sexta-feira, 30 de janeiro de 2009


JustificarQuando as bravatas são indispensáveis....

Por Roberto Torres


O senso comum bom moco, quase sempre homicida em segredo, costuma nos dizer que bravata é coisa feia em política... principalmente em política externa... Em coro silencioso com este senso comum, temos sempre a mídia internacional defendendo seu código de boas maneiras que no fundo tem a função de estabelecer tabus, silenciar vozes e obliterar questões e denúncias... Diante dessa orquestração, em grande parte conduzida de modo pré-reflexivo até por gente que convictamente não apóia o silenciamento de vozes e nem a obliteração de debates, a insistência nas bravatas, nos artifícios retóricos, performativos e diplomático-rituais talvez seja a única arma de quem rema contar maré, lutando com armas impotentes... estes recursos, ao emergirem de atos de vontade rebeldes aos bons modos institucionais, tem o poder de desmoralizar a cerimonia, e merecem o mais alto grau de admiração de quem verdadeiramente se revolta contra o cinismo.
Não é a toa que a mídia internacionalmente orquestrada se preocupa em difundir os esteriótipos: Hugo Chaves é bravateiro, Morales etc.... Diante do Holocausto empreendido pelo Estado de Israel não me recordo de atitude mais exemplar deste poder desmoralizador das bravatas do que a iniciativa de Hugo Chaves de expulsar o Embaixador de Israel da Venezuela! Ontem, em Davos, no Fórum Econômico Mundial, o Primeiro-Ministro da Turquia Recep Tayyip, levantou-se de sua cadeira e abandonou o debate com Shimon Peres sobre os ataques de Israel, após ser impedido pelo mediador do debate de responder uma longa intervenção do líder do Estado Siono-Nazista. A bravata de Tayyip talvez não tenha sido nada diante do pulsacao genocida que vinha de Shimon Peres em sua defesa veemente do Holocausto, e diante dos aplausos do público presente que explicitou a cumplicidade política do Atlantico Norte com o massacre...
Mas ele mostra que, diante do cinismo, a honra e a falta de bons modos na política externa, nos eventos onde os chefes das máquinas de matar mais poderosas do planeta querem dar conselhos ao mundo, é a única arma de quem deseja realmente marcar distancia da barbárie e se solarizar com as vítimas do extermínio de Estado.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

PERIFERIA É TUDO IGUAL

Fabrício Maciel

Conhecendo algumas partes do Nordeste é impossível não lembrar de Campos. A (des)estrutura de cidades periféricas, inclusive a saudosa Itaperuna do meu chará Bill, é sempre a mesma. A cara sofrida do povo também. Perto de Recife situa-se Caruaru, famosa por sua Feira de pequenos comerciantes e por ser, como várias cidades aqui, terra de poetas e artesãos. Regina Casé se veio aqui certamente disse que o povo daqui é tão feliz quanto o da África, e diria o mesmo de Campos. Sua postura politicamente correta é a mesma da sociologia conservadora que insiste em elogiar a cultura local e não ver as dificuldades materiais do povo. Não há besteira mais inconseqüente na academia do que isso.

Como em qualquer lugar, o capitalismo aqui se apropria das supostas singularidades culturais locais para esconder toda sua força visceral. A força da cultura local na cabeça das pessoas precisa ser explicada. Sempre achei Campos uma cidade desagradável, suja, barulhenta, etc, bem como sempre me indignei com seus níveis de desigualdade, naturalmente. Mas nunca entendi por que muita gente de fora consegue achar Campos aconchegante. Agora entendo. Visitando algumas praias do Nordeste, famosas por suas águas límpidas, pude entender a força que o discurso da localidade tem para dinamizar a economia local e esconder a lógica de desigualdade do capitalismo como um todo, ou seja, para esconder sua condição de sistema mundial, como diria Wallerstein, numa suposta especificidade local. Besteira total. Não existe cultura local ou economia local. Os bonecos de barro que se fazem aqui não são talento exclusivo de quem mora aqui. Alguém que não é daqui pode fazer. Parece simples, mas a esquizofrenia do relativismo que exalta a cultura local consegue construir o contrário disso muito bem.

Voltando às praias, com o olhar do sociólogo chato que estraga prazeres dos discursinhos locais, e para provar que não estou sendo leviano, consegui ver algo ruim nas praias do Recife e em contraste entender por que gente de fora vê algo legal nas praias de mar imundo da região próxima a Campos. As chamadas praias urbanas daqui são tensas, lotadas, com os prédios logo do outro lado assombrando a natureza e impondo o peso da vida urbana. Não se esquece o cotidiano da semana do escritório. Ele está logo ali, diante do mar lindo. Nas regiões de Campos não é assim, o ambiente é distante disso e transmite por isso a sensação de fuga da cidade. Por isso é aconchegante. No entanto, estas diferenças locais são maximizadas pela propaganda do turismo e sempre escondem o mais importante, a vida real das pessoas em suas dificuldades.

O capitalismo se reproduz na lógica centrífuga, do centro para os arredores. O sistema mundial é assim e as diferenças regionais dentro dos países também. Campos e Nordeste são periferias do capitalismo brasileiro que é periferia do capitalismo mundial. Mas para nunca se mostrarem como tais se enfatizará sempre no senso comum o valor da cultura. De fato ela é motivo de orgulho para as pessoas, os artesãos e poetas sentem de verdade o valor do que fazem. Mas sentem também as dificuldades materiais. Muitos sentem a fome, vendendo seus cordéis por um real dentro dos ônibus. Isso não é brincadeira, assim como a sociologia não deveria ser. Não dá pra tolerar mais o discursinho da cultura local e de seu valor. Não dá mais pra tolerar a palhaçada relativista conservadora que legitima a fome das pessoas. Conversando com as pessoas vemos que a cultura é importante, mas é apenas uma pequena parte de seu cotidiano, de seu imaginário, não isenta da angústia de por comida na mesa. Não há identidade no caixão. Chega de palhaçada na sociologia. Lugar de Regina Casé é no Fantástico, cujo nome sugere bem a predominância da fantasia sobre a realidade.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Fórum Social Mundial, Fórum Econômico Mundial e questões weberianas.... Algumas obviedades.

George Gomes Coutinho

Para prof. Adelia Miglievich no momento de novos vôos

Há pouco mais de um ano e seis meses defendi minha dissertação de mestrado em Políticas Sociais na UENF (disponível aqui). Particularmente comigo ocorreu o momento de saturação ante o rebento. Não é algo tão exótico...é quase prática consagrada na pós-graduação. Isto faz com que inconscientemente (ou não) criador e criatura afastem-se para um importante exílio existencial. Em verdade os dois testam-se mutuamente para observar se há alguma longevidade naquele discurso, não poucas vezes produzido em condições de tensão, onde o maior desafio ex post facto é testar a capacidade heurística de tudo aquilo após um determinado tempo. Chegando em janeiro de 2009 acredito que momentaneamente temos algum fôlego. Eu e a dissertação.

Averiguando o material escrito na busca por liquidar compromissos profissionais já assumidos e invariavelmente postergados vi que existem questões interessantes, teóricas e empíricas, que merecem ser resgatadas e amadurecidas. Mas além destas questões estritamente “formais”, do “homem de reflexão”, há um elemento que paira sobre todo o texto em suas conseqüências: os problemas do “homem de vontade”. E é sobre isto este pequeno ensaio.

Max Weber em seu ainda incrivelmente profícuo debate sobre a objetividade do conhecimento nas ciências sociais, em artigo publicado em 1904, discute sobre as particularidades do métier sociológico no delicado momento de sua institucionalização - como o é em toda ciência. Ora, o que demarcaria o campo de trabalho dos cientistas sociais? E, sobretudo, como deve ser sua prática científica específica na medida em que este profissional exatamente encontra-se constrangido pela divisão social (aqui intelectual) do trabalho? Dentre as muitas problemáticas epistemológicas notadamente profundas neste tocante me restringirei à pedagógica imagem proposta pelo autor da diferenciação entre o “homem da reflexão” e o “homem da vontade”. Certamente esta imagem se não resolve em pormenores os problemas decorrentes desta reflexão ao menos nos serve para pensar...

Ora, Max Weber, acusado por Michel Löwy de “positivista” (mais um rótulo estéril em que entram de Augusto Comte até Niklas Luhmann), discute justamente a impossibilidade prática de geração de conhecimento “neutro” na medida em que o olhar, o recorte temático, o que estudar, enfim, os primeiros passos de toda e qualquer pesquisa, são derivados de elementos da subjetividade do cientista. Há a VONTADE que irá, muitas das vezes, definir, o objeto. Desnecessário dizer que as nossas convicções constituem este complexo. Portanto nossos posicionamentos mais íntimos diante da política, da cultura, da sociedade, enfim, irão direcionar nosso olhar. E certamente não haveria de ser diferente. Eis onde está em cena “o homem de vontade” onde se constrói o PROBLEMA de pesquisa. Afora questões práticas metodológicas, obviamente, o homem de vontade é o que faz a política, é o que atua na esfera pública onde defronta-se contra ou a favor da correlação de forças existente.

