domingo, 4 de janeiro de 2009


A fraqueza da moral - ou os “valores universais” impotentes diante da “aliança sagrada” entre Israel e EUA

Roberto Torres

Podemos dizer que a pergunta primordial sobre a moralidade, caso tenhamos uma perspectiva moral sobre a sociedade através da qual observamos e julgamos a “ordem atual do mundo”, é se está perspectiva pode ou não ser eficaz, por que meios e em quais condições. Desde que o marxismo precisou justificar intelectualmente a sua concepção de uma evolução moral da sociedade, seu melhor caminho foi a busca de um sociologia política capaz de ao mesmo tempo diagnosticar cognitivamente e justificar moralmente um determinado sentido para a vida social e política.
Seguir este caminho significa pretender uma vinculação entre conhecer a realidade e cavar uma posição superior também em termos morais sobre como ela deve ser organizada. Significa, portanto, pretender que a ciência, enquanto regime de verdade institucionalizado em Universidades, centros de pesquisa e na esfera pública, possui autoridade para dizer como a realidade social dever ser. Trata-se abertamente de um ataque frontal aos pressupostos do relativismo que nega um vínculo possível entre “saber objetivo” (onde a busca de “como funciona o mundo” se faz numa descrição que pode perceber o mundo como destoante do “dever ser”) e justificação moral do mundo social.
Se saber como funciona o mundo autoriza tomar uma posição melhor sobre como ele dever ser, é porque não apenas podemos analisar como ele funcionaria sobre outras condições com algum grau de objetividade, mas também porque podemos dizer quais são os obstáculos à mudança, tudo que impede que a vida social se aproxime de nossa visão moral sobre ela. E é daí que vem a questão sobre o poder da moralidade, ou seja, sobre como ela pode atuar com positividade. Me parece que uma sociologia política precisa saber como os argumentos morais se transformam em “idéias forca”, como eles se casam com o “jogo de interesses” de modo a condicionar a ação humana para “dominar o mundo” no sentido de formatá-lo com valores. A ciência precisa se assumir como herdeira do racionalismo ocidental e deixar de ser hipócrita com o seu papel de trabalhar pela dominação cognitiva e prática do mundo. É isso que pretendia Marx como pensador iluminista ao elaborar, com todos os seus acertos e erros, os termos e a lógica de uma teoria sobre a evolução e a transformação histórica da vida social.
Em termos sociológicos e políticos o maior erro do marxismo certamente foi o de apostar tudo num agente substancializado como “sujeito” da transformação social, ao invés de perceber que o mais importante é a “totalidade do social”, onde se articulam “jogo de interesses” e “adesão moral”, onde idéias e interesses se “interpenetram” (como diria Niklas Luhmann) e podem assim formar um “novo agente”, uma positividade capaz de ajudar tanto a manter como a mudar a vida social. Jürgen Habermas consegui de algum modo mostrar como o “debate de idéias”, ao se apossar de forca de um público capaz de dizer “não” a rejeitar agir de acordo com certas “idéias-forca” em disputa, pode fazer com que a luta social seja lancada em outro patamar, superando de algum modo o uso de certos “meios” como a forca física direta. Trata-se de pensar numa teoria do “poder simbólico” que englobe a tema da “criatividade moral” como um forca possível na História.
Falar em valores universais significa, no sentido realista permitido pela “ciência do social” que podemos aprender do marxismo e de toda a crítica sociológica e filosófico-normativa que se fez a partir de suas questões centrais, é falar sobre valores capazes de justificar que a vida seja melhor para distintas classes de seres humanos levando em conta como estes valores são ou podem ser praticados. Pensando no massacre que Israel realiza hoje entre os Palestinos na Faixa de Gaza, precisamos saber quais condições sociais faltam para que se exerça poder moral sobre a ação israelense a partir da perspectiva segundo o qual a vida humana em seus diferentes povos vale o suficiente para ser preservada. Por que o sonho da “paz universal”, que no fundo nunca reinou, embora tenha orientado fortemente a ação humana depois de segunda guerra mundial, não anima a maioria dos Israelenses e o Estado genocida que apóiam.
O fato de ter os EUA como aliados não significa só que Israel tem salvaguarda militar diante de outra possível reação militar do mundo islâmico, mas também que a “forca do mundo”, na medida em que a instancia máxima da ONU se curva ao “veto” americano ao invés de reagir a ele, aceita que uma coletividade humana seja varrida do mapa, ou seja, que sua vida seja descartada politica e moralmente. O que Israel diz ao fazer o que faz é: “nosso povo vale tão mais que o povo palestino que, não só podemos roubar sua terra, como também destruí-la junto com eles caso alguns de lá coloquem minimante em risco a vida de alguns poucos cidadãos israelenses”.
Que a vida de um israelense tenha na prática mais valor que a de um palestino fica atestado no fato que o mundo tem sido conivente com o ataque (“raiva e desprezo com apoio bélico e político”) “desproporcional” de Israel sobre os Palestinos. O poder da moralidade, a capacidade de mobilizar o poder físico do social, esbarra em uma teologia cuja prática hoje significa, de parte de Israel e com o consentimento do mundo, o esforço de eliminar coletividades “não eleitas”, ou eleitas para expiarem a descarga de ódio e desprezo que uma coletividade produz contando com legitimação intelectual no campo da política, haja vista o consenso sionista na mídia global.
Além da cumplicidade americana, até agora compartilhada por Barack Obama, é sintomático em favor desta conivência o fato da União Européia continuar se posicionando como se o necessário fosse “ acabar com a violência dos dois lados", quando isto só poderia ser o efeito e não a causa de uma superação para o problema. Esta cumplicidade política é cúmplice também da estreiteza cognitiva sobre o problema e precisa ser atacada com engajamento vocacional de todos os que no Ocidente e no mundo acreditam que a razão pode contribuir no curso da História para o melhor dos humanos, embora não possamos mais crer no sonho narcísico de que a razão sozinha construa a História, seja pela mão de Deus ou dos homens.

