Violência, guerra e cegueira política
Por Paulo Sérgio Ribeiro
A despeito de qualquer polêmica entre historiadores sobre a caracterização das guerras datadas da segunda metade do século XX, a ofensiva militar iniciada por Israel há quase três semanas na Faixa de Gaza e as sucessivas imagens de destruição e morte de sua população nos remetem a um estado de perplexidade face à experiência conhecida nesse período. As informações sobre esse conflito, limitadas pelo cerco à imprensa imposto pelo exército israelense, são pautadas quase que exclusivamente na contagem mórbida de mortos e na exposição de crianças feridas em Gaza, além do vai-e-vem de autoridades diplomáticas e chefes de Estado em tentativas um tanto tardias de mediar o cessar-fogo de um massacre anunciado, consistindo numa mostra contundente da dor física e do sofrimento moral vividos em níveis inimagináveis em relação a um eventual conflito entre Estados cujas relações políticas lembrem, ainda que superficialmente, a observância de normas jurídicas vigentes em âmbito internacional tais como a 4ª Convenção de Genebra (*). Sem qualquer pretensão de análise exaustiva desse evento, posto ser radicado em um campo de lutas cuja dinâmica interna e determinações externas exigem um conhecimento prévio da história e da geografia do Oriente Médio – que corre o risco de ser tanto mais desconhecido quanto mais falado é pela “opinião pública” –, busco, apenas, concatenar fragmentos de uma conjuntura para o que, na falta de melhor termo, qualifico por dilema da violência.
Mesmo que esta abordagem venha a ser rotulada de formalista, entendo que a discussão de pressupostos analíticos e normativos, como a iniciada nas últimas postagens de Roberto e Fabrício, faz-se necessária em um esforço coletivo de elaborar uma interpretação desse drama humano; esforço que, longe de ser destituído de conseqüência política, permite que antes de apontarmos “o que fazer” questionemos “o que estamos fazendo”, sendo talvez o ato de solidariedade ao povo palestino (e à minoria israelense que se opõe a essa política de Estado) mais próximo de nossas mãos na blogsfera. Portanto, que a “crítica das armas” não se dissocie das “armas da crítica”. A desproporção de forças envolvendo um país dotado do 4º maior poderio militar do mundo e um grupo de militantes armados de modo precário em uma faixa de terra densamente povoada é a face mais visível desse conflito, embora implique no juízo apressado de aceitar como dispensáveis quaisquer justificativas para o uso da força, pois, na prática, como negar que vence mesmo quem é o mais forte? No entanto, a evidência da impunidade quanto à reiteração dos crimes de guerra, apesar de concreta, pode levar a uma visão estanque dos acontecimentos e à desconsideração de uma questão de fundo pertinente a legitimação da violência para além do Estado territorial.
A violência é um meio de impor sua vontade sobre o comportamento alheio, sendo o fundamento de um poder arbitrário que é, por sua vez, constitutivo da afirmação de crenças e valores cuja eficácia social reside no desconhecimento da violência que o criou. Essa violência simbólica, lembra Emmanuel Terray (2005), pode ser comparada à noção de recalque freudiano, pois o que é desconhecido não é suprimido, sendo atualizado na medida em que a relação de força que origina essa violência é subtraída de nossa consciência. Dizer que o Estado não se justifica pelos seus fins, como aprendemos em nossas primeiras leituras da sociologia da dominação de Max Weber, significa que as condições sociais de surgimento do seu poder são contingentes. Logo, o poder é um conceito amorfo justamente porque não há como recorrer a uma razão última para justificar a imposição de uma arbitrariedade. Com efeito, mesmo a violência física exacerbada em uma situação de guerra não é sinônima de um poder manifestado como “puro poder”, senão o resultado do trabalho cotidiano de autoridades e de instituições de elaborar uma “Razão de Estado” que paga o preço de tornar-se injustificável quando sua legitimidade é posta à prova na expansão territorial de seu domínio. Esse é o ocaso de Israel.
A proposta de violência simbólica de Pierre Bourdieu é em certa medida familiar ao realismo político, quando ponderamos que na sua obra a violência física e a violência simbólica são indissociáveis em uma relação social, negando, por conseguinte, uma relação intersubjetiva que seja alheia à dissimulação de um ato de força para obter ou conservar uma superioridade – algo bastante factível no que respeita, por exemplo, a um cessar-fogo. Contudo, Bourdieu enfatizou que não é vedada a tentativa de libertar-se desse poder invisível, possibilidade que é tanto maior quanto mais eficaz é o uso reflexivo do conhecimento; o que, para citar outra vez Terray (op. cit.), faz esse poder invisível aparecer em sua verdade nua. A aposta no conhecimento e, igualmente, na crítica do conhecimento, talvez seja um ponto de intersecção dessa perspectiva sociológica com a leitura que Jürgen Habermas faz do conceito de poder na obra de Hannah Arendt como alternativa ao realismo político – predominante nas ciências sociais ao menos desde o Max Weber da “Política como vocação”.
