sábado, 16 de outubro de 2010



Aborto ou o debate interrompido

Paulo Sérgio Ribeiro

Poderíamos nos contentar em questionar quando o aborto se tornou um pretenso divisor de águas nesta eleição. Entretanto, satisfazer tal curiosidade requer estendê-la a outro tipo de questionamento, que, se entregue ao sabor das circunstâncias, continuará obscurecido pelo rugir panfletário de certas revistas semanais e pelo brique-braque dos telejornais: por que inflar um tema sabidamente arredio a prognósticos imediatos como os que caracterizam as plataformas eleitorais? Eis a dificuldade de discutir a prática do aborto quando há uma sobreposição (inócua para assegurar as condições objetivas de saúde da mulher) de reivindicações éticas à sua dimensão moral.

Antes de distinguirmos moral de ética nesse debate, é oportuno mensurar a difusão dessa prática na população brasileira.

O relatório do Ministério da Saúde sobre o aborto – Aborto e saúde pública: 20 anos – publicado em 2009, é um apanhado de mais de duas mil fontes sobre o tema em língua portuguesa e estrangeira. Dessas fontes, 398 foram selecionadas para uma análise em pormenor, pois apresentavam dados primários ou secundários, sendo denominadas assim de “pesquisas com evidência”. Apesar de propiciar uma síntese das principais questões de pesquisa sobre o aborto, não foi omitido no relatório que as inúmeras exceções à sua prática legal impõem uma margem de desconhecimento significativa das redes de relações que o viabilizam. Seus autores apontam ainda que boa parte dos dados analisados é originária do SUS, o que assume contornos problemáticos porque nem todos os abortos induzidos são concluídos e/ou registrados em hospitais públicos.

A ponderação de tais limites não compromete a validade do relatório, uma pesquisa bibliográfica de fôlego que nos proporciona uma medida aproximada das “tendências que se mantêm nos estudos à beira do leito com mulheres que abortaram e buscaram o serviço público de saúde” (op. cit., p.14), evidenciando o perfil dessas mulheres nos últimos 20 anos:

Predominantemente, mulheres entre 20 e 29 anos, em união estável, com até oito anos de estudo, trabalhadoras, católicas, com pelo menos um filho e usuárias de métodos contraceptivos, as quais abortam com misoprostol (vulgo Cytotec) (BRASIL, 2009, p.16; parênteses meus).

A apreciação desse perfil permite retornarmos às difíceis exigências acerca da moral e da ética, sobretudo no momento que o tema do aborto é espalhado aos quatro cantos com toda a polissemia que tais termos adquirem na luta política.

De que trata a moral e de que trata a ética? Em linhas gerais, podemos dizer que a moral implica normas de justiça que independam do comprometimento de indivíduos e grupos com valores específicos, enquanto que a ética pressupõe avaliar idéias e práticas condicionadas a um horizonte valorativo particular. Como bem resume Nancy Fraser (2005), a moral indaga o que é “correto” e a ética indaga o que é o “bem”. Na discussão aqui posta sobre o aborto, acolho o argumento de Fraser de que a “moral” constitui uma orientação normativa que deve estar submetida a todos os testes possíveis na teorização das lutas por “reconhecimento” ao invés de recorrer apressadamente à ética. Sua perspectiva de justiça como “paridade de participação” é de grande valia para demonstrarmos o viés maniqueísta com o qual a campanha da oposição (e sua campanha difamatória a soldo na Internet) desqualifica a escolha de continuar ou não uma gravidez.

Conforme a distinção feita no parágrafo anterior, é inegável que o aborto persiste nos dias atuais como uma questão de ética, o que nos distancia forçosamente de uma noção de justiça afeita ao universalismo moral. Não seria por menos. A tradição cristã, a despeito de seus ramos sectários (catolicismo e protestantismo), representa uma amálgama de visões doutrinárias que, mesmo não sendo um bloco monolítico como se costuma imaginar, sanciona a condenação daquela prática. Estariam em jogo valores éticos inegociáveis para a vida humana (como católicos e protestantes a entendem, é sempre bom frisar). Ademais, cristãos estariam tão-somente exercendo o direito de explicitar a fé nos valores que lhes são sagrados, confirmando assim as virtudes da liberdade subjetiva (uma condição moderna, por excelência). O problema, parafraseando Max Weber, é que todos os valores são sagrados. Atentar para a complexidade disso nos ajuda a compreender porque não é razoável uma inquirição pública sobre o aborto ser pautada apenas pelo discurso religioso ou, quiçá, apenas por uma variante do discurso religioso.

Retomando o diálogo com Fraser, seria o caso de a condenação do aborto confirmar o direito à diferença dos membros de uma cultura específica? Certamente que não. A primeira objeção é de ordem factual: a maioria das mulheres que concluíram o aborto na rede pública de saúde se declara católica, o que demonstra a ambigüidade da confissão religiosa em um mundo secularizado. Ora, mesmo que gozem os benefícios simbólicos de serem maioria essas mulheres também se vêem constrangidas por sua identidade de grupo, pois a confissão religiosa as define como indivíduos ao mesmo tempo em que lhes nega (muitas vezes sob o preço de uma auto-expiação insuportável) as múltiplas filiações valorativas de sua individualidade. Desse modo, não é exatamente a identidade de grupo (ser católica, protestante etc.) o que careceria de reconhecimento, mas a “paridade de participação” das mulheres na assistência médica. Avançaríamos então rumo a uma norma universalista: a ampliação da cobertura de um direito social – a saúde – fundamentada no mesmo valor moral dos membros do gênero feminino quanto às decisões que afetam a sua sexualidade e o seu bem-estar.