17 comentários:

Fabrício Maciel disse...

òtima intervenção neste momento tão delicado Roberto. Levando a cabo a proposta de avanço nos recursos cognitivos da ciência, temos que explicitar por que combinação específica de fatores contingentes da história um Israelense vale mais que um palestino neste contexto. Ali, o particularismo da rivalidade local é distorcido e maximizado exatamente pelas forças interventoras externas ocidentais cuja função manifesta é exatamente o contrário, a defesa do universalismo. É prciso explicitar a ambiguidade das instituições universais neste expansionismo cuja função latente é preservar o particularismo norte-americano, que gera migalhas e benécias a todos os que o apoiam.

Anônimo disse...

Pra quem acreditava em Obama, acho q o silencio dele mostra que nada mudou. Como disse o Saramago, ele é cumplíce com o crime.
Israel é um Estado-satélite americano.
Pelo fim do Estado de Israel, que muçulmanos e judeus e demais regioes possam viver juntos, como antes de 1945.
Por uma palestina laica, nao racista e socialista.

Anônimo disse...

abaixo quis dizer religiões e não regiões.

Roberto Torres disse...

Caro anonimo, o problema é justamente que faltam condicoes políticas no jogo de interesses para que a idéia normativa de que o povo palestino tenha o direito de viver sobre a ordem de um Estado nao existe, e parece que também Israel nao aceita isso.

Fabrício Maciel disse...

por isso vale lembrar que o papel do intelectual é explicitar como puder as "razões que a razão desconhece' como diria Bourdieu, no caso, as razões objetivas resultante do encontro entre poder e interesse, que geraram a opressão dos palestinos. O contexto do imperialismo é fundamental pois os Eua tem como estratégia um aliado dentro do coração do petróleo, tese esse bem velha que vale lembrar.

bill disse...

O problema é que ali estão envolvido elementos que vão muito além do interesse americano, como a questão da identidade cultural. Achar que o socialismo possa mudar tal estado de coisa é desconhecer que em nome desta mesma bandeira a URSS suplantou identidades díspares que depois vieram cobrar a conta no fim do século passado. Obviamente o interesse americano é um desestabilizador da região, mas devemos ter claro que, ao contrário do que proclamam os mais desavisados pensadores da globalização, há questões nacionais e identitárias muito fortes envolvidas no conflito. E não é com limpeza étnica que se resolve tais questões, os judeus que o digam.

Anônimo disse...

Há muitos mais judeus fora do que em Israel. Defender o fim do estado de Israel não é uma limpeza étnica. Não sou como muitos ultra esquerdistas que defendem que se joguem os judeus ao mar. Vamos com calma. Quanto ao socialismo, não defendo os regimes castristas, maoistas, stalinistas, portanto não acho q o socialismo suplantou identidades díspares,houve alguns esboços,mas as ditaduras do leste europeu, chinesa e cubana estão longe de ser o q Marx e Engels pregaram, mas isso é questão para um outro debate.
Contra o ofensiva fascista de Israel
Palestina Livre !!!!

