Estar sob efeito de uma experiência poderosa pode não favorecer um texto reflexivo sobre a tal experiência. Peço desde já que entendam que o texto abaixo se guiará por tal experiência e por uma tentativa reflexiva de captá-la com palavras.
A experiência diz respeito à continuação de “tropa de elite”, de José Padilha, filme arriscado e não menos polêmico. No primeiro filme, correu-se vários riscos. Do personagem de Wagner Moura, capitão nascimento, diziam “fascista”, “faxineiro étnico”. Da direção diziam moralista ao culpabilizar o lado da demanda. Da estética diziam “sangrenta” e sensacionalista. A meu ver o Filme mostra como um jovem que quer ser advogado, e estuda para tanto, pode se transformar em uma máquina de guerra. É basicamente um filme inspirado em “Nascido para matar”, de Stanley Kubrik: nele estão os mecanismos rituais de incorporação (socialização) do indivíduo à lógica sistêmica, como membro reprodutor de seu ethos.
A lógica sistêmica, com seus mecanismos autoreprodutores, no primeiro filme, aparece primeiramente sob o amálgama da luta entre duas polícias, uma corrupta e subserviente e outra não subserviente, mas que se utiliza de meios ilícitos para cumprir com o dever. A socialização se dá nestes dois espaços, o limite é tênue, a incorporação dos membros é questão de vida ou morte para a manutenção dos limites sistêmicos, seja de um lado ou de outro.
No primeiro filme há outra dialética, aquela que contrapõe esta polícia e a ralé que sobrevive à custa do tráfico de drogas. Esta dialética é a que se destacou mais no primeiro filme, creio que por dois motivos. Por um lado satisfaz à expectativa justicialista dos cariocas, classe média, zona sul. Por outro, apresenta a valentia implacável do capitão nascimento, talvez o maior personagem pop da história do cinema brasileiro.
Em camadas, Padilha vai costurando um enredo que de forma macro expõe as várias dialéticas que resultam na guerra impessoal que se vive nestes âmbitos: aparato estatal de segurança pública e tráfico de drogas. Talvez não houvesse espaço para tratar de outros âmbitos, como, direitos humanos, imprensa e a política. Mas a crítica não perdoou esta ausência.
O segundo filme complexifica sua tour de force pela tragédia carioca. Estes âmbitos são contemplados. Agora, retornando a hipótese Kubrikiana, invertendo-a, o filme é de desocialização: Como um implacável capitão, cumpridor de sua função, com uma certeza inviolável na verdade deste dever, é levado a uma dialética de novo tipo, contra seu próprio self, uma dialética interna: eu sou o que sou para a manutenção sistêmica?. Como nos diria Parsons, Nascimento era demasiadamente dopado pelo sistema, mas não aceita isso. A tomada de consciência do agora Coronel, faz do filme um caso raro no cinema brasileiro.
Agora é polícia contra a política, a política contra a polícia. Não aparece a figura do usuário (até aparece...) e o tráfico é o mal menor. Agora a dialética se dá “No centro do sistema”. No centro desse “sistema-mundo”, como diria Braudel, a fenomenologia conflui para a manutenção do poder central, especificamente dos políticos, no sentido abstrato e impessoal, que se nutrem de dinheiro e voto a partir dos laços com as milícias. É um argumento poderoso e que poderia se desdobrar. Chega a Brasília... mas poderia chegar em outra camada, na geopolítica mundial, no sistema-mundo de uma sociedade cada vez mais (des)integrada, cada vez mais com medo e cada vez mais desigual.
O filme assim, a meu ver, fecha a série “favela movie” de forma brilhante. “Cidade de Deus” era sobre os traficantes, “Cidade dos homens” sobre a população atingida pela guerra, “tropa 1” era sobre a polícia. “Tropa 2” é sobre a política que dá origem à série. Ele politiza a estética da droga, da morte, da arma, da pobreza. Sai das ruas e vai para o congresso.
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2 comentários:
Muito legal sua análise Bill, boa pra relaxar um pouco em meio ao tiroteio eleitoral.
Nao vi ainda o filme, mas gostaria de debater, pena q to sem tempo.
Mas a conclusao desse conjunto de filmes nao é meio infatilizada? Do tipo que a culpa é dos políticos (como se fossem seres que nao pertencem a sociedade) e da corrupcao, e a culpa da corrupcao é a impunidade.
Gostaria de ouvir sua opiniao.
um abraco.
brandão,
penso que se o segundo for colocado em separado, pode-se ter esta sua impressão, sim. Lembremos que neste filme um político é espancado, e nas duas sessões que fui a platéia aplaudiu, alguns de pé. vejo, no entanto, uma continuação entre elas, aí acho que a microfísica do poder, da política, se destaca. isso envolve pensar em todos os grupos e âmbitos que participam daquele estado de coisas.
abraço.
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