O “homem reflexivo” (ou de reflexão) encontra-se no momento onde há a aplicação sistemática e exaustiva de métodos ante elementos construídos pela subjetividade do homem de vontade, onde são constituídas as prioridades da conjuntura seja pela comunidade científica ou pela sociedade onde situa-se o cientista. Certamente faz todo o sentido a frase “Cabe-nos fazer frente às exigências do dia”, dita pelo próprio Weber. E é onde o “homem de vontade” situa-se em saia justa.... Dado que hipóteses são negadas justamente neste momento de confronto com dados, relatos, documentos...

Claro que em Weber há a carência de uma teoria hermenêutica que explique como a intersubjetividade torna de fato questão “a” uma prioridade em detrimento de “b”. Seja para a comunidade de cientistas ou para a sociedade.. Mas este não é meu ponto aqui neste texto.

Invariavelmente os “tipos ideais” do “homem de vontade” e do “homem de reflexão” - o tipo ideal é um recurso explicativo redutor da complexidade inerente ao real portanto na realidade os dois ESTÃO MISTURADOS e meu uso aqui é didático/cômico para reforçar o argumento - geram todos os constrangimentos e surpreendem o cientista social na sua práxis cotidiana. E são estes princípios de “vigilância epistemológica” que constroem os fatos. Os fatos não estão ali isentos, pairando em qualquer éter...“O fato é conquistado ante a ilusão do saber imediato”, como apontaria Pierre Bourdieu, onde as continuidades são inegáveis com as questões que estou discutindo aqui.

Antes de prosseguir, sabendo que não há “objetividade” pronta dada pelas coisas “nelas mesmas”, desconsiderando qualquer premissa de neutralidade, vemos o quanto há de pouco crível na acusação de Löwy de “positivismo weberiano...” que se ateve em seu argumento unicamente na apropriação unilateral da chamada “neutralidade axiológica” fora do contexto original.

Retomando, acompanho com preocupação como analistas de esquerda e direita parecem ainda compreender pouco ou quase nada do funcionamento prático dos dois grandes Fóruns que leremos e ouviremos exaustivamente nos próximos dias neste final do mês de janeiro de 2009. Falo aqui do Fórum Social Mundial e do Fórum Econômico Mundial. Excesso de homem de vontade e carência quase absoluta do homem de reflexão.

Voltemos ao “homem de vontade” em meu caso. Até o presente momento sou ainda tão cético quanto impaciente com a chamada “democracia representativa liberal” e seus desafios. Se ela inegavelmente traria avanços comparativamente aos momentos de ditadura de esquerda ou de direita na História, algo indiscutível em praticamente todos os quesitos, isto não nos deve fazer com que tenhamos necessariamente que aderir a um dogma construído no “pós-terceira onda” de democratização.... Ainda há pontos de estrangulamento para a participação política popular seja pelo “filtro” do voto ou mesmo pelas especificidades terminológicas do léxico da tecnocracia onde qualquer aspiração progressista torna-se piada. De toda forma em sociedades estruturalmente desiguais a chamada “igualdade civil”, sempre relativa, encontra-se desconfortável. E é sob a premissa da igualdade civil que assenta-se normativamente a legitimidade da democracia representativa liberal (meu voto valeria tanto quanto o de Antonio Ermírio de Moraes...).

Evidente que teoricamente parte de minhas preocupações enquanto sociólogo são concentradas para pensar saídas políticas em um cenário onde as “energias utópicas” encontram-se tão esmaecidas quanto desacreditadas. Mais um ponto do “homem de vontade” em que parto da premissa normativa que a sociedade que temos necessariamente precisa melhorar substantivamente e, para tanto, é necessário discutirmos com rigor suas premissas de funcionamento. Eis a adesão à teoria crítica (mais um rótulo escorregadio).

Claro que pensando em um misto de sociologia política e filosofia política eu aderi de forma quase entusiástica ao que se discute como “democracia cosmopolita”. Seria enfim uma via para construirmos uma paz mundial que não fosse somente a dos cemitérios? Ora, teríamos mecanismos sistêmicos para tal, tecnologia, etc.. Teríamos uma demanda igualmente global, dado que questões do capitalismo financeiro ou mesmo impactos sócio-ambientais ignoram solenemente as fronteiras dos Estados-Nacionais. Poderíamos pensar, como apontaria o filósofo Peter Singer, em uma ética global.. Porque não?

Já disse o sociólogo belga Fréderic Vandenberghe que o cosmopolitismo seria uma resposta radicalmente humanista para a globalização (conceito difícil onde concentra-se uma miríade de fenômenos). Certamente desta posição partilhariam David Held (o papa da democracia cosmopolita), Anthony Giddens, Jürgen Habermas, Ulrich Beck, para ficarmos nos mais cotados. Diante do tédio institucional em que a democracia representativa liberal nos colocou... oras.. porque não pensarmos em uma democracia fora dos limites carcomidos dos Estados-Nacionais? Uma solução radical para problemas radicais.

Sem pestanejar, por indicação de minha orientadora, prof.ª Adelia Miglievich, pensei os dois Fóruns transnacionais. Tínhamos um problema teórico substantivo. Tínhamos problemas normativos igualmente relevantes. E tínhamos um objeto pujante.

Neste momento o homem de vontade teve que passear, com parte de suas radicais convicções humanistas, e fica o homem de reflexão. Se os Fóruns poderiam, cada qual a sua maneira, projetar “um outro mundo possível”, eles deveriam partilhar de um punhado de premissas que poderiam ser atestadas na prática. Ou não.

E não foram até onde pude acompanhar.

Os adeptos da “democracia cosmopolita” defendem que pensarmos em um cenário político transnacional poderia ser uma via interessante para o enfrentamento de assimetrias, para o incentivo da auto-vigilância (auto-contenção decorrente), da transparência, etc.. Na medida em que compreende-se que a coerção transnacional poderia ser tão ou mais qualificada quanto a interna. Mas, para que este novo contrato social funcione em uma escala pós-nacional teríamos que pensar em agentes onde o pacto se desenvolvesse em um ambiente de equidade, onde houvesse a preocupação explícita com o enfrentamento das assimetrias, onde fosse viável algum tipo de ambiência dialógica fértil. E nenhum dos fóruns oferece isso.

Em verdade onde há um discurso previamente formatado e protocolar em um, em Davos, ou na doce polifonia libertária de outro, no FSM, há predominâncias de atores “a” sobre “b”... Pesa a desigualdade de distribuição de recursos simbólicos, tal como em qualquer setor da sociedade. Qualquer movimento. Qualquer partido. E no caso específico do FSM há agrupamentos mais organizados do que outros o que oculta, no mercado político, demandas reprimidas que nesta condição continuam. Com FSM ou sem FSM. No FEM de Davos, aquela luxuosa estação de esqui, “ortodoxias” religiosas, políticas e culturais fazem com que seja simplesmente risível acreditar que Bono Vox tenha tanto peso quanto Bill Gates faticamente. Mas, na espetacularização, que oblitera a reflexividade, Vox e Gates são agentes do mesmo cenário global, conversando alegremente sobre a fome mundial. Illusio!

Sobre os fóruns transnacionais onde congregam-se mercado, sociedade civil e Estado, há o forte peso da promessa de “reinvenção da política”. Minha preocupação é que exige-se discursivamente muito mais do que estes fóruns podem realmente oferecer. Mesmo intelectuais, minha crítica é além da mídia, ao participarem da mitificação dos Fóruns abortam qualquer possibilidade de mudança progressista ao verem apenas o que querem ver (Ou conseguem ver). Não conseguem compreender que os fóruns, longe de qualquer premissa messiânica, podem ser no máximo interessantes laboratórios em que o experimentalismo seja parte inegável de sua constituição para práticas políticas cosmopolitas enquanto não estamos preparados para algo assim in totum.

Retomando pela última vez Max Weber, as ciências sociais são ciências empíricas. Devem se dedicar a pensar não tanto a realidade social como “deve ser”. A tarefa é pensar o mais próximo possível do que ela é. Assim o homem reflexivo presta grande serviço ao homem de vontade. Em suma, certamente se quisermos ajudar a pensar os fóruns, que inclusive este ano contam com uma reunião inspirada nestes interessantes eventos até mesmo na praia de Atafona (norte fluminense – município de São João da Barra – RJ), podemos começar discutindo suas dificuldades inúmeras que se aproximam muitíssimo da política “realmente existente”. Desta maneira, quem sabe, vislumbraremos um projeto cosmopolita sólido, interessante e não delirante. Rotinizemos o carisma dos fóruns para seu próprio bem.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009


Sionismo, as armadilhas de origen


Carlos Eduardo Alcântara Martins é economista.e pesquisador.

