Roberto Torres
Assegurar a vitória de Dilma é assegurar a vitória do aprendizado político contra o moralismo conservador. Isso fica claro mesmo quando se aceita a pauta deste último. Na visão moralista, que direciona a campanha de Serra e as forcas reacionárias reunidas em torno dele, é preciso defender “os valores da vida, da família, dos bons exemplos e da honestidade”. A verdade é que a defesa em questão é uma defesa do estilo de vida, de família e de bons exemplos da classe média tradicional, dos desde sempre incluídos e formadores da hegemonia política e moral do país. Nesta defesa cabe, como sempre, exibir as virtudes e esconder as ambigüidades de uma visão de mundo que despreza o estilo de vida, os bons exemplos e as famílias dos recém chegados ao jogo dos valores e dos interesses: todos aqueles que, vindo de baixo, encontraram no governo Lula um rumo concreto de como vislumbrar e perseguir seus objetivos de vida, de melhorar de vida, de estabilizar famílias e de poder dar bons exemplos para os filhos.
O moralismo conservador serrista prefere inundar o debate público com a abordagem estreita sobre o aborto, ignorando que esta, antes de ser uma questão religiosa ou de valores sagrados, é uma questão prática de saúde pública. E é no bojo desta ignorância que morrem um número assustador de mulheres pobres, enquanto meninas de classe média fazem aborto de modo seguro, em clínicas com crucifixo na parede. A hipocrisia e o cinismo fazem a festa nessa visão estreita e preconceituosa sobre um problema grave, no qual se expressa um corte de classe social muito claro. Neste corte, o serrismo é a forca que representa os interesses materiais e ideais dos privilegiados, em sua evolução sempre alheia ao fato de que seus bons exemplos jamais são bons exemplos para os de baixo ou que estão subindo: a filha de família de classe média que não é afetada pela lei quando vai fazer o aborto não é um exemplo para as de família mais pobres, que, fora da lei, são jogadas no limbo da morte e da falta de assistência em caso da decisão trágica de abortar.
Reduzir o tema a uma questão de ser a favor ou contra a criminalização é a hipocrisia que serve para esconder que mulheres de classe média têm o privilégio da proteção privatizada de seu corpo, ao passo que as mulheres pobres devem se danar com o tratamento animalizado e animalizante de seus corpos e de suas chances reais de morrer ou viver. Neste contexto o resultado é a ratificação de que o corpo das mulheres de classe média vale muito mais do que o corpo das mulheres de baixo. Em resumo: Serra é a imposição do estilo de vida e dos exemplos dos estabelecidos e esta imposição representa a morte física e o desprezo moral dos que sonham em se estabelecer. Basta olhar as mulheres grávidas que ele mostra em seu programa de TV. Todas lembram as novelas sobre o Leblon. O problema das famílias mais pobres passa longe de ser o aborto ou não um crime. É antes de tudo um problema de falta de proteção e condições para o acesso a oportunidades de vida para seus filhos. Afinal, quando se fala em reduzir desigualdades e combater a miséria, deve-se falar em primeiro lugar em oportunidades de vida. A família dos mais pobres precisa antes de proteção e as famílias mais protegidas da assim chamada “nova classe média” precisam nesta sua condição “mais diferenciada” de assegurar chances de vida para seus membros. Foi isso que o governo Lula fez mais do que nenhum outro, é isto que o serrismo nunca fez por onde esteve no poder.
A derrota deste moralismo conservador é a vitória de um esforço de aprendizado político que tem como eixo a tematização pública e o enfrentamento a partir de políticas públicas dos problemas que afetam as famílias mais pobres, de tudo que represente a privação de chances de vida para eles. Este é o público do PT e de Dilma e isto deve ficar claro neste momento. Deveria também nos causar espanto o fato de não termos um ministério da família. Mas mesmo sem propor este ministério, Dilma é a única que de fato tem a família dos que lutam para subir na vida como um tema relevante e tratado de forma séria. É a única que fala insistentemente em creches, como forma de reforçar o trabalho de socialização de famílias vulneráveis à falta de tempo e de cuidados; é a única que toca na questão de ser a família o começo biográfico de toda a competição social por chances de vida. Para Serra esta disputa começa somente na escola, ele não enxerga que a família dos que vêm de baixo tem muito mais problemas do que a dos que vêm de cima.
