde, na tese do " Estado patrimonialista" de Raimundo Faoro. O núcleo desta tese insustentável (no entanto repetida como mantra por intelectuais da direita e da esquerda) é a idéia que o "Estado corrupto e autoritário" importado de Portugal, e não o mercado de escravos organizado autonomamente pela Colônia, explicam nossa "singularidade relativa", o que temos de diferente dos países Ocidentais do Norte. O trabalho de Alencastro refuta Faoro e sua tradição.
Mas a tese de Alencastro nos leva ainda mais adiante. Se o trabalho escravo constituia um "mercado de mão-de-obra" responsável por garantir o empreendimento colonial, e não uma mera imposição do Estado português, isto quer dizer que, embora não fosse um mercado de mão-de-obra livre, era sim um mercado livre de mão-de-obra. Ora, se era desse jeito, significa então que o trabalho escravo resolvia um problema que é, afinal e desde sempre, o problema da expansão do sistema econômico voltado para o mercado: como recrutar mão-de-obra, ou seja, engajamento pessoal com a produção sem o pressuposto do acesso direto ao produto do trabalho ou pelo menos a uma parte dele? Evidentemente aqui se trata de questão espinhosa no debate histórico-conceitual, sobretudo na tradição marxista: era o capitalismo mercantil apenas uma função de acumulação primitiva para o "verdadeiro capitalismo", o industrial, ou o capitalismo era capitalismo desde que a produção estivesse voltada para o mercado e que este mercado conseguisse regular os pressupostos para que a produção estivesse voltada para ele? Colocando de outro modo a questão: o que define a emergência de um sistema econômico autônomo e mundial e qual o papel da escravidão neste processo?
Ora, se a possibilidade de integrar o recrutamento de mão-de-obra à economia monetária constitui um passo decisivo na evolução do sistema econômico moderno, porque contrapomos de modo tão forte trabalho livre com trabalho escravo? Em que pese nosso julgamento moral prescrever enormes diferenças e a escravidão ser percebida como um "corpo estranho" no processo de evolução do capitalismo (que uma vez "moderno" não precisaria mais da escravidão), ela de fato resolve o mesmo problema que resolve a instituição do trabalho assalariado: torna-se possível recrutar mão-de-obra através de dinheiro (como mostra Alencastro) e não somente através do controle Estatal (como se crê quando, de modo imediato, se pensa a escravidão como empreendimento "pré-moderno" ou "pré-capitalista" do "Estado português").
Decisivo aqui é a constatação de que a escravidão constitui um fator de "progresso capitalista" no Brasil, permitindo a integração das mais díspares atividades coloniais a um mercado intercontinental de venda de mão-de-obra. Neste sentido, eu diria que 1) a escravidão sempre foi parte do processo de modernização que ocorreu no Brasil e que 2) sua importância contrasta com a auto-descrição euro-centrista que sempre observou o "novo mundo" como se ele não fosse parte da história do "velho mundo" ou como se o "capitalismo de direito" do Atlântico Norte fosse a única forma de o mercado recrutar mão-de-obra.
Mas se a escravidão no Brasil é um fenômeno do "nosso" processo de modernização, o que ela explica do Brasil hoje? Como podemos falar de uma "herança da escravidão" sem apelar para uma descrição essencialista, sem apelar para a metáfora obscurantista do "mal de origem"? Existe alguma coisa operando em nosso presente que foi inventada pela escravidão? Tentarei abordar estas questões numa próxima postagem.
5 comentários:
Sem comentários, fico no aguardo do outros posts.
A escravidão é pan-moderna e pan-capitalista.
Fico no aguardo do próximo post.
Pesquisa da UnB revela novos dados da escravidão no Brasil http://antoniolassance.blogspot.com/2010/06/escravidao-no-brasil.html
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