Gilson Caroni Filho é professor de
Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso
(Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.

“Tem que olhar todos os pedaços. Tem que desmontar tudo. Aí você vai entender.”
Leon, personagem fictício, em Whisper vol. 2 no. 36, maio de 1990, autor: Steven Grant.

Dois artigos publicados há algum tempo pela Folha de S. Paulo, antagônicos e ambos falhos oferecem, em paralelo, bom ponto de partida para a discussão da ideologia do sionismo territorialista e suas implicações. O do jornalista inglês Daniel Finkelstein, reproduzido do The Times de Londres no suplemento Mais! de 11/01/2008, é uma defesa apaixonada do sionismo; o de Mateus Soares de Azevedo (em Tendências / Debates, de 14.01), uma condenação.

Azevedo falha duplamente. Primeiro, ao afirmar que o sionismo seria “uma ruptura com a tradição judaica”, o que não é de modo algum. Segundo, e mais importante, ao condená-lo por critérios morais, usando o termo “egoísmo coletivo”. Qualquer hobbesiano dirá, coberto de razão, tratar-se de uma tautologia, pois é o egoísmo o móvel fundamental das ações tanto de indivíduos quanto de grupos. O que Azevedo não percebe é que o sionismo só pode ser “condenado” a partir da análise de sua essência.

É essa “essência” que Finkelstein se propõe a defender. Após um longo “nariz de cera” (em que não se peja de apelar à figura emblemática de Anne Frank), passa a historiar o sionismo territorialista moderno, a partir de seu patrono, o jornalista húngaro Theodor Herzl, autor de Der Judenstaat (O Estado Judeu), de 1896.

A premissa de Herzl é que os judeus não podem se fiar na “opinião pública mundial” ou na “comunidade das nações”, que sempre assistiram impassíveis às incontáveis perseguições sofridas pelo povo judeu através dos séculos. Os judeus teriam que assegurar sua sobrevivência, como povo e como indivíduos, por seus próprios meios. O que só seria possível com o estabelecimento de seu Estado nacional soberano, para o que Herzl indica a Palestina (então sob domínio turco), local do último Reino de Israel.

Além do livro, considerado o marco inicial do moderno sionismo político, Herzl foi um ativo militante do ideal sionista, que pregou por toda a Europa, além de, como líder do movimento, conduzir negociações com a Turquia e o Egito.

A ideologia territoralista é excludente. Em momento algum Herzl advoga pública e explicitamente o extermínio ou a expulsão violenta dos palestinos não-judeus. Mas deixa claro, em seus diários, que eles deveriam ser “persuadidos a se retirarem”, por meios econômicos como o confisco de suas terras e outras propriedades e a recusa em lhes dar emprego. Ou seja, em instância final Israel deveria ser o lar exclusivamente dos judeus – e inclusiva e idealmente de todos os judeus do mundo, que só ali teriam assegurada sua sobrevivência.
Herzl tampouco define fronteiras específicas para o Estado judeu, referindo-se genericamente à “Palestina”. Mas da mesma forma antevê o caráter necessariamente expansionista de tal Estado, até mesmo para acomodar a desejada imigração em massa. É significativo que, nos documentos oficiais do governo Israelense, o território de Israel engloba hoje toda a Palestina, Gaza, Cisjordânia e Golan incluídas.

Embora Finkelstein compartilhe do equívoco de Azevedo ao afirmar que “a origem do Estado de Israel não está na religião”, é óbvio que as propostas de Herzl estão imbuídas da visão toráica de “povo escolhido” (à exclusão de todos os demais) e de “destino manifesto” – de resto não diferentes da professada pelos proponentes do PNAC, Plano para um Novo Século Americano, que norteou o “bushismo” nos Estados Unidos – a começar pela escolha da “Terra Prometida” para lar do Estado de Israel.

Mas o discurso herzliano é totalmente laico (o que foi desprezado pela “esquerda sionista”, que acedeu em criar Israel como um Estado confessional, vide a Estrela de David em sua bandeira). E seus objetivos, estritamente materiais: terra e poder.

Quer seu criador estivesse consciente delas ou não, as implicações da ideologia sionista territorialista são inescapáveis. E Finkelstein as explicita: “Assim, quando se pede a Israel que respeite a opinião mundial e confie na comunidade internacional, não se está compreendendo o ponto fundamental. A própria idéia de Israel é uma rejeição dessa opção. Israel só existe porque os judeus não se sentem seguros como tutelados da opinião mundial.”

Daí se depreende inevitavelmente que quaisquer “negociações” ou “acordos” não têm valor para Israel, que os usará se conveniente assim como os ignorará se e quando, a seu exclusivo juízo, for necessário para sua segurança. Finkelstein continua sua explanação sem se dar conta de que explicita o que a propaganda sionista tenta ocultar: “Israel entregará suas armas quando os judeus estiverem em segurança, mas não o fará enquanto não estiverem.” E só a Israel compete dizer se a “segurança” foi alcançada ou não, bem como até onde o Grande Israel terá que se estender até então.

Mas o sionismo não recorreu à comunidade internacional, representada pela ONU, para formalizar a partilha da Palestina e a criação do Estado de Israel? Sim, mas por mero oportunismo, valendo-se da “consciência culpada” dos gentios face ao Holocausto e explorando as tensões geopolíticas entre as antigas potências coloniais européias, Inglaterra (já detentora do “mandato palestino”) e França à frente, Estados Unidos e União Soviética, além da divisão entre os países árabes. E só o fez por constatar que o caminho da violência e do terrorismo não levaria à consecução de seus objetivos.

Portanto, por sua própria origem e seu cerne ideológico, o Estado de Israel se definiu como uma nação que despreza a opinião mundial, não reconhece a comunidade internacional e ignora quaisquer decisões colegiadas que não lhe pareçam convenientes.

É por isso que Israel jamais concordará com a criação de um Estado Palestino, que o obrigue a ceder parte de “sua” terra (como na canção-tema do filme Exodus, “Esta terra é minha / Deus deu esta terra para mim”). Certamente é esse o motivo pelo qual Israel nunca hesitou, e nunca hesitará, em promover “limpezas étnicas” e guerras de extermínio, pelas armas ou pelo boicote, assim como não hesita em atacar instalações e veículos da ONU e da Cruz Vermelha Internacional, “intruso” na “minha terra".

Um Estado que nunca acatou uma resolução da ONU, que viola sistematicamente o Direito Internacional, só pode ser convencido por uma política de contenção de força. Dado o poder de veto dos Estados Unidos no Conselho de Segurança da Organização, essa é uma proposta impossível, mas o que é a história senão a concretização de impossibilidades? Um jogo vital que põe por terra as certezas positivistas

Em 2004, numa decisão histórica, a Corte Internacional das Nações Unidas, em Haia, decidiu que a parte da barreira de 685 quilômetros que Israel estava começando a construir nos territórios palestinos violava a lei internacional. O então ministro das Finanças, Benjamin Netanyahu, foi categórico: ”O que vai acontecer agora é o seguinte: o assunto vai para a Assembléia-Geral da ONU. Eles podem decidir qualquer coisa. Podem dizer que a Terra é chata. Isto não fará com que a decisão seja legal, verdadeira e justa".

Como se vê, na melhor das hipóteses, o que Israel aceitará como “solução palestina” será um gueto, um território sem soberania, definido pelas alegadas necessidades de segurança e seus imperativos nacionais. Como alternativa à desocupação de Gaza, um Estado virtual? É isso o que propõe o colossal aparato político-midiático sionista? Sujeitar a humanidade a seu planisfério?

Ainda está longe o dia da coexistência de dois Estados na Palestina. Atualmente há uma geração, em Gaza e na Cisjordânia, que conhece apenas a vida no gueto. Jovens que aprenderam, com a última ofensiva israelense, que a existência dos filhos de Ismael só é possível sob o refúgio incerto de uma barricada.


segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Operação Chumbo Impune

por Eduardo Galeano

Este artigo é dedicado a meus amigos judeus assassinados pelas ditaduras latinoamericanas que Israel assessorou.

Para justificar-se, o terrorismo de estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe pretextos. Tudo indica que esta carnificina de Gaza, que segundo seus autores quer acabar com os terroristas, acabará por multiplicá-los.

Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Nem sequer têm direito a eleger seus governantes. Quando votam em quem não devem votar são castigados. Gaza está sendo castigada.

Converteu-se em uma armadilha sem saída, desde que o Hamas ganhou limpamente as eleições em 2006. Algo parecido havia ocorrido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e, desde então, viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.

São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com desajeitada pontaria sobre as terras que foram palestinas e que a ocupação israelense usurpou. E o desespero, à margem da loucura suicida, é a mãe das bravatas que negam o direito à existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, há muitos anos, o direito à existência da Palestina.

