O Rio de Janeiro, capital da brasilidade, se transforma em Tel Aviv mais uma vez. Inúmeros baleados nos hospitais cariocas, eis o saldo da contradição do Brasil em sua capital cultural. Todos viram nos jornais que, em resposta à corajosa e inteligente política do governo do estado, em torno das UPPs, pacificadoras de várias comunidades, o tráfico está dando sua resposta. Diferente de algumas análises que já apontam a resposta como desespero e desarticulação do tráfico, acho precipitado pensar assim. É preciso cuidado na análise, nas táticas do BOPE, e na política. O tráfico mostra agora toda a sua força, e quem paga é a população, com medo na alma e sofrimento no corpo, e principalmente as classes populares, como sempre.
Não gosto do termo "pacificação", mas a política em torno dele tem avançado no combate à violência no Rio. Diferente do senso comum já sacralizado como crítica no filme Tropa de Elite 2, é preciso compreender que força contra força só gera mais perigo e sofrimento. A questão da violência em países de desigualdade radical como o nosso não se resume a fortalecer e limpar a corrupção na polícia. Ela exige compreensão das origens históricas do problema, e esta se remete ao fato de que milhões de brasileiros desqualificados pelos critérios modernos do mérito se inserem como consumidores de drogas (e não só eles, claro) e também como braços desarmados moralmente, mas armados pelo crime, para trazer sustento às suas casas e ao mesmo tempo afagar a dor de suas almas.
Diferente do que implícita e sutilmente sugeriu o filme Tropa de Elite 1, refletindo o pensamento da classe média, estas pessoas não devem ser aniquiladas pelos caveirões, ainda que as políticas de segurança em defesa de quem foge do crime devam ser aperfeiçoadas, desde que orientadas por este raciocínio. Penso que políticas de qualificação da população são fundamentais, junto com a geração crescente de empregos, para que mais e mais cidadãos possam encontrar inserções dignas no mercado e não precisar emprestar seus corpos à venda das drogas e nem suas almas ao consumo das mesmas.
Dilma já se pronunciou sobre o fenômeno genocida do Crack, que já se torna questão social no Brasil, agora que afeta a classe média, cujo consumo aumentou mais de 130 por centro dentro dela, segundo a Veja. Só agora se torna importante, depois de há quase dez anos vir matando a ralé, sua vítima imediada. No geral, todo este episódio só confirma o equívoco da tradicional tese dos dois Brasis em um só, o da guerra e o da paz, do atraso e do moderno, que surge desde Gilberto Freyre com Casa Grande e Senzala e perdura até pensadores atuais da academia carioca. Basta ver dentre outros o livro Guerra e Paz de Ricardo Benzaquen. A realidade é que a paz sugerida pelo mito da brasilidade, compartilhado por todos nós, existe apenas na zona sul do Rio, simbolo da classe média nacional, enquanto que a guerra do Estado contra a ralé dispersa na violência come solta sem perder em qualidade para nenhuma guerra civil ou religiosa do mundo contemporâneo.
15 comentários:
É Fabrício, mas nao podemos ceder ao erro de que achar que o diagnóstico sobre desigualdade sirva para resolver um problema que nao é da ceará dos diagnósticos científicos, e sim de decisao política.
O saber tem sempre sentido por referência a um "sistema" no qual ele é capaz de produzir efeitos. No caso do que ocorre no Rio, nao consigo imaginar outra decisao diferente da que está sendo tomada.
Concordo com seu texto Fabrício, mas algumas vezes a sociedade entra num círculo difícil de se quebrar e por mais que concorde com a criação de novos empregos e oportunidades para a classe D e E com a redução das desiqualdades, em alguns momentos há a necessidade de de tomar medidas extremas. Concordo com as UPPs, não por fazer parte da classe média, mas para as pessoas que moram nesses morros terem direito a Justiça Estabelecida pelo Estado e não pelo dito "poder paralelo" que tem sua ética de acordo com as conveniências.
Não estou dizendo aqui que nossa justiça não tem falhas, mas pelo menos podemos conhecer as regras.
Como Roberto já disse, não consigo imaginar outra decisão diferente da que está sendo tomada...
eu concordo roberto, e podemos acompanhar em tempo real as ações políticas com análises que contribuam para o aperfeiçoamento das táticas.
estou no rio agora, entre centro e zona sul, e nada acontece aqui, a não ser shows de lenine e arnaldo antunes de graça para a classe média curtir. o bicho tá pegando mesmo pra cima das classes e dos bairros populares.
tahiana,
que prazer ter vc aqui de novo no blog. eu concordo tb que as medidas tomadas agora são inevitáveis. mas podemos melhorar a 'pacificação' na medida que compreendemos melhor o fenomeno. só para ampliar o debate, a mídia está fazendo um estardalhaço geral que esconde quem são as principais vítimas, a cinelandia continua tão agradável como sempre, apenas os garçons é que sentem medo na hora de pegar o onibus para voltar p casa.
Pois é, mas nos últimos tempos não me lembro da mídia não fazer estardalhaço por algo! Tudo é motivo para ampliar a venda de jornais, vide a eleição.
de fato tahiana,
a mídia só exagera o que gera lucros imediatos, já novelizou e banalizou o que está ocorrendo aqui no rio, o que acaba desinformando a população sobre como realmente está a coisa por aqui. ontem a noite a classe média desfrutava normalmente seu carnaval particular na lapa, com direito a segurança pública de primeira da pm, que se torna segurança de classe e assim fecha o cerco de sistema de legitimação e de proteção dos privilégios materiais e morais das classes estabelecidas.
pra completar, a cidade vive mais uma campanha cultural intitulada 'brasilidade - todos pela cultura para todos', levada a cabo pelo governo federal e a prefeitura, com direito a shows gratuitos de cachorro grande, arnaldo antunes, otto, etc.
enquanto isso, do outro lado da cidade o bicho continua pegando, queimaram um carro em plena presidente vargas, mas até agora nenhum na lapa ou nas laranjeiras, por exemplo.
abração
Claro fabrício, a inseguranca também e estratificada. Mas o pressuposto para que as classes populares tenham menos inseguranca é o controle do território pelo Estado.
