quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Subsídios Agrícolas II: render-se às setas e dardos de um ultrajante destino?

Em texto anterior (Subsídios Agrícolas: quem ganha?) expressei uma série de argumentos contrários à política de subsídios agrícolas ao setor canavieiro na região norte fluminense, dentre os quais destaquei: (1) o emprego de mão-de-obra em condições subumanas, (2) o momento inoportuno dado os valores internacionais históricos do açúcar alcançados nos últimos meses (o maior em 27 anos, não obstante, a difícil situação que se encontram as usinas por falta de crédito), (3) irresponsabilidade ambiental, posto que as queimadas são formas primitivas de cultivo que permanecem na região, (4) inapetência administrativa das usinas, explicado pelo fato de que, apesar de terem sido alvos de políticas de fomento durante décadas, permaneceram dependentes do Estado, e (5) independentemente do fato do alvo direto do subsídio ser os pequenos produtores, os verdadeiros beneficiados são os compradores (as usinas), pois a determinação dos preços não seguem a lógica de jogos simultâneos de uma única rodada com informações igualmente distribuídas – além do mais, os compradores (em menor número e organizados) estão em situação estratégica em relação aos pequenos produtores (em maior número e desorganizados).

Em comentário ao mesmo texto, afirmei claramente ainda que há um preceito normativo subjacente ao ponto (1), qual seja, de que não importava o tamanho do empregador da mão-de-obra no canavial, e sim o que estava em causa era as condições do trabalho empregado. Dito de outra, não importa se o trabalho é realizado por trabalhadores assalariados ou por membros de uma pequena família produtora (e aqui entram também os assentados), importam sim as condições daquele trabalho por demais demonstradas que superam os limites físicos dos seres humanos. Nesta questão, considero desnecessário lembrar desastres recentes que ludibriaram não pessoas sem qualificação técnica, mas sim especialistas experimentados no assunto, ou seriam estes fatos como os tais que ainda “preenche[m] o imaginário de militantes de esquerda”?

Com o convite para debater a questão no blog do Xacal, o professor Fábio Siqueira apresentou novos argumentos. Não obstante o profundo respeito e admiração que cultivo ao professor, classifico os argumentos como um “culturalismo inadvertido e incauto”. E explico: inadvertido porque irreflexivo, posto que afirmara ser o cultivo da cana-de-açúcar entranhado na cultura dos agricultores o motivo justificador para uma intervenção Estatal reforçadora. Nas palavras do próprio:

“Hoje, uma década depois [das políticas de incentivo à diversificação de culturas], e apesar da desvalorização da cana, é inegável o apelo que tal cultura continua a ter junto aos produtores locais.”

Classifico como irreflexivo o argumento culturalista, pois está subjacente a concepção de um Estado que deve reforçar comportamentos culturais dos cidadãos, e não uma concepção de Estado transformador. O primeiro se rende a um dado cultural e o reforça (neste caso, um ultrajante destino); o segundo, o Estado reformador, traz para si a responsabilidade de mudanças culturais, ainda que perceba a cultura como parte constituinte do comportamento e possíveis entraves para modificações, sem jamais renunciar ou prevaricar na sua missão transformadora.

Ainda que se tratasse de uma concepção normativa consciente de um Estado culturalista reforçador, em geral, esta modalidade pretende reforçar as boas condutas culturais, no que não se pode classificar as políticas implementadas para reforçar a cultura de cana-de-açúcar na região. No caso em tela, reforça-se o que há pior na cultura da região.

O segundo adjetivo empregado ao culturalismo (incauto) se refere à própria causalidade empregada para classificar a falência das políticas públicas voltadas para a diversificação de cultivos. Aqui caberia perguntar se o malogro destas políticas não foi causado por motivos intrínsecos à própria política, seja na formulação seja na execução. Afirmar que a política pública faliu por um fator cultural significa afirmar que estes fatores culturais não foram devidamente considerados na formulação da política, por conseguinte, uma política mal formulada. Ora, como se elabora uma política pública e não se dimensiona os entraves culturais para sua execução? O culturalismo incauto, ao fim e ao cabo, declara a incompetência do formulador e/ou do executor da política.

Os argumentos do professor Fábio ainda desconsideram completamente as externalidades negativas provocadas pela queimada da cana-de-açúcar na saúde da população (acrescente a isto também os efeitos ambientais); sonega solenemente a medíocre produtividade deste cultivo na região (especialistas afirmam que não chega a metade da produção/hectare das regiões de São Paulo); nada diz a respeito das décadas de incentivos governamentais investidos sem resultado na região.