Para Habermas, a inovação trazida por Arendt está em conceber o poder como a possibilidade de um consenso não-coercitivo, sendo discernível pela formação pública da vontade a partir do entendimento recíproco. Essa possibilidade difere da noção de poder como uma associação entre atores que mesmo voltados para fins específicos podem participar de uma ação coletiva funcionalmente necessária para seu próprio êxito. Neste caso, há tão-somente uma combinação ótima de ações mobilizadas de forma unilateral por atores que definem sua margem de êxito a partir da interação estratégica com o outro, logo, estabelecendo uma decisão que interfere em uma coletividade sem basear-se na vontade comum de seus participantes – vontade que, obviamente, deriva de um trabalho político árduo com objetivos alcançáveis às vezes somente nas gerações futuras. Nas palavras de Habermas (1990, p.103), “H. Arendt desprende o conceito de poder do modelo teleológico da ação; o poder se constitui na ação comunicativa, é um efeito coletivo da fala, na qual o entendimento mútuo é um fim em si mesmo para todos os participantes”.
Há limites nessa abordagem, na medida em que “uma comunicação livre de violência” refere-se a uma situação de fala diversa das relações sujeito-objeto do mundo da produção e, também, dos modernos sistemas de administração e de suas organizações burocráticas como formas de poder vinculadas ao conhecimento técnico e especializado que impedem ou, pelo menos, dificultam uma comunicação desimpedida entre o expert e o leigo e cuja posse envolve o controle dos “segredos de Estado” – entre outros o planejamento de uma guerra. Diante de tais limites na obra de Arendt há por parte de alguns estudiosos um verdadeiro desdém. Ora, dizem com razão, não há qualquer experiência contemporânea de governo democrático que tenha se aproximado desse conceito de poder. No entanto, também não há poder que se institui continuadamente pela violência seja em regimes competitivos seja em regimes autoritários, senão pelo reconhecimento daqueles que se submetem em uma estrutura de domínio. O problema é que o caráter aparentemente voluntário dessa submissão é indissociável da “violência estrutural” inscrita na política de Estado, patente quando se trata de uma política moldada pelo expansionismo militar. Violência que não se manifesta como violência, lembra Habermas (op. cit.), correspondendo à interrupção dos processos comunicativos nos quais se publicizam temas e problemas conforme uma ética discursiva orientada pela busca da verdade do melhor argumento – o modus operandi do trabalho permanente de reconstrução da esfera pública.
Em uma palavra, Bourdieu e Habermas concordam, sob registros diferentes é verdade, que o uso da força retira sua força do auto-engano sobre si mesmo ou sobre uma situação devido a convicções comuns imperceptíveis em nossas tomadas de posição, mas operantes na legitimação de uma política. Desse modo, mesmo que 90% da população israelense aprovem a ofensiva militar em Gaza, a pretensão de legitimidade dessa ação bélica não passa mesmo de uma pretensão se consideramos que o arbítrio desse conflito decorre da crença de que o melhor encaminhamento para um cessar-fogo venha a assegurar de fato a restauração de condições materiais nas quais o povo palestino possa exercer qualquer veleidade de autonomia. Uma reportagem editada em 14 de janeiro pela Agência Carta Maior (http://www.agenciacartamaior.com.br) sobre a questão dos recursos hídricos na Palestina é bastante sugestiva para caracterizar essa “violência estrutural”, a contar do seu título “A água (que ninguém vê) na guerra”, dado por sua autora, Ana Echevenguá. A série de anexações das reservas de água realizada por Israel desde a década de 1960 em suas zonas fronteiriças perfaz o controle efetivo desses recursos hídricos tanto em seu território quanto nos territórios palestinos ocupados. Acaso qualifiquemos o acesso à água como um direito difuso prescrito pelas regras internacionais para o seu uso sustentado, é no mínimo discutível esse monopólio da distribuição da água, posto que 4/5 do total desses recursos hídricos são apropriados por Israel. Ressalva Echevenguá que enquanto Israel irriga 50% das sua terras cultivadas, exige prévia autorização da população árabe para desenvolver atividades agrícolas.