Concordo com a crítica de Fraser à perspectiva que reduz o reconhecimento a uma concepção de boa vida. O reconhecimento é também uma questão de justiça, considerando que é injustificável não ser reconhecido como um parceiro integral na interação social, devido a padrões institucionais de valoração das práticas culturais que não foram construídos em condições de igualdade e que, portanto, subordinam socialmente indivíduos e grupos por suas características específicas ou pelas características que lhe são atribuídas (basta lembrar os tantos estereótipos negativos que recaem sobre as mulheres, principalmente as que compõem os estratos de maior fertilidade da população...). O reconhecimento desse atributo do gênero feminino (não ser um mero apêndice de seu corpo na reprodução biológica), portanto, situa-se no terreno da moralidade política e não da ética, posto que seu reconhecimento adéqua-se melhor a uma reivindicação por igualdade de status.

Um dado do relatório do Ministério da Saúde já citado, proveniente de um estudo de ampla base populacional realizado nos anos 2000 sobre a primeira gravidez entre mulheres de 18 a 24 anos (faixa etária na qual é presumível o ingresso na vida sexual ativa) mostra-se primordial para o exame do que venha a ser igualdade de status com relação à prática do aborto: verifica-se que quanto maior a renda e a escolaridade, maior é a probabilidade de o aborto ser o desfecho da primeira gravidez. Ponderamos ainda, com base no mesmo relatório, que, do ponto de vista da inserção no mercado de trabalho, o aborto induzido é uma opção preferencial por parte das mulheres que têm ocupações tipicamente femininas e subalternizadas como o serviço doméstico, cabeleireira e manicure, além de comércio, subempregos e, no caso das estudantes, com renda familiar de até três salários mínimos.

Ora, a apreciação dessas variáveis – renda e escolaridade elevadas, de um lado, e inserção subordinada no mercado de trabalho, de outro – leva-nos a supor a pertinência do valor diferencial das mulheres quando o que está em jogo é a maior redução possível do risco de morte e de seqüelas físicas na prática do aborto e, não menos, as condições intersubjetivas que assegurem a preservação da estima social conforme, claro, mais vantajosa for a posição relativa ao status de cidadania. Uma situação de injustiça social, pois apenas uma minoria de mulheres tem a prerrogativa de igualdade equitativa quanto aos melhores meios de conduzir soberanamente a sua vida reprodutiva.

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Nota pessoal. Escrevo as linhas que seguem mais com fígado do que com o cérebro. Causa-me repulsa o modo como José Serra, um ex-Ministro da Saúde, investe no que vislumbra ser uma cartada eleitoral decisiva: ser porta-voz dos setores mais reacionários da classe dominante brasileira acerca de uma questão de saúde pública demasiado complexa como o aborto, prática cuja ilegalidade tanto confirma quanto reforça a vulnerabilidade social de centenas de milhares de mulheres no país. Ambição e cinismo, eis o seu nome e sobrenome José Serra. Ainda mais repugnante é o mesmo ter se calado quando Dilma Roussef, no primeiro debate televisivo do 2.º turno, ocorrido na Band, destacou o fato, amplamente documentado, de que Mônica Serra a difamou na campanha eleitoral de seu marido. "Ela mata criancinhas", teria dito em relação ao posicionamento de Dilma sobre o aborto. A mesma Mônica Serra que já confessou a um público de classe média (quando professora na Unicamp) já ter realizado o aborto. É de vomitar! Dilma, ao contrário, no debate da Band pôs os pingos nos "is" ao acusar a hipocrisia de Serra ao insistir em desviar o verdadeiro foco do problema: a efetividade da política pública de saúde da mulher, independente das motivações que levam à interrupção da gravidez. Digo, sem medo de parecer piegas, que Serra lembra o que há de pior em nós homens: a violência simbólica contra a mulher como recurso de poder utilizado invariavelmente. Dilma, mais uma vez, terá de enfrentar os homens e mulheres que, sob novas vestes e velhos hábitos, ousam retroceder a sociedade brasileira para o moralismo mais infame.

No corpo e na alma de Dilma ficaram as marcas do autoritarismo. Foi presa e torturada nos porões da ditadura, mas desta experiência visceral de "não reconhecimento" surgiu a mulher forte que hoje não se verga a nenhuma truculência disfarçada de flêuma acadêmica como a de Serra. Cá entre nós: um homem que não teve sequer a compostura de defender a esposa na TV, dificilmente defenderia a honra de outras mulheres.

Fontes consultadas:

BRASIL. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. (Série B. Textos Básicos de Saúde)

FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, n.70, p.101-138, 2007.

2 comentários:

Roberto Torres disse...

Um belo texto, com enorme qualidade analítica e crítica.Gostei muito do uso da Nancy Frazer, embora eu sempre goste de também de criticar nela esta separacao entre justica e eticidade. Acho que, paradoxalmente, ao focarmos no fato de que toda justica é ancaroda numa eticidade hegemonica, é que podemos lancar luz sobre a possibilidade de uma universalizacao da "paridade participativa": o ancoramento ético desta paridade participativa é a instutucionalizacao do valor da igualdade política, e esta institucionalizacao nao se tornou assegurada no Brasil.

Somente a partir desta igualdade política é que democracia pode se tornar o processo de criacao de direitos, neste contexto percebidos como caminho necessario para a paridade participativa. No Brasil a autarquia burguesa, com toda sua visao sobre populismo, clientelismo etc., tem como estratégia imanente a negacao da igualdade como eticidade básica do exercício da política.

Minha crítica a Frazer, em resumo, é que ela nao especifica a referencia sistemcia de seu conceito de justica, e logo nao especifica sua referencia valorativa.

Roberto Torres disse...
Este comentário foi removido pelo autor.