Assegurar a vitória de Dilma é garantir a continuidade deste aprendizado político, das forcas sociais dispostas a ver a miséria e combatê-la. Evangélicos e católicos envolvidos no reforço do trabalho de socialização familiar sabem que a visão de Dilma sobre o papel do Estado e da política em matéria de família é a melhor, a mais séria e a mais generosa. Se ficarem do outro lado é porque se deixam se levar pela mesquinharia ou pela ingenuidade política. Mas não se trata aqui de jogar responsabilidade para os outros. O PT não buscou compreender o papel que a religião vem assumindo diante dos problemas estruturais das famílias que vêm de baixo, de modo que fosse capaz de evitar que o discurso reacionário serrista tivesse espaço face à demanda por segurança que os chefes (e principalmente as chefes) de família trazem em seu modo de vida. Mas Dilma tem sensibilidade para isso e é capaz de conduzir políticas para atender esta demanda, como mostra com o tema das creches. Já Serra e o PSDB..... eles acham apenas que já compreendem tudo lá de São Paulo e que agora a tarefa é “sãopaulizar o Brasil”. Para finalizar, retomando o tema serrista somente mencionado no começo do texto, a honestidade: não pode haver honestidade do lado de gente tão bem preparada, que fez carreira para ser presidente e que a esta altura não consegue e/ou não quer enxergar os verdadeiros problemas do povo que deseja representar, optando por envenenar a política com o fundamentalismo religioso que cega a todos que com ele se envolvem.
6 comentários:
Ótimo texto, Roberto.
Eu acompanhei com certa tristeza esta exploração canalha acerca da descriminalização do aborto. Ate mesmo por saber que varias afirmações feitas nao eram suportadas por números reais. No entanto, nao tive tempo/paciência de buscar as referencas para escrever um post sobre o tema.
Para minha surpresa, o Carlos Hotta, do blog "Brontossauros em meu Jardim", fez isto. De forma muito mais completa e eficiente do que eu provavelmente faria. Nao costumo postar links em comentários, mas acho que neste caso, o texto dele casa perfeitamente com o seu:
http://scienceblogs.com.br/brontossauros/2010/10/sobre_o_aborto.php
Recomendo a leitura na integra, mas ressalto alguns pontos que ele expõe e cita as referencias. Os trechos a seguir são retirados de la:
1- a decisão de fazer aborto é independente da opção religiosa da mulher: a grande maioria se declara católica seguida por protestantes e espíritas mas estas proporções seguem o perfil religioso da população.
2- A grande parte dos abortos inseguros ocorrem em países onde o aborto é ilegal. 70 mil mulheres morrem no mundo por complicações de aborto inseguro e 5 milhões acabam com alguma complicação ou sequela.
Eu concordo com o Hotta quando ele diz que os candidatos são pessoalmente contra o aborto, mas a favor de sua descriminalização.
Me parece toda esta discussão so mostra mais uma vez porque a religião não deveria sair da sua alçada e tentar impor seus dogmas a toda sociedade.
Abracos
O texto é irretocável, sobre ele só posso concordar. Aprofunda a discussao sobre o que é defendar a vida e sobretudo a dignidade humana.
Mas a tristeza que me dá é que a oposicao buscou a todo custo e teve certa eficacia nisso, neutralizar qualquer debate mais lúcido e montado por análises e ideias. Jogaram a disputa para a sombra, com terrorismo e medo, na seara que sao especialistas.
A impressao é que nossas palavras pouco podem contra a corrente de ódio que se espalhou.
Mas nao desistiremos, vamos lutar ate o fim!
O texto sobre a questão do aborto é uma peça chave em nossa discussão.
A questão é guiada pela tentativa consciente por parte dos tucanos de manipular os sentimentos religiosos da população, independente das filiações religiosas específicas.
Esta manipulação é uma peça chave que explicita medo do moralismo conservador em continuar perdendo a guerra, que envolve a criação a médio prazo de um Estado mais justo e democrático exatamente por facilitar a vida das classes populares.
O medo e a manipulação são inimigos do aprendizado político, logo, autoritários e anti-democráticos.
Desistir jamais.
O argumento de Roberto é lapidar...
Ilustra de forma contundente uma das maiores perversidades de se tratar a política e a democracia como mero mercado eleitoral. Vale tudo, quantitativamente e qualitativamente, para se levar o pleito. Inclusive golpes abaixo da cintura.
Reitero... é uma das piores e mais retrógradas disputas eleitorais que jamais vi a direita deste país fazer na Nova República. Se alguém achava que as relações com a Opus Dei eram mera "teoria conspiratória da esquerda".. Bem..o que dizer depois de tudo isso?
Oi, Roberto
Tinha publicado meu texto sem ter lido este teu. Sem retoques para o o seu argumento. A pouca familiaridade que tenho com uma parcela da intelectualidade paulista já é o suficiente para a seguinte conclusão: sotaque comunista de ontem, sotaque neo-udenista de hoje...
Um abraço, meu caro.
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