Não quero sobrepor essa questão às demais dimensões desse conflito, mas apenas tomá-la como uma de suas variáveis intervenientes. O mote preferencial do terrorismo, mesmo não se tratando de uma questão menor, pode encobrir a discussão sobre o direito à resistência de uma população sitiada há décadas em terras definidas oficialmente pelas Nações Unidas como “territórios ocupados”. Dada à contigüidade espacial desses povos e à necessidade objetiva de recursos vitais localizados em suas fronteiras, as expectativas quanto ao cessar-fogo são inúteis, politicamente falando, se este dissociar-se de um esforço posterior de estabelecer uma interlocução entre atores institucionais e não-institucionais que restitua, em um horizonte não muito distante, relações políticas nas quais o vínculo a uma tradição nacional possa transigir com uma noção compartilhada de bem-estar dessas coletividades ao invés do silêncio cúmplice quanto à eliminação física de uma delas. Apego ingênuo a um desiderato universalista ante os particularismos em disputa? Pode ser. Entretanto, nada nos obriga a afirmar simplesmente que as coisas são como são se podemos recorrer ao raciocínio contra-factual como instrumento de ruptura com o senso comum, algo mais do que defensável de um ponto de vista sociológico. O conceito de esfera pública entendido não apenas como uma categoria abstrata mas como uma categoria da prática política é um referencial válido para a questão palestina, posto referir-se ao esforço real de construir uma comunicação na qual sustentar provisoriamente uma posição se coadune a defesa de um argumento cuja razoabilidade seja inclusiva de todos os interlocutores envolvidos. Não obstante, para que tal esforço seja eficaz é preciso lembrar que a argumentação racional é também uma luta para ampliar o campo discursivo de uma agenda pública que, no que toca ao conflito Israel-Gaza, remete à própria elaboração do passado do Estado de Israel cuja expansão territorial ocorre à revelia de qualquer noção minimamente aceitável de bom-senso. Noutros termos, distinguir entre o que se quer e o que se pode fazer nesse conflito supõe entender os mecanismos da violência simbólica que operam a naturalização de um assassinato em massa como moeda política corrente na disputa por terra, água e poder.
Mesmo que esta abordagem venha a ser rotulada de formalista, entendo que a discussão de pressupostos analíticos e normativos, como a iniciada nas últimas postagens de Roberto e Fabrício, faz-se necessária em um esforço coletivo de elaborar uma interpretação desse drama humano; esforço que, longe de ser destituído de conseqüência política, permite que antes de apontarmos “o que fazer” questionemos “o que estamos fazendo”, sendo talvez o ato de solidariedade ao povo palestino (e à minoria israelense que se opõe a essa política de Estado) mais próximo de nossas mãos na blogsfera. Portanto, que a “crítica das armas” não se dissocie das “armas da crítica”. A desproporção de forças envolvendo um país dotado do 4º maior poderio militar do mundo e um grupo de militantes armados de modo precário em uma faixa de terra densamente povoada é a face mais visível desse conflito, embora implique no juízo apressado de aceitar como dispensáveis quaisquer justificativas para o uso da força, pois, na prática, como negar que vence mesmo quem é o mais forte? No entanto, a evidência da impunidade quanto à reiteração dos crimes de guerra, apesar de concreta, pode levar a uma visão estanque dos acontecimentos e à desconsideração de uma questão de fundo pertinente a legitimação da violência para além do Estado territorial.
A violência é um meio de impor sua vontade sobre o comportamento alheio, sendo o fundamento de um poder arbitrário que é, por sua vez, constitutivo da afirmação de crenças e valores cuja eficácia social reside no desconhecimento da violência que o criou. Essa violência simbólica, lembra Emmanuel Terray (2005), pode ser comparada à noção de recalque freudiano, pois o que é desconhecido não é suprimido, sendo atualizado na medida em que a relação de força que origina essa violência é subtraída de nossa consciência. Dizer que o Estado não se justifica pelos seus fins, como aprendemos em nossas primeiras leituras da sociologia da dominação de Max Weber, significa que as condições sociais de surgimento do seu poder são contingentes. Logo, o poder é um conceito amorfo justamente porque não há como recorrer a uma razão última para justificar a imposição de uma arbitrariedade. Com efeito, mesmo a violência física exacerbada em uma situação de guerra não é sinônima de um poder manifestado como “puro poder”, senão o resultado do trabalho cotidiano de autoridades e de instituições de elaborar uma “Razão de Estado” que paga o preço de tornar-se injustificável quando sua legitimidade é posta à prova na expansão territorial de seu domínio. Esse é o ocaso de Israel.