Por fim, gostaria muito de acreditar que estas políticas de subsídios são simplesmente mal elaboradas, que são ingênuos os propositores, que desconhecem o que fazem, que estão ofuscados pelo voluntarismo e boas intenções em ajudar os pequenos produtores. Caso contrário, terei de me render aos argumentos próprio da Ciência Política destinados à explicação de distribuição de benesses aos grupos de interesses privados com fins eleitorais.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009













Cai mais um mito do liberalismo elitista e oligárquico no Brasil: Produtividade do setor público avança mais que a do privado
A produtividade no setor público brasileiro evoluiu mais que a produtividade no setor privado entre 1995 e 2006. A conclusão está no Comunicado da Presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado na manhã desta quarta-feira, dia 19, em Brasília. O estudo, intitulado Produtividade na Administração Pública Brasileira: Trajetória Recente, mostra que, naquele período, a produtividade na administração pública aumentou 14,7%, enquanto no setor privado a evolução foi de 13,5%.

A medida nacional de produtividade anual na administração pública utilizada pelo Comunicado da Presidência nº 27 se baseia no valor agregado definido pelas contas nacionais e a força de trabalho ocupada de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) - ou seja, parte de informações oficiais produzidas pelo IBGE. O estudo foi apresentado pelo presidente do Ipea, Marcio Pochmann.

O comunicado revela que, ao longo do recente período de estabilidade monetária no Brasil, com o Plano Real, "a produtividade da administração pública manteve-se superior à do setor privado". Em 2006, por exemplo, a produtividade no setor público foi 46,6% superior à do setor privado. A apresentação trouxe, ainda, comparações entre estados e entre as administrações públicas federal, estaduais e municipais.

Do ponto de vista regional, o Nordeste e o Centro-Oeste tiveram crescimento positivo e substancial da produtividade na administração pública entre 1995 e 2004. As demais regiões não apresentaram melhoria nesse indicador. Já entre as unidades federativas, Roraima obteve o melhor desempenho no mesmo período, seguido pelo Distrito Federal. Seis estados tiveram redução nos ganhos de produtividade, sendo que o pior cenário foi registrado no Pará.

"Constata-se que, de 1995 para cá, a produtividade na administração pública não se descolou daquela do setor privado. As duas evoluem na mesma dimensão e registram ganhos, embora baixos", resumiu Pochmann. Entre os fatores que ele apontou como justificadores desse crescimento da produtividade no setor público estão o aproveitamento de novas tecnologias da informação, a participação social no acompanhamento de políticas públicas, e a modernização do setor por meio de concursos e cursos de qualificação.

O presidente do Ipea lembrou ainda que as administrações estaduais que adotaram medidas de choque de gestão não constam entre aquelas com melhor desempenho na produtividade. "Ou tiveram ganho muito baixo, ou ficaram abaixo da média de 1995 a 2006", afirmou, ressalvando que essa comparação não era objetivo do estudo, mas foi uma das conclusões observadas. O evento teve transmissão ao vivo pelo site do Instituto. (texto da assessoria de imprensa do IPEA).
Confira o link da comunicacao: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/comunicado_presidencia/09_08_19_ComunicaPresi_27_ProdutividadenaAdminisPublica.pdf

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Cotas, a intolerância relativizada?

Gilson Caroni Filho

Ao entrar com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a suspensão da matrícula dos alunos negros aprovados pelo sistema de cotas da Universidade de Brasília, o DEM (ex-PFL) protagonizou um momento emblemático da nossa propalada “democracia racial”.

Há algo mais profundo, fortemente recalcado, em todas as discussões envolvendo políticas afirmativas em universidades públicas. Tanto o projeto de Lei Complementar, em tramitação no Senado, estabelecendo que as instituições de educação superior reservem 50% das vagas para autodeclarados negros, pardos e índios que cursaram o ensino médio em escolas públicas e venham de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita, quanto a lei estadual que instituiu o sistema no Rio de Janeiro sofrem forte resistência de atores políticos e de personalidades do mundo acadêmico. Afinal, a quem ameaça a implantação de tais medidas?

Conhecida por seu ativismo contra as cotas, a antropóloga Yvonne Maggie declarou recentemente que “uma coisa é dizer que o Brasil é um país desigual, com uma distância muito grande entre ricos e pobres. Outra coisa é atribuir isso à raça”. Para ela, “a lógica étnica ou racial não tem fim e só persiste porque a Fundação Ford investiu milhões de dólares no Brasil”. Como explicar o posicionamento da autora do livro Guerra de orixá? Adesão a um padrão de análise que, baseada nas formulações teóricas de Gilberto Freyre, vê a história brasileira como um suceder de arranjos e combinações calcadas na “cordialidade” de uma elite flexível? Reverência a uma arquitetura tão perfeita que o conflito só aparece como “algo externo á nossa gente”?