Já resta pouca Palestina. Passo a passo, Israel está apagando-a do mapa.

Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam a pilhagem, em legítima defesa.

Não há guerra agressiva que não diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu a Polônia para evitar que a Polônia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel devorou outro pedaço da Palestina, e os almoços seguem. O apetite devorador se justifica pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos dois mil anos de perseguição que o povo judeu sofreu, e pelo pânico que geram os palestinos à espreita.

Israel é o país que jamais cumpre as recomendações nem as resoluções das Nações Unidas, que nunca acata as sentenças dos tribunais internacionais, que burla as leis internacionais, e é também o único país que legalizou a tortura de prisioneiros.

Quem lhe deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza? O governo espanhol não conseguiu bombardear impunemente o País Basco para acabar com o ETA, nem o governo britânico pôde arrasar a Irlanda para liquidar o IRA. Por acaso a tragédia do Holocausto implica uma apólice de eterna impunidade? Ou essa luz verde provém da potência manda chuva que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?

O exército israelense, o mais moderno e sofisticado mundo, sabe a quem mata. Não mata por engano. Mata por horror. As vítimas civis são chamadas de "danos colaterais", segundo o dicionário de outras guerras imperiais. Em Gaza, de cada dez "danos colaterais", três são crianças. E somam aos milhares os mutilados, vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está ensaiando com êxito nesta operação de limpeza étnica.

E como sempre, sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense.

Gente perigosa, adverte outro bombardeio, a cargo dos meios massivos de manipulação, que nos convidam a crer que uma vida israelense vale tanto quanto cem vidas palestinas. E esses meios também nos convidam a acreditar que são humanitárias as duzentas bombas atômicas de Israel, e que uma potência nuclear chamada Irã foi a que aniquilou Hiroshima e Nagasaki.

A chamada "comunidade internacional", existe?

É algo mais que um clube de mercadores, banqueiros e guerreiros? É algo mais que o nome artístico que os Estados Unidos adotam quando fazem teatro?

Diante da tragédia de Gaza, a hipocrisia mundial se ilumina uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações ocas, as declamações altissonantes, as posturas ambíguas, rendem tributo à sagrada impunidade.

Diante da tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mãos.

A velha Europa, tão capaz de beleza e de perversidade, derrama alguma que outra lágrima, enquanto secretamente celebra esta jogada de mestre. Porque a caçada de judeus foi sempre um costume europeu, mas há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada dos palestinos, que também são semitas e que nunca foram, nem são, antisemitas. Eles estão pagando, com sangue constante e sonoro, uma conta alheia

sábado, 17 de janeiro de 2009

Violência, guerra e cegueira política

Por Paulo Sérgio Ribeiro

A despeito de qualquer polêmica entre historiadores sobre a caracterização das guerras datadas da segunda metade do século XX, a ofensiva militar iniciada por Israel há quase três semanas na Faixa de Gaza e as sucessivas imagens de destruição e morte de sua população nos remetem a um estado de perplexidade face à experiência conhecida nesse período. As informações sobre esse conflito, limitadas pelo cerco à imprensa imposto pelo exército israelense, são pautadas quase que exclusivamente na contagem mórbida de mortos e na exposição de crianças feridas em Gaza, além do vai-e-vem de autoridades diplomáticas e chefes de Estado em tentativas um tanto tardias de mediar o cessar-fogo de um massacre anunciado, consistindo numa mostra contundente da dor física e do sofrimento moral vividos em níveis inimagináveis em relação a um eventual conflito entre Estados cujas relações políticas lembrem, ainda que superficialmente, a observância de normas jurídicas vigentes em âmbito internacional tais como a 4ª Convenção de Genebra (*). Sem qualquer pretensão de análise exaustiva desse evento, posto ser radicado em um campo de lutas cuja dinâmica interna e determinações externas exigem um conhecimento prévio da história e da geografia do Oriente Médio – que corre o risco de ser tanto mais desconhecido quanto mais falado é pela “opinião pública” –, busco, apenas, concatenar fragmentos de uma conjuntura para o que, na falta de melhor termo, qualifico por dilema da violência.
Mesmo que esta abordagem venha a ser rotulada de formalista, entendo que a discussão de pressupostos analíticos e normativos, como a iniciada nas últimas postagens de Roberto e Fabrício, faz-se necessária em um esforço coletivo de elaborar uma interpretação desse drama humano; esforço que, longe de ser destituído de conseqüência política, permite que antes de apontarmos “o que fazer” questionemos “o que estamos fazendo”, sendo talvez o ato de solidariedade ao povo palestino (e à minoria israelense que se opõe a essa política de Estado) mais próximo de nossas mãos na blogsfera. Portanto, que a “crítica das armas” não se dissocie das “armas da crítica”. A desproporção de forças envolvendo um país dotado do 4º maior poderio militar do mundo e um grupo de militantes armados de modo precário em uma faixa de terra densamente povoada é a face mais visível desse conflito, embora implique no juízo apressado de aceitar como dispensáveis quaisquer justificativas para o uso da força, pois, na prática, como negar que vence mesmo quem é o mais forte? No entanto, a evidência da impunidade quanto à reiteração dos crimes de guerra, apesar de concreta, pode levar a uma visão estanque dos acontecimentos e à desconsideração de uma questão de fundo pertinente a legitimação da violência para além do Estado territorial.
A violência é um meio de impor sua vontade sobre o comportamento alheio, sendo o fundamento de um poder arbitrário que é, por sua vez, constitutivo da afirmação de crenças e valores cuja eficácia social reside no desconhecimento da violência que o criou. Essa violência simbólica, lembra Emmanuel Terray (2005), pode ser comparada à noção de recalque freudiano, pois o que é desconhecido não é suprimido, sendo atualizado na medida em que a relação de força que origina essa violência é subtraída de nossa consciência. Dizer que o Estado não se justifica pelos seus fins, como aprendemos em nossas primeiras leituras da sociologia da dominação de Max Weber, significa que as condições sociais de surgimento do seu poder são contingentes. Logo, o poder é um conceito amorfo justamente porque não há como recorrer a uma razão última para justificar a imposição de uma arbitrariedade. Com efeito, mesmo a violência física exacerbada em uma situação de guerra não é sinônima de um poder manifestado como “puro poder”, senão o resultado do trabalho cotidiano de autoridades e de instituições de elaborar uma “Razão de Estado” que paga o preço de tornar-se injustificável quando sua legitimidade é posta à prova na expansão territorial de seu domínio. Esse é o ocaso de Israel.
A proposta de violência simbólica de Pierre Bourdieu é em certa medida familiar ao realismo político, quando ponderamos que na sua obra a violência física e a violência simbólica são indissociáveis em uma relação social, negando, por conseguinte, uma relação intersubjetiva que seja alheia à dissimulação de um ato de força para obter ou conservar uma superioridade – algo bastante factível no que respeita, por exemplo, a um cessar-fogo. Contudo, Bourdieu enfatizou que não é vedada a tentativa de libertar-se desse poder invisível, possibilidade que é tanto maior quanto mais eficaz é o uso reflexivo do conhecimento; o que, para citar outra vez Terray (op. cit.), faz esse poder invisível aparecer em sua verdade nua. A aposta no conhecimento e, igualmente, na crítica do conhecimento, talvez seja um ponto de intersecção dessa perspectiva sociológica com a leitura que Jürgen Habermas faz do conceito de poder na obra de Hannah Arendt como alternativa ao realismo político – predominante nas ciências sociais ao menos desde o Max Weber da “Política como vocação”.
Para Habermas, a inovação trazida por Arendt está em conceber o poder como a possibilidade de um consenso não-coercitivo, sendo discernível pela formação pública da vontade a partir do entendimento recíproco. Essa possibilidade difere da noção de poder como uma associação entre atores que mesmo voltados para fins específicos podem participar de uma ação coletiva funcionalmente necessária para seu próprio êxito. Neste caso, há tão-somente uma combinação ótima de ações mobilizadas de forma unilateral por atores que definem sua margem de êxito a partir da interação estratégica com o outro, logo, estabelecendo uma decisão que interfere em uma coletividade sem basear-se na vontade comum de seus participantes – vontade que, obviamente, deriva de um trabalho político árduo com objetivos alcançáveis às vezes somente nas gerações futuras. Nas palavras de Habermas (1990, p.103), “H. Arendt desprende o conceito de poder do modelo teleológico da ação; o poder se constitui na ação comunicativa, é um efeito coletivo da fala, na qual o entendimento mútuo é um fim em si mesmo para todos os participantes”.
Há limites nessa abordagem, na medida em que “uma comunicação livre de violência” refere-se a uma situação de fala diversa das relações sujeito-objeto do mundo da produção e, também, dos modernos sistemas de administração e de suas organizações burocráticas como formas de poder vinculadas ao conhecimento técnico e especializado que impedem ou, pelo menos, dificultam uma comunicação desimpedida entre o expert e o leigo e cuja posse envolve o controle dos “segredos de Estado” – entre outros o planejamento de uma guerra. Diante de tais limites na obra de Arendt há por parte de alguns estudiosos um verdadeiro desdém. Ora, dizem com razão, não há qualquer experiência contemporânea de governo democrático que tenha se aproximado desse conceito de poder. No entanto, também não há poder que se institui continuadamente pela violência seja em regimes competitivos seja em regimes autoritários, senão pelo reconhecimento daqueles que se submetem em uma estrutura de domínio. O problema é que o caráter aparentemente voluntário dessa submissão é indissociável da “violência estrutural” inscrita na política de Estado, patente quando se trata de uma política moldada pelo expansionismo militar. Violência que não se manifesta como violência, lembra Habermas (op. cit.), correspondendo à interrupção dos processos comunicativos nos quais se publicizam temas e problemas conforme uma ética discursiva orientada pela busca da verdade do melhor argumento – o modus operandi do trabalho permanente de reconstrução da esfera pública.
Em uma palavra, Bourdieu e Habermas concordam, sob registros diferentes é verdade, que o uso da força retira sua força do auto-engano sobre si mesmo ou sobre uma situação devido a convicções comuns imperceptíveis em nossas tomadas de posição, mas operantes na legitimação de uma política. Desse modo, mesmo que 90% da população israelense aprovem a ofensiva militar em Gaza, a pretensão de legitimidade dessa ação bélica não passa mesmo de uma pretensão se consideramos que o arbítrio desse conflito decorre da crença de que o melhor encaminhamento para um cessar-fogo venha a assegurar de fato a restauração de condições materiais nas quais o povo palestino possa exercer qualquer veleidade de autonomia. Uma reportagem editada em 14 de janeiro pela Agência Carta Maior (http://www.agenciacartamaior.com.br) sobre a questão dos recursos hídricos na Palestina é bastante sugestiva para caracterizar essa “violência estrutural”, a contar do seu título “A água (que ninguém vê) na guerra”, dado por sua autora, Ana Echevenguá. A série de anexações das reservas de água realizada por Israel desde a década de 1960 em suas zonas fronteiriças perfaz o controle efetivo desses recursos hídricos tanto em seu território quanto nos territórios palestinos ocupados. Acaso qualifiquemos o acesso à água como um direito difuso prescrito pelas regras internacionais para o seu uso sustentado, é no mínimo discutível esse monopólio da distribuição da água, posto que 4/5 do total desses recursos hídricos são apropriados por Israel. Ressalva Echevenguá que enquanto Israel irriga 50% das sua terras cultivadas, exige prévia autorização da população árabe para desenvolver atividades agrícolas.
Não quero sobrepor essa questão às demais dimensões desse conflito, mas apenas tomá-la como uma de suas variáveis intervenientes. O mote preferencial do terrorismo, mesmo não se tratando de uma questão menor, pode encobrir a discussão sobre o direito à resistência de uma população sitiada há décadas em terras definidas oficialmente pelas Nações Unidas como “territórios ocupados”. Dada à contigüidade espacial desses povos e à necessidade objetiva de recursos vitais localizados em suas fronteiras, as expectativas quanto ao cessar-fogo são inúteis, politicamente falando, se este dissociar-se de um esforço posterior de estabelecer uma interlocução entre atores institucionais e não-institucionais que restitua, em um horizonte não muito distante, relações políticas nas quais o vínculo a uma tradição nacional possa transigir com uma noção compartilhada de bem-estar dessas coletividades ao invés do silêncio cúmplice quanto à eliminação física de uma delas. Apego ingênuo a um desiderato universalista ante os particularismos em disputa? Pode ser. Entretanto, nada nos obriga a afirmar simplesmente que as coisas são como são se podemos recorrer ao raciocínio contra-factual como instrumento de ruptura com o senso comum, algo mais do que defensável de um ponto de vista sociológico. O conceito de esfera pública entendido não apenas como uma categoria abstrata mas como uma categoria da prática política é um referencial válido para a questão palestina, posto referir-se ao esforço real de construir uma comunicação na qual sustentar provisoriamente uma posição se coadune a defesa de um argumento cuja razoabilidade seja inclusiva de todos os interlocutores envolvidos. Não obstante, para que tal esforço seja eficaz é preciso lembrar que a argumentação racional é também uma luta para ampliar o campo discursivo de uma agenda pública que, no que toca ao conflito Israel-Gaza, remete à própria elaboração do passado do Estado de Israel cuja expansão territorial ocorre à revelia de qualquer noção minimamente aceitável de bom-senso. Noutros termos, distinguir entre o que se quer e o que se pode fazer nesse conflito supõe entender os mecanismos da violência simbólica que operam a naturalização de um assassinato em massa como moeda política corrente na disputa por terra, água e poder.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Mais um capítulo da novela Satiagraha: ou a imprensa da imprensa