A proposta de violência simbólica de Pierre Bourdieu é em certa medida familiar ao realismo político, quando ponderamos que na sua obra a violência física e a violência simbólica são indissociáveis em uma relação social, negando, por conseguinte, uma relação intersubjetiva que seja alheia à dissimulação de um ato de força para obter ou conservar uma superioridade – algo bastante factível no que respeita, por exemplo, a um cessar-fogo. Contudo, Bourdieu enfatizou que não é vedada a tentativa de libertar-se desse poder invisível, possibilidade que é tanto maior quanto mais eficaz é o uso reflexivo do conhecimento; o que, para citar outra vez Terray (op. cit.), faz esse poder invisível aparecer em sua verdade nua. A aposta no conhecimento e, igualmente, na crítica do conhecimento, talvez seja um ponto de intersecção dessa perspectiva sociológica com a leitura que Jürgen Habermas faz do conceito de poder na obra de Hannah Arendt como alternativa ao realismo político – predominante nas ciências sociais ao menos desde o Max Weber da “Política como vocação”.
Para Habermas, a inovação trazida por Arendt está em conceber o poder como a possibilidade de um consenso não-coercitivo, sendo discernível pela formação pública da vontade a partir do entendimento recíproco. Essa possibilidade difere da noção de poder como uma associação entre atores que mesmo voltados para fins específicos podem participar de uma ação coletiva funcionalmente necessária para seu próprio êxito. Neste caso, há tão-somente uma combinação ótima de ações mobilizadas de forma unilateral por atores que definem sua margem de êxito a partir da interação estratégica com o outro, logo, estabelecendo uma decisão que interfere em uma coletividade sem basear-se na vontade comum de seus participantes – vontade que, obviamente, deriva de um trabalho político árduo com objetivos alcançáveis às vezes somente nas gerações futuras. Nas palavras de Habermas (1990, p.103), “H. Arendt desprende o conceito de poder do modelo teleológico da ação; o poder se constitui na ação comunicativa, é um efeito coletivo da fala, na qual o entendimento mútuo é um fim em si mesmo para todos os participantes”.
Há limites nessa abordagem, na medida em que “uma comunicação livre de violência” refere-se a uma situação de fala diversa das relações sujeito-objeto do mundo da produção e, também, dos modernos sistemas de administração e de suas organizações burocráticas como formas de poder vinculadas ao conhecimento técnico e especializado que impedem ou, pelo menos, dificultam uma comunicação desimpedida entre o expert e o leigo e cuja posse envolve o controle dos “segredos de Estado” – entre outros o planejamento de uma guerra. Diante de tais limites na obra de Arendt há por parte de alguns estudiosos um verdadeiro desdém. Ora, dizem com razão, não há qualquer experiência contemporânea de governo democrático que tenha se aproximado desse conceito de poder. No entanto, também não há poder que se institui continuadamente pela violência seja em regimes competitivos seja em regimes autoritários, senão pelo reconhecimento daqueles que se submetem em uma estrutura de domínio. O problema é que o caráter aparentemente voluntário dessa submissão é indissociável da “violência estrutural” inscrita na política de Estado, patente quando se trata de uma política moldada pelo expansionismo militar. Violência que não se manifesta como violência, lembra Habermas (op. cit.), correspondendo à interrupção dos processos comunicativos nos quais se publicizam temas e problemas conforme uma ética discursiva orientada pela busca da verdade do melhor argumento – o modus operandi do trabalho permanente de reconstrução da esfera pública.
