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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

CRÍTICAS AO ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL: NOVOS ARGUMENTOS OU VELHOS MITOS?

Marco Antônio Pedro Vieira1

Considerado elemento constitutivo de nossa formação social por vários estudiosos e intelectuais de âmbito nacional e internacional, o racismo foi (e ainda é) tema de diversas produções acadêmicas que apontam a histórica responsabilidade do Estado brasileiro no processo de desigualdade racial no país. Apesar do conceito de “raça” não ter nenhuma validade científica, o racismo, por outro lado, continua presente nos diversos campos das relações sociais no Brasil. Na atualidade, o racismo enquanto problema a ser superado, se tornou a pedra de toque das principais discussões e propostas que visam beneficiar grupos sociais historicamente discriminados por sua condição de “raça” e/ou cor.

Tendência em dissimular a presença do racismo, muitas vezes sob a forma de “proteção”, o mito da “democracia racial” aos poucos vem perdendo sua força enquanto consenso acerca das relações raciais na sociedade brasileira, dando lugar aos discursos que, sob um ponto de vista “liberal”, questionam a validade ética, política e jurídica da promoção de sujeitos com base no critério da autodeclaração quanto à origem étnico-racial, também denominada de política de ação afirmativa. Desta forma, nunca se debateu tanto sobre o racismo, principalmente depois da proposta de instituição do Estatuto da Igualdade Racial através do Estado.

Segundo o referido estatuto, a desigualdade racial significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada.

Projeto de lei votado pelo Senado Federal e ainda em tramitação na Câmara dos Deputados, o Estatuto da Igualdade Racial prevê, neste sentido, a constituição de políticas públicas para combater a desigualdade racial em vários campos, garantindo moradia e terra para os remanescentes de quilombos, acesso gratuito às ouvidorias nas três esferas de governo para as vítimas de discriminação racial, tratamento especial para prevenir e tratar doenças como anemia falciforme pelo Sistema Único de Saúde (SUS), etc. Cria também o sistema de cotas nas universidades, nos espaços de trabalho, na mídia e nos partidos políticos para os discriminados por “raça” e/ou cor, ao mesmo tempo em que propõe um Fundo Nacional da Promoção da Igualdade Racial.

Apesar dos avanços (ainda que parcos) da política social brasileira com base na universalização de direitos, na descentralização político-administrativa, no controle social, entre outros, a desigualdade racial ainda é alimentada pelo enorme fosso que separa, de forma severa, as condições de existência de negros, brancos, indígenas e de demais etnias que compõem a nossa sociedade, fundamentando, desta forma, a adoção de medidas complementares às ações já existentes para promover a igualdade racial.

No entanto, tais medidas são contestadas com veemência por alguns setores da sociedade sob a alegação de que a desigualdade no Brasil, inclusive a social, nada tem a ver com a questão racial, mas sim, com uma forte divisão de classes oriunda da má distribuição de renda e riqueza, causa gritante de nossa extrema pobreza. Um dos expoentes atuais desse discurso chama-se Ali Kamel 2 , que em seu livro Não somos racistas 3 revisita obras de renomados intelectuais brasileiros, utiliza dados do IBGE e discorre, dentre outros assuntos, sobre o sistema de cotas, sustentando o argumento de que o problema da desigualdade no Brasil passa pela falta de acesso à educação, tornando assim, desnecessária a adoção e instituição das cotas raciais pelo Estado brasileiro para acesso de grupos racialmente discriminados ao ensino superior. Neste sentido, a crítica ao estatuto e ao sistema de cotas raciais centra-se na argumentação de que a desigualdade só poderá ser superada com maciços investimentos em educação, sobretudo em educação básica, pois só assim ela abrangerá todos os segmentos pobres da sociedade independente da “raça” e/ou cor.