Novamente surgem declarações e indícios da complexa interação entre meios de comunicação, polícias, empresários e o Estado. Confesso que, no caso da Satiagraha, não consegui identificar quem é quem nos grupos de interesses envolvidos. São tantos atores no jogo, e polígonos de paixões e interesses, que confundiriam até mesmo meus amigos leitores assíduos de Dostoiévski.

Após a investigação da investigação, temos agora a escuta das escutas. E parecem envolver cada vez mais personagens. Pelo caminhar dos fatos, espera-se que em breve, assim como temos jornalismo de economia, jornalismo de política, jornalismo de ciência, teremos também o jornalismo do jornalismo!

Observem abaixo a matéria da imprensa da imprensa.

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"Material apreendido de Protógenes revela: Globo participou da Operação Satiagraha"


Do Portal Comunique-se

O site Consultor Jurídico informa, nesta segunda-feira (12/01), que o delegado Protógenes Queiroz utilizou-se de seus contatos na Rede Globo para filmar o flagrante do encontro de Humberto Braz e Hugo Chicaroni, no restaurante El Tranvia, em São Paulo, 18/06, no qual Braz, ex-diretor da Brasil Telecom, tenta subornar a Polícia Federal para que deixe de investigar o empresário Daniel Dantas.

Segundo o delegado Amaro Ferreira – que comanda a operação –, os mais de 450 áudios em lugares onde Queiroz freqüentava, mostram que Robinson Braios Cerântula e Willian José dos Santos, da equipe da TV Globo, gravaram o momento da tentativa de suborno no restaurante El Tranvia.

Os áudios foram conseguidos com aprovação da Justiça, do juiz Ali Mazloum, da 7ª Vara Federal Criminal de São Paulo, em outubro.

Por conta das informações privilegiadas é que a Globo também, segundo este relatório, conseguiu filmar a prisão – de pijamas – do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta.

A Rede Globo preferiu não comentar o caso. Por diversas vezes, a equipe do Comunique-se tentou falar com o repórter César Tralli, que narrou a operação no restaurante. Sem retorno.

Repórter da Folha teria conseguido informações com Abin
A repórter da Folha em Brasília Andréa Micael, segundo o relatório da PF, teria conseguido informações privilegiadas de que a polícia investigava Daniel Dantas e publicado com exclusividade em 26/04/08 com agentes da Abin Luiz Eduardo Melo e Thelio Braun D´Azevedo.

À época, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi colocada em prova por ter feito escutas clandestinas para esta investigação de, entre outros, o ministro do Supremo, Gilmar Mendes.

Em férias, a repórter Andréa Micael disse apenas que, nos seus 20 anos de profissão, nunca revelou suas fontes. "Fonte é um negócio sagrado", afirmou.