Em uma palavra, Bourdieu e Habermas concordam, sob registros diferentes é verdade, que o uso da força retira sua força do auto-engano sobre si mesmo ou sobre uma situação devido a convicções comuns imperceptíveis em nossas tomadas de posição, mas operantes na legitimação de uma política. Desse modo, mesmo que 90% da população israelense aprovem a ofensiva militar em Gaza, a pretensão de legitimidade dessa ação bélica não passa mesmo de uma pretensão se consideramos que o arbítrio desse conflito decorre da crença de que o melhor encaminhamento para um cessar-fogo venha a assegurar de fato a restauração de condições materiais nas quais o povo palestino possa exercer qualquer veleidade de autonomia. Uma reportagem editada em 14 de janeiro pela Agência Carta Maior (http://www.agenciacartamaior.com.br) sobre a questão dos recursos hídricos na Palestina é bastante sugestiva para caracterizar essa “violência estrutural”, a contar do seu título “A água (que ninguém vê) na guerra”, dado por sua autora, Ana Echevenguá. A série de anexações das reservas de água realizada por Israel desde a década de 1960 em suas zonas fronteiriças perfaz o controle efetivo desses recursos hídricos tanto em seu território quanto nos territórios palestinos ocupados. Acaso qualifiquemos o acesso à água como um direito difuso prescrito pelas regras internacionais para o seu uso sustentado, é no mínimo discutível esse monopólio da distribuição da água, posto que 4/5 do total desses recursos hídricos são apropriados por Israel. Ressalva Echevenguá que enquanto Israel irriga 50% das sua terras cultivadas, exige prévia autorização da população árabe para desenvolver atividades agrícolas.
Não quero sobrepor essa questão às demais dimensões desse conflito, mas apenas tomá-la como uma de suas variáveis intervenientes. O mote preferencial do terrorismo, mesmo não se tratando de uma questão menor, pode encobrir a discussão sobre o direito à resistência de uma população sitiada há décadas em terras definidas oficialmente pelas Nações Unidas como “territórios ocupados”. Dada à contigüidade espacial desses povos e à necessidade objetiva de recursos vitais localizados em suas fronteiras, as expectativas quanto ao cessar-fogo são inúteis, politicamente falando, se este dissociar-se de um esforço posterior de estabelecer uma interlocução entre atores institucionais e não-institucionais que restitua, em um horizonte não muito distante, relações políticas nas quais o vínculo a uma tradição nacional possa transigir com uma noção compartilhada de bem-estar dessas coletividades ao invés do silêncio cúmplice quanto à eliminação física de uma delas. Apego ingênuo a um desiderato universalista ante os particularismos em disputa? Pode ser. Entretanto, nada nos obriga a afirmar simplesmente que as coisas são como são se podemos recorrer ao raciocínio contra-factual como instrumento de ruptura com o senso comum, algo mais do que defensável de um ponto de vista sociológico. O conceito de esfera pública entendido não apenas como uma categoria abstrata mas como uma categoria da prática política é um referencial válido para a questão palestina, posto referir-se ao esforço real de construir uma comunicação na qual sustentar provisoriamente uma posição se coadune a defesa de um argumento cuja razoabilidade seja inclusiva de todos os interlocutores envolvidos. Não obstante, para que tal esforço seja eficaz é preciso lembrar que a argumentação racional é também uma luta para ampliar o campo discursivo de uma agenda pública que, no que toca ao conflito Israel-Gaza, remete à própria elaboração do passado do Estado de Israel cuja expansão territorial ocorre à revelia de qualquer noção minimamente aceitável de bom-senso. Noutros termos, distinguir entre o que se quer e o que se pode fazer nesse conflito supõe entender os mecanismos da violência simbólica que operam a naturalização de um assassinato em massa como moeda política corrente na disputa por terra, água e poder.
3 comentários:
A relacao entre violencia física e violencia simbólica é o ponto central para perceber a continuidade entre guerra e política, entre a violencia explícita e "sem disfarce" dos tempos bélicos, e a violencia mais ou menos sublimada dos tempos de paz. O céssar fogo unilateral de Israel nos traz essa relacao diante dos olhos.
Se olharmos com atencao e perícia teremos em nossa memória a política com continuidade da guerra, como dizia Foucault. O cessár fogo significa que o controle do território pode dispensar a ofensiva militar porque dispoe do controle pacificado e do território e dos recursos, confinando a populacao derrotada, até que, se possível,eles naturalizem viver sob este confinamento, desistam de registir... incorporem os limites do território confinado de modo a a esquecer o incomodo. Assim se constituem as nacoes, as homogeinizacoes mais ou menos eficazes.. Para o bem e para o mal, os esquecimento de atos de violencia é o pressuposto para a legitimidade dos Estados nacionais. A razao usada para legitimar nao é a mesma que age para fundar.
O problema é que Israel nao deixa nem a chance do esquecimento para o povo palestino.
Pois é, Roberto. A memória é um campo em disputa, na medida em que essa violência perpassa o não questionamento sobre a política expansionista de Israel, que fez dobrar seu território em comparação às suas fronteiras originais. Ironicamente, vemos uma reedição da "teoria do espaço vital" de Ratzel, cujos desdobramentos na primeira metade do século passado são bastante conhecidos.
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