E sabemos também que a disputa já nao é, se é que já foi, entre polícia e tráfico, mas entre a lei e as milícias. Nela nos resta apenas torcer para que a banda pobre da polícia, que dá suporte a rede das milícias, seja enfrentada pelo Estado.
E é preciso que, para isso, o Estado ganhe confianca das pessoas.
A questao é que, embora haja uma forte e tenaz estratificacao da inseguranca, esta estratificacao nao conduz a política de seguranca. Existe uma margem de possibilidade.
Senhores,
Não há dúvidas que o combate da criminalidade violenta encerra a possibilidade de confronto. Isso é óbvio e ululante.
A questão de fundo é: Há eficiência e eficácia desse "combate" permanente, e mais: Há por trás desse "estado de exceção" algum interesse "geopolítico e geoeconômico"?
Bom, qualquer leigo(como eu)nas questões de segurança pública sabe dizer que esses eventos nas perfiferias da capital fluminense são os efeitos de um processo muito mais amplo, ou seja, tratamos a a febreb como se fosse a causa da infeccção.
Não há qualquer sinalização de coordenação e planjemento para atacar o problema do comércio de drogas ilícitas onde se deve:
Nos seus nichos financeiros e na sua esfera atacadista.
Qualquer palpiteiro sobre "jogos de guerra", com ou sem "infográficos" (rs) sabe que se vence a "guerra" pelo corte das linhas de suprimento e logístico do "inimigo".
Mas o problema é que nesse caso, prevalece a "solidariedade" de classe, e ninguém gostaria de "incomodar" os banqueiros que lavam as fortunas que alimentam a "empresa".
Eu me arrisco a dizer:
Tudo isso não passa da mais grotesca manipulação, que fornecerá ao governo estadual uma "carta branca" para continuar essa política de enfrentamento inútil (mexicanização do Rio), com o aumento de gastos públicos para cevar os cofres daqueles que lucram com o pânico:
Empresas de segurança privada, indústria de armas e insumos, empreiteiros, etc.
Um abraço
Claro Douglas,
a solidariedade de classe prevalece quando se opta por fabricar o mito de que a organizacao do crime está na favela. E a política do mero enfrentamento, além de deixar os baroes do crime numa boa, serve também para atender aos interesses da indústria do pânico.
Minha pergunta, talvez otimista demais, é somente se o controle do território por parte do Estado - ou pelo menos o que se anuncia como tal - nao traz uma possibilidade (ainda que mais fraca do que a que voce detalha em seu diagnóstico) de que a tal "confianca da populacao" nao precise ser mantida com política pública e nao com enfrentamento.
Ou seja, se o Estado e a mídia agora ficam dizendo dia e noite que o poder público tomou o território eles criam a expectativa de que, de agora em diante, a questao nao é mais de enfrentamento, mais de política também.
O prefeito falou em "invasao de política pública" rs. Claro, sabemos e devemos falar da fraquesa de intencoes. Nao ignoro isso. Mas minha questao é outra: sao as "consequencias nao intencionais da acao", as expectativas que podem constranger o comportamento até dos malintencionados.
eu quise dizer "que a confianca da populacao precise ser mantida com política pública".
abraco
roberto,
concordo com a ocupação, desta vez nem a veja teve como criticar, a eficácia e organização são inéditas.
tb acho lúcido o ponto de que o problema seja entre a lei e as milícias, poderíamos conversar mais sobre ele.
quanto a nosso caro douglas, acho que vc já respondeu bem.
douglas, eu não acho que seja uma questão de marketing do governo meramente, o estado precisa agir, eu estava no rio no auge da coisa e vi como todo o metabolismo da cidade foi impactado.
forte abraço meus caros
Se a premissa do agir é falsa, o devir também o será.
Se eu entender que a "tomada de território" pode funcionar de alguma forma, a conseqüência é apenas a segregação e substituição da opressão ilegal por outra, só que legitimada como política de Estado.
Fabrício, não houve coordenação alguma, e apenas um desencadear de fatos, um acumular de gente que por motivos táticos óbvios, deu certo, e que trouxe em si uma contradição de argumento que injustifica a própria "invasão": se fossem tantos, tão organizados e tamanho o perigo, por que foi tão fácil?
Não há lógica alguma em atuações como essa.
Não se resolve o problema de trás para frente.
É uma escolha política, empresarial e ideológica e referendar isso é perigoso, por demais.
Recomendo o livro Blackwater, a história do maior exército privado do mundo, que cresceu à sombra da invasão iraquiana.
Primeiro o pânico, depois a terceirização da guerra em larga escala, igual, mas em menor proporção no Rio: viaturas alugadas, grupo terceirizado que cuida das delegacias, disque-denúncia (Zeca Borges) terceirizado, depois vem o planejamento e por fim, a atividade-fim, que já se observamos o embrião com as milícias, que infelizmente para eles, deu errado porque fugiram ao controle.
Mas eles tentarão outras vezes...
Anotem aí...
Fabrício,
Me permita considerar outro pronto crucial que abordei no debate lá no blog do Roberto:
A inconstitucionalidade da ação (intervenção ilegal no Estado), traz em si outro problema de legitimação, que não pode ser desconsiderado de forma alguma.
Um abraço.
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