Roberto Torres disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Roberto Torres disse...

Caro anonimo, eu acho que devemos recuperar Marx nao só porque o tipo de sociedade que ele pregou seja melhor do que qualquer uma que temos hoje. Se falarmos apenas de pregacoes, ou seja, se ficarmos apenas na pureza doutrinária das idéias, Marx nao vai ter nenhuma diferenca de qualquer outro pregador bem intencionado, mas completamente alheio a uma visao realista (anti-misticadora) de como a sociedade funciona e como as idéias podem ter efeitos neste funcionamento. Nao se trata de subjulgar boas idéias à lógica de prática de como funciona o mundo social, mas sim de reconhecer que nenhuma boa idéia pode ter relevancia sem que seja elaborada levando-se em conta o funcionamento do social. Antes de ser um bom pregador (e ele com certeza foi), ele foi também um grande cientista. Acho que ele nao gostaria que o tratássemos somente como um pregador.

bill disse...

Anônimo,
ninguém falou em fim de Estado judeu, muito menos relacionou isso a limpeza étnica... digo que o que Israel está fazendo é limpeza étnica, como algumas cartas de direitos humanos tem manifestado, e não é com ofensivas assim que as questões identitárias e dos estados nacionais serão resolvidas.

Anônimo disse...

Debates que envolvem sentimentos e crenças enraizadas e extremas sempre causam desconfortos. Tentarei somente fazer algumas provocações rasteiras, mesmo porque não me julgo com conhecimentos suficientes para fazer qualquer afirmação peremptória.

Primeiro ponto que me veio foi a conveniência de uma "quase-guerra" no exato momento que as indústrias automotivas estão em plena crise. Sabe-se que boa parte da insdútria que fornece elementos para as automotivas também o fazem para a indústria bélica. Não sou afeito a teorias conspiratórias, mas é bem estranho que no meio de uma crise econômica mundial o Estado de Israel se lance numa empreitada como essa. Conflitos armados são sempre muito custosos, a não ser que o dispêndio com gastos militares sejam fundamentais para a movimentação da economia. De início eu refutaria esse fator como causa, mas que é muito conveniente não se pode negar.
Outra questão são as próximas eleições israelenses. Um fator a mais a ser considerado. Este com maior probabilidade de ser explicativo. Não se esqueçam que nesse conflito as questões identitárias não se resumem a um único lado. Aliás, identidade somente é possível com a clara objeção ao outro. Isso serve para ambos os lados. E já que estamos ressaltando a desproporcionalidade dos ataques de Israel, seria de bom alvitre também não subdimensionar demasiadamente as ações dos extremistas do Hamas. Afinal, Hamas nos olhos dos outros é refresco. Não esqueçamos que os papeis de mocinhos e bandidos não são facilmente distribuídos nesse conflito. Julgar os motivos israelenses pela repúdia que muitos teem contra os EUA não ajuda muito. Até porque o povo palestino não é um só, basta lembrar a oposição que Arafat sofreu ao negociar com os israelenses, fora chamado de covarde, corrupto e traidor por ter indiretamente reconhecido o Estado de Israel. Para muitos esse "reconhecimento" significava negar a identidade palestina! Novamente a questão de identidade como oposição volta a tona, e pior, pois a identidade de "um" significa paradoxalmente não somente a oposição ao "outro", mas a sua completa eliminação. Desta forma, falta também a alguns movimentos palestinos o que o Roberto mencionou como moral universal que permita a coexistência do outro. A "doença moral" que afeta os judeus-israelenses também afetam dos "árabes-palestinos". Diante da ausência desta moral universal em ambos os lados, o pior pode ser esperado: o genocídio. Nunca é demais sublinhar que a "vítima" será aquele com menos poder, e que esta "vítima" seria o algoz caso tivesse poder para tal. Em resumo, um conflito que parte de premissas identitárias extremistas somente termina quando um dos lados é dizimado. Essas premissas identitárias não se resumem apenas às questões de terra, se assim o fossem, bastaria que o Brasil cedesse o Estado de Roraima para o povo palestino e o problema estaria resolvido.