Certamente, não podemos prescindir da existência de uma forte desigualdade de classes no Brasil e, muito menos, da importância de sólidos investimentos públicos em educação (em seus diversos níveis) para tornar a sociedade mais equânime, entretanto, também não podemos nos furtar de que esta desigualdade possui muitas peculiaridades, sendo uma delas o não menos intenso recorte racialista, resultado das opções políticas, sociais e econômicas realizadas pelo Estado nacional (nos períodos pré e pós-abolição), impedindo assim, a plena integração dos indivíduos negros à sociedade brasileira e em diversos campos da vida social.

Com uma leitura muito apressada e que não leva em conta, muitas vezes, as questões inerentes à nossa formação social, os críticos do Estatuto da Igualdade Racial argumentam que a proposta de cotas raciais altera radicalmente as bases universalistas da Constituição de 1988 pelo seu caráter compensatório e transitório. Estes também defendem o princípio da universalidade como um fim em si mesmo, ou seja, é como se este princípio, expresso apenas de forma jurídica na Carta Magna, possuísse o poder e o papel de remir todos os problemas inerentes à sociedade sem a necessidade de medidas complementares. Tal compreensão mecânica, diria até maniqueísta, concebe o estatuto como instrumento absoluto de privilégio de “raça” e não como um dos meios, mesmo que por prazo determinado, de superação da desigualdade racial para o fortalecimento, garantia e efetivação dos próprios princípios universais contidos na Constituição.

Discurso também muito utilizado pelos críticos alega que a Constituição Federal já trata do racismo em seu Capítulo I, artigo 5º, caput XLII, considerando tal prática como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei, todavia, tal artigo é bastante incipiente (apesar de sua importância) para dar conta da desigualdade racial na sua totalidade, pois este trata o racismo sob o ponto vista da prática de crime apenas, não indicando qualquer ação (pública ou privada) ou dispositivo que aponte o racismo como responsável pelas péssimas condições de vida e baixo índice de participação da população afro-descendente na riqueza socialmente produzida no país, demandando, desta forma, a interferência do Estado na referida questão por meio de políticas públicas.

Apesar da importância da defesa da Constituição e de seus princípios universais, e da orientação que tais princípios oferecem às legislações e políticas sociais direcionadas a determinados segmentos da sociedade brasileira (crianças, idosos, mulheres, pessoas com deficiência, etc.) e, mesmo em meio a tantas iniciativas de focalização das políticas sociais na pobreza extrema, ainda é notória a invisibilidade do tema relacionado à desigualdade racial neste âmbito, daí a idéia nada ingênua de que “não somos racistas”. Novos argumentos ou velhos mitos raciais?

Sem querer, portanto, esgotar aqui essa discussão e dar uma resposta definitiva à questão, o fato é que, no que se refere ao Estatuto da Igualdade Racial, não se trata de julgá-lo ou reduzí-lo a um mero instrumento para a construção de uma sociedade bicolor, polarizada entre negros e brancos, ou para a negação da diversidade e variedade do espectro de cores que representa o povo brasileiro, muito menos para culpabilizar, como num período de “caças às bruxas”, os indivíduos brancos e seus antepassados, como advogam alguns críticos, mas trata-se, por outro lado, de responsabilizar o Estado enquanto ente público, que durante os séculos XIX e XX, especificamente, realizou e intensificou escolhas políticas pela marginalização de segmentos sociais em detrimento de sua integração à sociedade, não tão somente pela sua condição de classe, mas, sobretudo, pela sua aparência e caráter fenotípicos, assim como pela sua origem étnico-racial e que até hoje apresentam seus resultados caros e nefastos.

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[1] Assistente Social do INSS; Mestre em Serviço Social, Política Social e Trabalho pela UERJ; Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Ética e Diversidade de Gênero, Etnia e Racismo (NEDIGER) da UFF – Campos dos Goytacazes-RJ e; professor do curso de Serviço Social da Faculdade Redentor (Itaperuna-RJ).

[2] Jornalista e sociólogo, diretor responsável pela Central Globo de Jornalismo e colunista do Jornal O Globo.

[3] O título original chama-se Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor.