Em resposta ao meu Xará Bill, considerando a importância do tema, posto este texto que não contraria o dele em alguns pontos, mas discorda em outros, mantendo assim a saudável prática do debate respeitoso que sempre buscamos neste blog, e que infelizmente se perdeu na atual campanha eleitoral à presidência. O texto foi levemente editado para esta versão aqui. Temos aqui um debate sobre a política atual, mas também sobre os limites e possibilidades da arte no mundo contemporâneo.
É curioso que um filme cujo subtítulo é "o inimigo agora é outro" e cujo tema central é o combate à corrupção na política seja lançado no Brasil em pleno início de segundo turno para eleições presidenciais entre PSDB e PT, cujos discursos e práticas políticas, contrário a um dos sensos comuns mais difundidos sobre o tema, o de que seriam a mesma coisa, são exatamente o combate à corrupção no Estado (PSDB) e o interesse na redistribuição de renda e na ascensão econômica e política das classes populares (PT).
Achei engraçado que, quando foi lançado o filme "Lula, filho do Brasil", ouvi gente dizendo coisas do tipo "apenas Hitler financiou um filme próprio", sem naturalmente provar que Lula teria financiado o próprio filme. Agora me aparece este Tropa 2 em pleno segundo turno... A estratégia dos tucanos, filiados ao partido ou não, assumidos ou não, ou seja, uma das maiores estratégias dos inimigos do PT, tem sido a associação, na maioria dos casos, implícita e sutil, da imagem do partido ou de figuras expressivas dele, com o autoritarismo.
Como toda mentira para "pegar" precisa ser sutil, ou seja, uma meia-verdade, que apele para aparências e dados parciais, neste caso não é diferente. Não posso afirmar que o filme é dos tucanos ou pago por eles, mas como cidadão antes de tudo, eleitor e intelectual, posso refletir e apresentar algumas possíveis afinidades entre o filme e os discursos simpatizantes aos tucanos.
Como eu dizia, acerca do filme sobre a vida de Lula, os inimigos do PT sustentaram o argumento do autoritarismo, central ao lado do argumento da corrupção no Estado. No geral, tentaram associar a imagem de Lula ao fascismo, mesmo depois de oito anos de sucesso no governo, em favor das classes populares. Em sua passagem na UFJF, que presenciei, pude escutar algum incauto desdenhando da performance de Lula, que fala gesticulando os braços, e associando-a ao "Hay Hitler".
Primeiro, há um preconceito de classe nesta postura tucana, cuja maldade me entristece, pois ao escarnecer o jeito de classe popular de Lula também se escarnece e explicita o preconceito contra a classe trabalhadora e a ralé, que ele mais representa. É lógico que a imagem contrária é a do jeito bem comportado, da pessoa calma e auto-controlada, da figura de FHC e que Serra se esforça a ser.
Como toda mentira é ambígua, precisa confundir o leitor, agora sutilmente se associa a imagem específica de Dilma ao autoritarismo. Para parecer crítico, o argumento conservador tentou ser sutil. Conseguiria, se não tropeçasse em seu próprio preconceito de classe, que não consegue esconder a raiva pela ascensão econômica e moral das classes populares no Brasil de Lula. Nem me venham com a falácia da continuidade da política dos tucanos, pois tal ascensão dependeu da sistematização de políticas específicas de redistribuição, como o fomento pesado ao crédito para a chamada classe C.
Bem, a criação da imagem autoritária de Dilma tentou ser sutil, por exemplo, em edições recentes da Veja, que está fazendo uma seqüência cujas capas todas se remetem ao trocadilho do "Polvo" no poder. Numa delas, a sacanagem disfarçada de crítica e bom senso finge admitir que reconhece avanços de Lula, postura ensinada com todo o cinismo e fingimento da classe média mais estabelecida, e praticada por seu mentor FHC. Ele andou escrevendo coisas recentes neste tom. A revista dizia que Lula resolveu o problema do autoritarismo e da discórdia, mas que Dilma parecia ser um passo atrás neste avanço do partido e do governo.
O mesmo preconceito de classe que tenta associar os representantes das classes populares no poder com autoritarismo, é o que ditou o tom do Tropa de Elite 1, sobre o qual publiquei um artigo (O que o BOPE representa para a brasilidade), cujo link se encontra em meu blog www.macielfabricio.blogspot.com. Neste primeiro filme, o tema explícito era a corrupção da polícia e a dificuldade de se enfrentar o problema da segurança pública. O tema implícito era o preconceito de classe, visível se observarmos com calma que, ao invés de um problema de corrupção, como principal questão nacional, o que temos é uma questão de classe, na qual a realidade do BOPE é ralé matando ralé, pois os membros do batalhão são em maioria oriundos de classes populares, colocando seus corpos em defesa das classes estabelecidas.
Agora, em pleno segundo turno, o inimigo tucano não é outro, como afirma o Tropa 2. O inimigo é o mesmo, ou seja, as classes populares, só que o ódio incitado, por ser o momento da eleição, não é diretamente contra a ralé desesperada na miséria que comete crimes, como no primeiro, mas sim contra os seus representantes que estão no poder. Afinal, nunca se falou tanto em corrupção, algo presente em todo capitalismo que já existiu e em todo Estado nacional moderno, logo, presente em cento e poucos anos de Brasil república anteriores ao governo Lula. Mas, parece ficar claro com o discurso dos tucanos e com este filme Tropa 2, se olharmos com calma que, como a mentira tem que ser sutil, é lógico que o bordão seja "o inimigo agora é outro". O tema assumido do filme é a corrupção da política, como todos sabem.
Achei curioso a fala de um conhecido diretor do cinema brasileiro, Daniel Filho, no último festival de cinema realizado no Odeon do Rio de Janeiro, sobre o fato de o filme de Lula ter sido indicado para competir ao Oscar estrangeiro. Engraçado como as coisas sutilmente se encaixam. Ele acaba de lançar um belo filme sobre Chico Xavier, certamente uma das personalidades mais importantes da religiosidade brasileira, e por acaso também em época de eleição. Seria ingenuidade e imprudência de sociólogo se eu afirmasse ao leitor que tudo isso é encomendado pelos tucanos. Mas posso incitar a reflexão das afinidades de uma concepção de classes estabelecidas com a produção artística em plena época de eleição, e não qualquer eleição, mas sim uma na qual o único governo depois de Getúlio que enfrentou severamente a questão social central do Brasil, que é a de classe, procura eleger sua sucessora.
Daniel Filho, inconformado desde seu lugar estabelecido de classe, com o fato de o filme que mostra ao mundo um representante do lado mais prejudicado do Brasil chegando ao poder ter sido indicado no lugar dos conservadores, fino que é este diretor, foi afinado com o discurso que atribui ao PT o autoritarismo e, logo, deixa nas entrelinhas que os democráticos são outros...Seu comentário foi educadamente sarcástico: "como é mesmo o nome do filme? Lula, o 'dono' do Brasil?" (o nome correto do filme é "Lula, o filho do Brasil"). Com todo o respeito que tenho às religiões, como instituições legítimas, e a religiosidade como um todo, como fenômeno humano universal, bem como à figura de Chico Xavier e a seus fiéis e admiradores, como sociólogo tenho a obrigação de não esconder o dado de que o espiritismo se trata de uma religiosidade muito mais de classe média no Brasil, ainda que Chico tenha ajudado muita gente pobre. Nada disso é calculado. Acho que temos aqui a expressão artística de um conteúdo de classes estabelecidas, contrário aos ideais do governo federal atual, sendo este o que tenta sistematicamente minimizar a desigualdade de classe no Brasil.
Assim, a pergunta que quero deixar para a reflexão é: o que é ser autoritário e o que é ser democrático? O discurso do combate à corrupção no Estado refere-se à "nação" e ao "país" em abstrato. Ora, ninguém fez isso melhor do que Hitler...O discurso e a prática que admite a pesada desigualdade de classe no Brasil é concreto, pois não existe um país ou uma nação sem classes sociais. A própria existência do conceito de classe só faz sentido se pensarmos na desigualdade. Logo, quando ele é sutilmente tirado de foco pelo discurso anti-corrupção, abandona-se a questão social mais importante, marca esta registrada dos tucanos e de seus simpatizantes.
Espero ter contribuído para uma reflexão sobre quem é a "Elite da tropa" que afirma agora pretender enfrentar a corrupção na política, corrupção esta que por acaso sempre favoreceu às classes estabelecidas e não às classes populares. Ou alguém acha que a ralé, despedida do mercado e a classe trabalhadora brasileira, dispersa batalhando em grande parte no trabalho precário, levam vantagem com a corrupção em Brasília?
Quanto à ralé, foi o PT que sistematizou todas as políticas de amparo imediato. quanto à classe trabalhadora, nossos batalhadores, também foi o PT que fomentou recursos para suas ascensão e melhor qualidade de vida. Então, caro leitor, quem é o inimigo nesta história?
3 comentários:
Bonito texto Xará,
eu só não acho que tudo possa ser resumido à luta de classes, à ralé, ao tucanato... É uma eleição importante mas existe outras coisas fora dela. A propósito, Padilha fez campanha para o Psol.
obs. Quanto ao filme "do Lula", filmado por um Barretão (um dos maiores produtores de cinema do Brasil e que ganhou muito neste governo...), acho horrendo... mas concordo com o preconceito ao qual você se refere.
Abraço.
meu caro xará,
concordo que não se resuma a questão da classe, também suscitei brevemente o lugar da arte neste momento tão turvo de campanha eleitoral.
O fato do diretor ter feito campanha para o Psol não exclui a possível afinidade entre o sentimento principal incitado pelo filme e o discurso do filme serem afinados com os discursos o que considero ser a direita no Brasil hoje.
tb acho que o filme sobre lula foi um fiasco, do ponto de vista artístico, e neste aspecto acho que tenho menos critérios de avaliação do que vc, com quem muito aprendi sobre arte nestes anos todos de amizade.
saudade amigão.
Completando, sinceramente não vejo muita diferença entre Psol e Pv, por exemplo. acho que a marinada e os partidos "pequenos" de esquerda tem em comum o discurso de que o pt não fez o que poderia no poder.
eu acreditava nisso quando era calouro da uenf.
hoje acho que entendo melhor o que é governabilidade num país grande e rico como o nosso, além do dado da desigualdade crônica.
um partido no poder, seja qual for, vai ter que ser sempre um negociador. essa me parece a realidade política atual.
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