Terceiro e último ponto que gostaria de salientar é a postura dos países membros do Conselho de Segurança da ONU. Se todos possuem poder de veto, e sabendo que os EUA iriam vetar, os demais países não fizeram mais que o óbvio ao deixar os custos para quem mais se interessava: os EUA! Se realmente tivessem interesses que Israel interrompesse os ataques, poderiam organizar uma ação coletiva extra-ONU e proclamar embargo comercial e fim das relações diplomáticas com Israel. A ONU não poderia punir Israel por causa do veto dos EUA, mas os demais países poderiam fazê-lo se o quisessem. E não precisaria ser por uma ação, mas por uma inação. Quem se prontificou a bancar os custos? Quais foram os países que ao menos retiraram seus diplomatas de Israel? Proclamar-se a favor do fim dos conflitos o garçom do botiquim do Seu Dodô também já o fez. Assim como eu também. Mas e aqueles que possuem real poder para pressionar o que fizeram até o momento?

Abraços,


Vitor Peixoto

Roberto Torres disse...

Vejam o que disse Israel sobre a crise humanitária em Gaza: "Não há crise humanitária na Faixa de Gaza, por isso não necessidade de trégua humanitária"
Ministério das Relações Exteriores de Israel,

Em um comunicado, após sete dias de bombardeios e de meses de um bloqueio sobre a região. Em suas declarações a repórteres, a ministra das Relações Exteriores israelense, Tzipi Livni, disse que Israel está sendo "cuidadoso em proteger a população civil" e mantém a situação humanitária em Gaza "completamente como deveria ser".
(Reuters - 01/01/2009)

Roberto Torres disse...

Com certeza Vitor. Os que possuem poder para pressionar estao comodamente calados, ou apenas agindo com retória isolada, que se ainda fosse consistente e insistente seria algo. Nem a Europa, nem o governo brasileiro, nem mesmo os países árabes de maior influencia fizeram grande pressao. Parece que agiram apenas dentro de uma formalidade, cujo resultado já estava mais ou menos sabido. Nem o Ira disse alguma coisa mais forte. Nesses momento de cumplicidade cínica a agressividade fanfarrona de Hugo Chaves é muito melhor.

xacal disse...

Caros amigos,

Gostaria de colocar minha colher suja nessa discussão...

Desde o ocaso da URSS, foi acelerado no mundo uma conjuntura onde os conflitos são chamados de assimétricos...

Superficialmente, os "especialistas" de estratégia militar e "consultores" (aqueles que a globo e outras redes adoram colocar no ar, para adornar a computação gráfica)identificam nesses conflitos uma diferença entre os métodos e condições das forças em disputa, bem como a mudança da natureza do conflito em si, ou seja: não temos apenas a "simples" conquista de território...

Acontece que a assimetria dos conflitos está muito além dos aspectos militares...

É intrínseca a questão ideológica-cultural...

Mesmo que os conflitos passados contivessem simplificações, era possível identificar "valores" pelos quais as nações, ou grupos regularmente organizados (como os cubanos, e vietnamitas)...

Hoje não é tão fácil assim...e creio que essa é a "moral" ausente a que se refere o Roberto...

Esse, penso eu, é o legado da profunda desregulamentação promovida pela exacerbação do mercado financeiro em detrimento dso outros seguimentos da vida em sociedade, que trouxe uma verticalização e concentração brutal da riqueza a níveis nunca vistos...

O conflito Israel x Palestina é um exemplo clássico: lá temos um Estado soberano, forte e organizado, detentor da maioria das riquezas da região, em confronto com um ajuntamento de gente(os palestinos), que só se reconhece como povo através do conflito com o inimigo, pois não há outra perspectiva para a construção de uma identidade, diante de tanta carência...

Daí, a impossibilidade de esperarmos uma resolução desse conflito pelo jeito clássico da ONU...esse modelo não responde mais a essas novas demandas...esse modelo foi pensado para resolver querelas em disputas à moda antiga...

Um abraço

Roberto Torres disse...

Nao tem nenhuma colher limpa nesse debate Xacal, como em todo debate meu caro. Mas acho sua "colher suja" tocou no ponto essencial do conflito. Um amontoado de gente tentando resolver sua vida num jogo cujas regras sao feitas para Estados nacionais relativamente soberanos. Desse jeito, a luta por reconhecimento dificilmente nao envolve o enfrentamento físico. Por isso, eu acho que a moralidade que falta só poderia ser buscada no sentido de encontrar o sentido da violencia a que os palestinos necessariamente precisam usar devido ao tipo de nao reconhecimento que sofrem, ao invés de reproduzir a estitgmatizacao de sua forma de lutar. O resultado utópico talvez fosse o entendimento de que, nesse caso, a violencia do Hamas é legítima e justa.

xacal disse...

Aí está o nó da questão...

Quem se aventuraria a propor tal conceito...? ou defendê-lo...?

Roberto Torres disse...

O "conceito terrorismo" é o alvo a ser batido nesta luta