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Desconfio que isso não corre o mínimo risco de dar certo.





sábado, 10 de janeiro de 2009

O Gueto de Gaza

O texto publicado no New York Times sobre a história recente da faixa de Gaza, o qual eu divulgo abaixo, é mais um elemento para enriquecer nossas reflexões sobre o conflito.
O que você não sabe sobre Gaza

Rashid Khalidi*
Quase tudo o que levaram você a acreditar sobre Gaza está errado. Abaixo estão alguns poucos pontos essenciais que parecem estar ausentes da conversa, grande parte da qual transcorrendo na imprensa, sobre o ataque de Israel à faixa de Gaza.
Os habitantes de Gaza
A maioria das pessoas que vivem em Gaza não está lá por opção. A maioria dos 1,5 milhão de pessoas espremidas nos aproximadamente 360 quilômetros quadrados da faixa de Gaza pertence a famílias que vieram de cidades e aldeias fora de Gaza, como Ashkelon e Beersheba. Elas foram expulsas para Gaza pelo exército israelense em 1948.
A ocupação
Os moradores de Gaza vivem sob ocupação israelense desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Israel ainda é amplamente considerado um poder de ocupação, apesar de ter removido suas tropas e colonos da faixa em 2005. Israel ainda controla o acesso à área, as importações e exportações e a entrada e saída das pessoas. Israel tem controle sobre o espaço aéreo de Gaza e sua costa marítima, e suas forças entram na área à vontade. Como poder de ocupação, Israel tem a responsabilidade segundo a Quarta Convenção de Genebra de assegurar o bem-estar da população civil da faixa de Gaza.
O bloqueio
O bloqueio de Israel à faixa, com o apoio dos Estados Unidos e da União Europeia, tem se tornado cada vez mais severo desde que o Hamas venceu as eleições para o Conselho Legislativo Palestino em janeiro de 2006. Combustível, eletricidade, importações, exportações e a entrada e saída das pessoas da faixa têm sido lentamente sufocados, levando à problemas de saneamento, saúde, abastecimento de água e transporte que colocam as vidas em risco.O bloqueio sujeitou muitos ao desemprego, miséria e desnutrição. Isso representa uma punição coletiva -com apoio tácito dos Estados Unidos- de uma população civil por ter exercido seus direitos democráticos.
O cessar-fogo
A suspensão do bloqueio, juntamente com um cessar dos disparos de foguetes, foi um dos termos-chave do cessar-fogo de junho entre Israel e o Hamas. Este acordo levou à redução dos foguetes disparados de Gaza, de centenas em maio e junho para um total de menos de 20 nos quatro meses subsequentes (segundo números do governo israelense). O cessar-fogo foi rompido quando as forças israelenses lançaram um grande ataque aéreo e por terra no início de novembro; seis membros do Hamas teriam sido mortos.
Crimes de guerra
Atacar civis, seja pelo Hamas ou por Israel, é potencialmente um crime de guerra. Toda vida humana é preciosa. Mas os números falam por si só: quase 700 palestinos, a maioria deles civis, foram mortos desde o início do conflito no final do ano passado. Em comparação, cerca de uma dúzia de israelenses foram mortos, muitos deles soldados. Negociação é uma forma mais eficaz de lidar com foguetes e outras formas de violência. Isso poderia ter acontecido se Israel tivesse cumprido os termos do cessar-fogo de junho e suspendido o bloqueio à Faixa de Gaza.Esta guerra contra a população de Gaza não se trata realmente de foguetes. Nem envolve a "restauração da dissuasão por Israel", como a imprensa israelense tenta fazer você acreditar. Mais reveladoras foram as palavras de Moshe Yaalon, o então chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa israelenses, em 2002: "Os palestinos precisam entender nos recessos mais profundos de sua consciência que são um povo derrotado".
*Rashid Khalidi, um professor de estudos árabes da Universidade de Colúmbia, é autor do futuro livro "Sowing Crisis: The Cold War and American Dominance in the Middle East" [Semeando crises: a Guerra Fria e o domínio americano no Oriente Médio].Tradução: George El Khouri Andolfato

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Biblioteca Digital da Fundação Alexandre de Gusmão

Prezad@s,

Aproveitando o debate acalorado sobre a guerra entre Israel e Hamas (ou contra civis palestinos, como queiram) penso que vale conferir a Biblioteca de Política Externa da Fundação Alexandre de Gusmão, vinculada ao Ministério de Relações Exteriores do Brasil.

Eis o link: http://www.funag.gov.br/biblioteca-digital

Vale a pena para os que se interessam pelos debates que se encontram nos fundamentos normativos da política internacional (há interessantes textos no campo da filosofia política) ou até mesmo publicações com informações mais "terra-terra".

Ah, claro, disponibiliza os textos em pdf com livre acesso.

Boa leitura!

Democracia Eletrônica

Hoje na versão eletrônica do Jornal da Ciência, publicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), foi apresentada uma chamada para o "Click Ciência", portal da Universidade Federal de São Carlos, cujo tema interessa a todos os interessados na chamada "blogosfera".

O tema é "Democracia Eletrônica" e, em caráter relativamente breve, aponta reflexões sobre as consequências deste movimento de geração de informação descentralizada que atinge até locais ermos como a planície Goytacá.

Pelo sim pelo não vale a visita na Revista Click. Para tal basta "clicar" aqui.

AÇÃO!

Pessoal, depois da analíse vamos à ação. Surge esta possibilidade que encontrei no excelente blog Que cazzo é esse?. Abaixo assinado virtual pelo cessar fogo em Gaza.

http://www.avaaz.org/po/gaza_time_for_peace/98.php?CLICK_TF_TRACK

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

A NATURALIZAÇÃO MODERNA DA MORTE

Fabrício Maciel
Os últimos posts de Roberto tem sido muito pertinentes para mostrar a gravidade da situação entre Israel e palestinos, com episódios novos de uma velha história. Isto nos obriga a arriscar uma análise sobre seu significado. Que a mídia inventa mentiras, sensacionaliza, induz a visão, etc, já sabemos, e o trabalho de jornalistas sérios que tentam nadar contra tal poder sempre será fundamental. O intrigante é tentar compreender qual são os mecanismos e a lógica de legitimação do tipo de morte identitária ou coletiva que presenciamos nos últimos tempos.
Em todas as épocas humanos de diferentes interesses e orientações cognitivas ou impulsivas se mataram constantemente. Basta assistir qualquer filme sobre queda do império romano pra ver. É óbvio que sempre houve uma razão para tais fatos. Explicar as mortes de antigamente é relativamente fácil, basta atribuir tudo à barbárie que já se diminui bastante o problema. Mas como justificar a barbárie em tempos considerados civilizados? Não apenas em Israel, mas também no recente Kosovo e muitos outros casos é desnecessário dizer que os massacres são brutais. Por que nosso mundo consegue conviver com eles? Por que não há uma mobilização de sociedades civis inteiras, ou de uma sociedade civil transnacional, nem de governos, contra eles?
Dizer que é interesse material de alguns governos hegemônicos é pouco. Nenhum interesse material no mundo moderno se legitima por si mesmo. Logo, caímos no argumento da cultura, são choques culturais, choques de civilização, etc. Aqui me parece residir o problema. A noção de cultura é tão sacralizada e engessada na modernidade que ela é o ponto final de qualquer análise. São interesses culturais em choque e pronto. Por isso, apesar de todo nosso espanto, todo o massacre que assistimos agora é legitimo. Legítimo por que em última instância são interesses humanos em conflito. Não legítimo para mim, sociólogo, mas para o imaginário ocidental como um todo, para o nosso senso comum mundial. É assim que qualquer ação humana se naturaliza, se banaliza, sendo baseada em um argumento inquestionável. Quem questiona a legitimidade da cultura, da singuralidade cultural?
Por isso, vivemos uma tensão constante em nosso imaginário, o pavor diante de ações como tais mortes e a incapacidade de combate-las com ações civis, restando apenas as militares. Isto por que o conceito de cultura, vago e impreciso, é o naturalizador por excelência. Quando acaba a análise joga-se tudo na sacola da cultura e está resolvido. Não é um problema de cultura. É uma questão de contingência histórica que coloca interesses e impulsos antagônicos em choque.
Mas vamos para as soluções. Sempre pensamos em soluções institucionais. Nos mecanismos internacionais, ou na sociedade civil mundial. Esta está aprisionada pelo senso comum da cultura. Os primeiros devem ser analisados. As instituições internacionais democráticas são universalistas em sua função manifesta, e são as mesmas que em boa parte apoiam os Eua e Israel. E agora? Isto por que as instituições são ambíguas, em seu potencial de desdobramento prático, e não são neutras, ou seja, são recheadas de valores e significado, os mesmos que naturalizam a cultura e o expansionismo universalista com os desdobramento de guerra que presenciamos. Logo, temos um imbróglio. O papel da ciência é tentar explicitar ao máximo a contingência histórica que levou as instituições e sociedades modernas à dificuldade de praticar sua função manifesta. Este é nosso longo caminho.

