
Quando assumimos um ponto de vista científico sobre o mundo, mesmo que não estendamos para toda a existência, nos deparamos com momentos cruciais em que se chocam tal ponto de vista com outros que nos são igualmente substanciais. O problema muitas vezes é que o ponto de vista científico emerge em um momento em que já possuímos uma vivência prévia que nos forneceu as bases mais significativas de nossas compreensões sobre o mundo. Assumir então esta nova visão de mundo se constitui em um trabalho tão doloroso que parece nos cortar a própria carne. Podemos falar de conversão ou mesmo de alternação, o conceito de Peter Berger: a capacidade de assumir pontos de vistas diferentes. Mas há um
habitus entranhado, incorporado, que recorrentemente nos “lembra” o passado, mesmo que imperceptivelmente. A religião é a grande inimiga da ciência, enquanto visões de mundo, e não deve ser diferente. Ambas fornecem significados para a existência que são antagônicos em método e teoria. E nos esquivamos instrumentalizando a ciência – profissão - e experimentando a religião - modo de vida. Esta diferenciação é moderna e ela resolve muitos problemas, a despeito de muitas vezes tender à esquizofrenia quando se tenta articular. Ao se aproximar o natal, tudo isso me vem à tona, e sempre me pergunto: qual é o atual significado deste evento já que na totalidade da minha vida cotidiana a religião está ausente? Minha resposta é: isto é um alto-engano. É desprezar, por exemplo, o quanto o cristianismo esteve presente na formação da ciência moderna, nos tratados morais que hoje nos chegam, nos conteúdos significativos não-científicos que preenchem grande parte da existência no ocidente. Neste sentido, penso com Rorty e Vattimo
, a respeito do cristianismo: o mundo ocidental é um mundo melhor com ele, com as histórias morais de redenção, ajuda mútua, solidariedade – porém na esfera privada. É nesta esfera que parte do conteúdo de nossas ações públicas se estruturam, porém de forma íntima, de modo particular, e deve ser assim. Um pragmatismo religioso: não importa a veracidade científica do cristianismo, importa a utopia política do “bom Samaritano”, a irmandade solidária da “repartição dos pães”. Um grande cineasta captou isso antes dos autores acima, o italiano Píer Paolo Pasolini. Sua primeira fase traz uma pérola cristã, “O evangelho segundo Matheus” (1964), em que esse “Jesus pragmatista” é apresentado sensível à causa dos “pequenos” e profundamente solidário. O interessante é que o cineasta era além de cristão, comunista e homossexual. Não importa muito, na maior data cristã, nossas idiossincrasias. No natal, a mensagem de fraternidade cristã nos supera.