quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

RITUAIS CAPITALISTAS

por Fabrício Maciel
Já começar o ano com análise de "marxista chato" pode parecer intolerante para alguns. Então, arrisquemos um pouco de marxismo com antropologia, sem clichês. A categoria analítica dos rituais sempre foi cara à antropologia social ou cultural. Entretanto, seu uso sempre me pareceu vazio, descritivo e pouco analítico. Ontem à noite, cumprimentando meus vizinhos, me veio um insight sobre o que toda esta chatice de fim de ano tem de eficaz na reprodução de nossas sociedades contemporâneas. É muito fácil dizer que são datas que perderam o significado, que só servem para o mercado, para o comércio adquirir um faturamento melhor, etc. Isso é muito pouco analiticamente.
Quero arriscar dizer que sem tais rituais o capitalismo simplesmente não existiria, em seu formato atual. Isto por que tais datas festivas são expressões e lembranças, atuando funcionalmente na reprodução do sistema, que exprimem a concepção de tempo moderno que temos internalizada em nossos corpos e incrustada nas instituições modernas. Sem ele o capitalismo acabaria. O tempo racionalizado, tese esta bem velha, só funciona como tal por que temos recursos sociais, como representações do tipo durkheimiano, reproduzidas em ritos, como diria Durkheim ou Victor Turner. Tais recursos sociais nos lembram a cada instante que o tempo está passando. Nas sociedades tradicionais, os marcos naturais, como colheiras, eram o que definiam o tempo. Mas tudo indica que não havia a preocupação em controlar o tempo, em viver calculadamente cada instante dele. Nas sociedade modernas, vivemos uma verdadeira neurose com nosso tempo. Até um conservador como Heidegger percebeu bem que experienciamos agora uma espécie de "finitude". Vivemos a ansiedade de que nossa correria vai acabar um dia. Por isso é preciso conduzi-la da melhor maneira.
Esta neurose moderna com o tempo é bem nítida nos rituais de fim de ano. Eles servem sobretudo para nos lembrar que uma etapa, sempre igual, de busca por nossos objetivos acabou. Isto é muito bem visto nas ansiedade do pequeno-burguês, que chora aquilo que perdeu ou não conseguiu no ano que acabou e se promete conseguir aquilo e algo mais no ano seguinte. Raramente se lembra das derrotas no amor e de como se pode fazer para evitá-las. É sempre o sucesso que surge nas falas que trocamos com parentes, amigos e vizinhos. "tudo de bom", "que alcance seus objetivos", "sucesso", "que dê tudo certo", e o clássico "que deus abençoe". Do que estamos falando?
Cada ano novo parece mais uma chance para todos na sociedade do mérito. É mais uma possibilidade de se dar melhor na competição social ou de manter o sucesso caso ele haja. Como se pudéssemos passar uma borracha no passado. Zerar a competição e recomeçar a cada ano. Para a ralé é ainda mais trágico. É a oportunidade de atualizar as fantasias. Isso quando não se estraga a "época sagrada" com alguns goles de vinho, logo ele, a bebida sagrada.

6 comentários:

Roberto Torres disse...

Maravilhoso texto fabrício! Mas parece que no Natal, faz-se recurso, como voce lembrou, a um momento em que a vida pode recomecar, em que o tempo pode ser zerado. O que sem dúvida nao passa de ilusao, sobretudo para quem vive a urgencia e a falta de tempo.

Fabrício Maciel disse...

Isso, o natal tem aquele quê de redenção, que pode ser entendido como uma possibilidade de recomeço.

Ƭ. disse...

...redenção necessária à vida e aos sonhos.
Excelente trabalho!

Fabrício Maciel disse...

Exato, é trágico quando as condições objetivas atuam cada dia contra os sonhos, algo comum ao contidiano de nossa classe oprimida, a ralé. Afinal, todo mundo compartilha os sonhos do sucesso e do consumo.

Anônimo disse...

Construção social, o tempo assume nas sociedades modernas atuais a condição de marco de distinção e quantificação do capital simbólico acumulado ao longo do ano - sob a forma de viagens feitas, cursos ministrados ou cumpridos, certificados acumulados, livros lidos, publicações realizadas e até mesmo relacionamentos afetivos formados e/ou desfeitos. O mais interessante, para além do conteúdo propriamente mágico do tempo, é a necessidade estrutural de estabelecer marcos temporais nas civilizações técnicas e como isso tem afetado nossa economia emocional.Acredito que você aponta com muita clareza a natureza neorótica do tempo na vida moderna. Seria isso mais uma "patologia" da modernidade?
Abraços!

Fabrício Maciel disse...

Grande comentário Cadu! É claro que sim, trata-se de uma de nossas patologias centrais, arriscaria dizer que sem ela não existiria as outras, pois está diretamente relacionada, em termos funcionais, ao projeto pessoal que cada individuo tem que ter pelo menos desde a Reforma protestante no ocidente. grande abraço brother.