“Por que nos odeiam tanto?!”

por Robert Fisk
colunista do jornal inglês The Independent

Assim, mais uma vez, Israel abriu as portas do inferno sobre os palestinos: 40 refugiados civis mortos numa escola da ONU, mais três em outra. Nada mau, para uma noite de trabalho do exército que acredita na "pureza das armas". Não pode ser surpresa para ninguém.
Esquecemos os 17.500 mortos – quase todos civis, a maioria mulheres e crianças – de quando Israel invadiu o Líbano, em 1982? E os 1.700 civis palestinos mortos no massacre de Sabra-Chatila? E o massacre, em 1996, em Qana, de 106 refugiados libaneses civis, mais da metade dos quais crianças, numa base da ONU? E o massacre dos refugiados de Marwahin, que receberam ordens de Israel para sair de suas casas, em 2006, e foram assassinados na rua pela tripulação de um helicóptero israelense? E os 1.000 mortos no mesmo bombardeio de 2006, na mesma invasão do Líbano, praticamente todos civis?
O que surpreende é que tantos líderes ocidentais, tantos presidentes e primeiros-ministros e, temo, tantos editores e jornalistas tenham acreditado na mesma velha mentira: que os israelenses algum dia tenham-se preocupado com poupar civis. "Israel toma todo o cuidado possível para evitar atingir civis", disse mais um embaixador de Israel, apenas horas antes do massacre de Gaza.
Todos os presidentes e primeiros-ministros que repetiram a mesma mentira, como pretexto para não impor o cessar-fogo, têm as mãos sujas do sangue da carnificina de ontem. Se George Bush tivesse tido coragem para exigir imediato cessar-fogo 48 horas antes, todos aqueles 40 civis, velhos, mulheres e crianças, estariam vivos.
O que aconteceu não foi apenas vergonhoso. O que aconteceu foi uma desgraça. "Atrocidade" é pouco, para descrever o que aconteceu. Falaríamos de "atrocidade" se o que Israel fez aos palestinos tivesse sido feito pelo Hamás. Israel fez muito pior. Temos de falar de "crime de guerra", de matança, de assassinato em massa.
Depois de cobrir tantos assassinatos em massa, pelos exércitos do Oriente Médio – por sírios, iraquianos, iranianos e israelenses – seria de supor que eu já estivesse calejado, que reagisse com cinismo. Mas Israel diz que está lutando em nosso nome, contra "o terror internacional". Israel diz que está lutando em Gaza por nós, pelos ideais ocidentais, pela nossa segurança, pelos nossos padrões ocidentais.
Então também somos criminosos, cúmplices da selvageria que desabou sobre Gaza.
Reportei as desculpas que o exército de Israel tem oferecido ao mundo, já várias vezes, depois de cada chacina. Dado que provavelmente serão requentadas nas próximas horas, adianto algumas delas: que os palestinos mataram refugiados palestinos; que os palestinos desenterram cadáveres para pô-los nas ruínas e serem fotografados; que a culpa é dos palestinenses, por terem apoiado um grupo terrorista; ou porque os palestinenses usam refugiados inocentes como escudos humanos.
O massacre de Sabra e Chatila foi cometido pela Falange Libanesa aliada à direita israelense; os soldados israelenses assistiram a tudo por 48 horas, sem nada fazer para deter o morticínio; são conclusões de uma comissão de inquérito de Israel. Quando o exército de Israel foi responsabilizado, o governo de Menachem Begin acusou o mundo de preconceito contra Israel.

Depois que o exército de Israel atacou com mísseis a base da ONU em Qana, em
1996, os israelenses disseram que a base servia de esconderijo para o Hizbollah - guerra deflagrada porque o Hizbóllah capturou dois soldados israelenses na fronteira. Mas esses não foram crimes do Hizbollah; foram crimes de Israel.
Israel insinuou que os corpos das crianças assassinadas num segundo massacre em Qana teriam sido desenterrados e expostos para fotografias. Mentira.
Sobre o massacre de Marwahin, nenhuma explicação. As pessoas receberam ordens, de um grupo de soldados israelenses, para evacuar as casas. Obedeceram. Em seguida, foram assassinadas por matadores israelenses. Os refugiados reuniram os filhos e puseram-se à volta dos caminhões nos quais viajavam, para que os pilotos dos helicópteros vissem quem eram, que estavam desarmados. O helicóptero varreu-os a tiros, de curta distância. Houve dois sobreviventes, que se salvaram porque fingiram estar mortos. Israel não tentou nenhuma explicação.
Doze anos depois, outro helicóptero israelense atacou uma ambulância que conduzia civis de uma vila próxima – outra vez, soldados israelenses ordenaram que saíssem da ambulância – e assassinaram três crianças e duas mulheres. Israel alegou que a ambulância conduzia um ferido do Hizbollah. Mentira.
Cobri, como jornalista, todas essas atrocidades, investiguei-as uma a uma, entrevistei sobreviventes. Muitos jornalistas sabem o que eu sei. Nosso destino foi, é claro, o mais grave dos estigmas: fomos acusados de anti-semitismo.
Por tudo isso, escrevo aqui, sem medo de errar: agora recomeçarão as mais escandalosas mentiras. Primeiro, virá a mentira do "culpem o Hamás" – como se o Hamás já não fosse culpado dos próprios crimes! Depois, talvez requentem a mentira dos cadáveres desenterrados para fotografias. E com certeza haverá a mentira do "homem do Hamás na escola da ONU". E com absoluta certeza virá também a mentira do anti-semitismo. Os líderes ocidentais cacarejarão, lembrando ao mundo que o Hamás rompeu o cessar-fogo. É mentira.
O cessar-fogo foi rompido por Israel, primeiro dia 4/11; quando bombardeou e matou seis palestinenses em Gaza e, depois, outra vez, dia 17/11, quando outra vez bombardeou e matou mais quatro palestinenses.
Sim, os israelenses merecem segurança. 20 israelenses mortos nos arredores de Gaza é número escandaloso. Mas 600 palestinenses mortos em uma semana, além dos milhares assassinados desde 1948 – quando a chacina de Deir Yassin ajudou a mandar para o espaço os habitantes autóctones dessa parte do mundo que viria a chamar-se Israel – é outro assunto e é outra escala.
Dessa vez, temos de pensar não nos banhos de sangue normais no Oriente Médio. Dessa vez é preciso pensar em massacres na escala das guerras dos Bálcãs, dos anos 90. Ah, sim.
Quando os árabes enlouquecerem de fúria e virmos crescer seu ódio incendiário, cego, contra o Ocidente, sempre poderemos dizer que "não é conosco". Sempre haverá quem pergunte "Por que nos odeiam tanto?" Que, pelo menos, ninguém minta que não sabe por quê.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Sebo Virtual

Acabo de ser apresentado ao que classificaram como o maior sebo virtual do mundo, chama-se viaLibri Resources for Bibliophiles e unifica uma série de catálogos de sebos de diversos países. Todos autores estrangeiros que procurei foram encontrados. Fiz alguns testes com autores brasileiros famosos, e outros nem tanto, obtive sucesso em grande parte deles. Mesmo que a cotação do Dólar não esteja favorecendo muito às importações e os preços das livrarias sejam poucos convidativos, vale a pena ao menos passear.
Uma alternativa tupiniquim bastante razoável para livros em português é o já conhecido Estante Virtual. Lá se encontram mais de 1.200 sebos do Brasil inteiro. Também pode-se conseguir livros importados, porém com menos frequência. E melhor: compra-se sem o receio de estar contribuindo para o fechamento dos sebos tradicionais, muito antes pelo contrário, como o Estante Virtual é um site que funciona como pool de sebos tradicionais, realizar compras pelo site representa uma forma de fortalecê-los.

domingo, 4 de janeiro de 2009


A fraqueza da moral - ou os “valores universais” impotentes diante da “aliança sagrada” entre Israel e EUA

Roberto Torres

Podemos dizer que a pergunta primordial sobre a moralidade, caso tenhamos uma perspectiva moral sobre a sociedade através da qual observamos e julgamos a “ordem atual do mundo”, é se está perspectiva pode ou não ser eficaz, por que meios e em quais condições. Desde que o marxismo precisou justificar intelectualmente a sua concepção de uma evolução moral da sociedade, seu melhor caminho foi a busca de um sociologia política capaz de ao mesmo tempo diagnosticar cognitivamente e justificar moralmente um determinado sentido para a vida social e política.
Seguir este caminho significa pretender uma vinculação entre conhecer a realidade e cavar uma posição superior também em termos morais sobre como ela deve ser organizada. Significa, portanto, pretender que a ciência, enquanto regime de verdade institucionalizado em Universidades, centros de pesquisa e na esfera pública, possui autoridade para dizer como a realidade social dever ser. Trata-se abertamente de um ataque frontal aos pressupostos do relativismo que nega um vínculo possível entre “saber objetivo” (onde a busca de “como funciona o mundo” se faz numa descrição que pode perceber o mundo como destoante do “dever ser”) e justificação moral do mundo social.
Se saber como funciona o mundo autoriza tomar uma posição melhor sobre como ele dever ser, é porque não apenas podemos analisar como ele funcionaria sobre outras condições com algum grau de objetividade, mas também porque podemos dizer quais são os obstáculos à mudança, tudo que impede que a vida social se aproxime de nossa visão moral sobre ela. E é daí que vem a questão sobre o poder da moralidade, ou seja, sobre como ela pode atuar com positividade. Me parece que uma sociologia política precisa saber como os argumentos morais se transformam em “idéias forca”, como eles se casam com o “jogo de interesses” de modo a condicionar a ação humana para “dominar o mundo” no sentido de formatá-lo com valores. A ciência precisa se assumir como herdeira do racionalismo ocidental e deixar de ser hipócrita com o seu papel de trabalhar pela dominação cognitiva e prática do mundo. É isso que pretendia Marx como pensador iluminista ao elaborar, com todos os seus acertos e erros, os termos e a lógica de uma teoria sobre a evolução e a transformação histórica da vida social.
Em termos sociológicos e políticos o maior erro do marxismo certamente foi o de apostar tudo num agente substancializado como “sujeito” da transformação social, ao invés de perceber que o mais importante é a “totalidade do social”, onde se articulam “jogo de interesses” e “adesão moral”, onde idéias e interesses se “interpenetram” (como diria Niklas Luhmann) e podem assim formar um “novo agente”, uma positividade capaz de ajudar tanto a manter como a mudar a vida social. Jürgen Habermas consegui de algum modo mostrar como o “debate de idéias”, ao se apossar de forca de um público capaz de dizer “não” a rejeitar agir de acordo com certas “idéias-forca” em disputa, pode fazer com que a luta social seja lancada em outro patamar, superando de algum modo o uso de certos “meios” como a forca física direta. Trata-se de pensar numa teoria do “poder simbólico” que englobe a tema da “criatividade moral” como um forca possível na História.
Falar em valores universais significa, no sentido realista permitido pela “ciência do social” que podemos aprender do marxismo e de toda a crítica sociológica e filosófico-normativa que se fez a partir de suas questões centrais, é falar sobre valores capazes de justificar que a vida seja melhor para distintas classes de seres humanos levando em conta como estes valores são ou podem ser praticados. Pensando no massacre que Israel realiza hoje entre os Palestinos na Faixa de Gaza, precisamos saber quais condições sociais faltam para que se exerça poder moral sobre a ação israelense a partir da perspectiva segundo o qual a vida humana em seus diferentes povos vale o suficiente para ser preservada. Por que o sonho da “paz universal”, que no fundo nunca reinou, embora tenha orientado fortemente a ação humana depois de segunda guerra mundial, não anima a maioria dos Israelenses e o Estado genocida que apóiam.
O fato de ter os EUA como aliados não significa só que Israel tem salvaguarda militar diante de outra possível reação militar do mundo islâmico, mas também que a “forca do mundo”, na medida em que a instancia máxima da ONU se curva ao “veto” americano ao invés de reagir a ele, aceita que uma coletividade humana seja varrida do mapa, ou seja, que sua vida seja descartada politica e moralmente. O que Israel diz ao fazer o que faz é: “nosso povo vale tão mais que o povo palestino que, não só podemos roubar sua terra, como também destruí-la junto com eles caso alguns de lá coloquem minimante em risco a vida de alguns poucos cidadãos israelenses”.
Que a vida de um israelense tenha na prática mais valor que a de um palestino fica atestado no fato que o mundo tem sido conivente com o ataque (“raiva e desprezo com apoio bélico e político”) “desproporcional” de Israel sobre os Palestinos. O poder da moralidade, a capacidade de mobilizar o poder físico do social, esbarra em uma teologia cuja prática hoje significa, de parte de Israel e com o consentimento do mundo, o esforço de eliminar coletividades “não eleitas”, ou eleitas para expiarem a descarga de ódio e desprezo que uma coletividade produz contando com legitimação intelectual no campo da política, haja vista o consenso sionista na mídia global.
Além da cumplicidade americana, até agora compartilhada por Barack Obama, é sintomático em favor desta conivência o fato da União Européia continuar se posicionando como se o necessário fosse “ acabar com a violência dos dois lados", quando isto só poderia ser o efeito e não a causa de uma superação para o problema. Esta cumplicidade política é cúmplice também da estreiteza cognitiva sobre o problema e precisa ser atacada com engajamento vocacional de todos os que no Ocidente e no mundo acreditam que a razão pode contribuir no curso da História para o melhor dos humanos, embora não possamos mais crer no sonho narcísico de que a razão sozinha construa a História, seja pela mão de Deus ou dos homens.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009


O ano novo está ai, e o massacre israelense na Faixa de Gaza mostra a face abominável do Deus monoteísta, totalmente despido da compaixao crista, e cheio da arrogancia e da insensibilidade moral e humana que define o Estado genocida e nazista de Israel. Aqui vai um poster do José Saramago sobre o massacre e a cumplicidade americana.

Israel

By José Saramago

Não é do melhor augúrio que o futuro presidente dos Estados Unidos venha repetindo uma e outra vez, sem lhe tremer a voz, que manterá com Israel a “relação especial” que liga os dois países, em particular o apoio incondicional que a Casa Branca tem dispensado à política repressiva (repressiva é dizer pouco) com que os governantes (e porque não também os governados?) israelitas não têm feito outra coisa senão martirizar por todos os modos e meios o povo palestino. Se a Barack Obama não lhe repugna tomar o seu chá com verdugos e criminosos de guerra, bom proveito lhe faça, mas não conte com a aprovação da gente honesta. Outros presidentes colegas seus o fizeram antes sem precisarem de outra justificação que a tal “relação especial” com a qual se deu cobertura a quantas ignomínias foram tramadas pelos dois países contra os direitos nacionais dos palestinos.

Ao longo da campanha eleitoral Barack Obama, fosse por vivência pessoal ou por estratégia política, soube dar de si mesmo a imagem de um pai estremoso. Isso me leva a sugerir-lhe que conte esta noite uma história às suas filhas antes de adormecerem, a história de um barco que transportava quatro toneladas de medicamentos para acudir à terrível situação sanitária da população de Gaza e que esse barco, Dignidade era o seu nome, foi destruído por um ataque de forças navais israelitas sob o pretexto de que não tinha autorização para atracar nas suas costas (julgava eu, afinal ignorante, que as costas de Gaza eram palestinas…) E não se surpreenda se uma das suas filhas, ou as duas em coro, lhe disserem: “Não te canses, papá, já sabemos o que é uma relação especial, chama-se cumplicidade no crime”.

RITUAIS CAPITALISTAS

por Fabrício Maciel
Já começar o ano com análise de "marxista chato" pode parecer intolerante para alguns. Então, arrisquemos um pouco de marxismo com antropologia, sem clichês. A categoria analítica dos rituais sempre foi cara à antropologia social ou cultural. Entretanto, seu uso sempre me pareceu vazio, descritivo e pouco analítico. Ontem à noite, cumprimentando meus vizinhos, me veio um insight sobre o que toda esta chatice de fim de ano tem de eficaz na reprodução de nossas sociedades contemporâneas. É muito fácil dizer que são datas que perderam o significado, que só servem para o mercado, para o comércio adquirir um faturamento melhor, etc. Isso é muito pouco analiticamente.
Quero arriscar dizer que sem tais rituais o capitalismo simplesmente não existiria, em seu formato atual. Isto por que tais datas festivas são expressões e lembranças, atuando funcionalmente na reprodução do sistema, que exprimem a concepção de tempo moderno que temos internalizada em nossos corpos e incrustada nas instituições modernas. Sem ele o capitalismo acabaria. O tempo racionalizado, tese esta bem velha, só funciona como tal por que temos recursos sociais, como representações do tipo durkheimiano, reproduzidas em ritos, como diria Durkheim ou Victor Turner. Tais recursos sociais nos lembram a cada instante que o tempo está passando. Nas sociedades tradicionais, os marcos naturais, como colheiras, eram o que definiam o tempo. Mas tudo indica que não havia a preocupação em controlar o tempo, em viver calculadamente cada instante dele. Nas sociedade modernas, vivemos uma verdadeira neurose com nosso tempo. Até um conservador como Heidegger percebeu bem que experienciamos agora uma espécie de "finitude". Vivemos a ansiedade de que nossa correria vai acabar um dia. Por isso é preciso conduzi-la da melhor maneira.
Esta neurose moderna com o tempo é bem nítida nos rituais de fim de ano. Eles servem sobretudo para nos lembrar que uma etapa, sempre igual, de busca por nossos objetivos acabou. Isto é muito bem visto nas ansiedade do pequeno-burguês, que chora aquilo que perdeu ou não conseguiu no ano que acabou e se promete conseguir aquilo e algo mais no ano seguinte. Raramente se lembra das derrotas no amor e de como se pode fazer para evitá-las. É sempre o sucesso que surge nas falas que trocamos com parentes, amigos e vizinhos. "tudo de bom", "que alcance seus objetivos", "sucesso", "que dê tudo certo", e o clássico "que deus abençoe". Do que estamos falando?
Cada ano novo parece mais uma chance para todos na sociedade do mérito. É mais uma possibilidade de se dar melhor na competição social ou de manter o sucesso caso ele haja. Como se pudéssemos passar uma borracha no passado. Zerar a competição e recomeçar a cada ano. Para a ralé é ainda mais trágico. É a oportunidade de atualizar as fantasias. Isso quando não se estraga a "época sagrada" com alguns goles de vinho, logo ele, a bebida sagrada.