Esse tipo de discurso está tão cristalizado no pensamento social brasileiro que mesmo setores mais progressistas fazem coro a ele. Quantas vezes não ouvimos que as injustiças sociais em relação aos negros não seriam particularidades destes, mas do conjunto das classes trabalhadoras? Uma visão reducionista que ignora evidências estatísticas. Pelos números do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano (Pnud), em 2002, enquanto os brancos no Brasil tinham um padrão de vida – considerando-se o nível de educação, expectativa de vida e renda – comparável aos habitantes dos Emirados Árabes (46º lugar entre os 173 países pesquisados), os negros viviam como habitantes da República da Moldávia (105º posição). Esses números não mostram uma correlação cristalina entre etnia e inserção social?

Não lembrar, ou fingir que não lembra, que em determinada fase de nossa história houve uma coincidência entre a divisão racial e social do trabalho é legitimar uma estrutura societária rigidamente estratificada que, apesar dos avanços nos últimos anos, ainda persiste em atribuir aos brancos as atividades consideradas mais qualificadas, as que gozam de maior prestígio.

De acordo com o relatório anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2007-2008, da UFRJ, entre 1995 e 2006, o peso relativo da população autodeclarada parda ou preta subiu de 45 para 49,5%. Isso significa, segundo a pesquisa, que os negros podem vir a ser maioria da população do povo brasileiro nos próximos anos. Se por um lado os dados sinalizam para a derrocada crescente da ideologia do branqueamento, por outro o aumento da auto-estima entre a população não-branca se dá por uma série de fatores. E o principal, na opinião do antropólogo e professor da UnB, José Jorge de Carvalho, é “o aumento do debate sobre a questão racial no Brasil”.

Se Yvonne Maggie está correta quando diz que “raça é uma invenção dos racistas para dominar mais e melhor”, talvez, se debruçando sobre as particularidades do fenômeno racista, entenda a competência dos que manejam o discurso excludente. Aqueles que, sabendo que os negros são a maioria dos analfabetos, dos que recebem menores salários, dos encarcerados, dos subempregados e se constituem minorias nas faculdades, em grandes empresas e no Congresso Nacional, entre outros lugares de projeção, rejeitam o sistema de cotas alegando que “raça não pode ser critério de distribuição de justiça”.

Um olhar atento mostraria que “raça” sempre foi critério classificatório de quem pôde ter identidade e consciência histórica: uma elite branca que idealizou a tolerância que jamais teve. Qualquer estudante universitário sabe disso. Se for negro e cotista, então, conhece bem os limites das “relativizações possíveis”. Aquele pequeno espaço de dramatizações sociais para onde convergem os “orixás” da UFRJ e os senhores da direita escravocrata. Ali são forjados os estatutos “progressistas” da Casa-Grande.

domingo, 16 de agosto de 2009

Sistemas Públicos de Comunicação no Mundo

Prezad@s,

Em meio a debates certamente profícuos e fundamentais sobre a comunicação venho publicizar um importante livro: Sistemas Públicos de Comunicação no Mundo.

Publicado pelo coletivo "Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social" o livro coloca o holofote onde há densas nuvens de fumaça: a relação entre Estado, informação e sistemas públicos. Trata-se de pesquisa comparativa envolvendo diferentes realidades e nos presta um importante panorama sobre o "Estado da arte" nesta questão específica.

Creio que é de conhecimento geral a posição do grupo Folha, o de São Paulo aqui nesse contexto, onde foi desaconselhado o prosseguimento de investimentos e o fechamento do "Canal Brasil"... Possivelmente em uma tentativa vil, irresponsável e nada sutil de deixar a produção de informação exclusivamente na mão de agentes privados.

De toda maneira aqui está o livro disponível para download ainda antes do seu lançamento.

Recomendo ainda uma boa lida no site do pessoal engajado da Intervozes. Eles são a prova de que há vida inteligente e socialmente engajada no âmbito da Comunicação Social.

sábado, 15 de agosto de 2009

Subsídios Agrícolas: quem ganha?


Não posso negar que coaduno com uma série de questões normativas que embasam intervenções do Estado na economia. E subsídios agrícolas são parte importante destas. Entretanto, confesso que não consigo enxergar qualquer argumento que sustente minimamente uma política redistributiva que beneficie agricultores de cana-de-açúcar no norte fluminense - locus privilegiado para se observar práticas desumanas desta cultura. Após décadas de incentivos governamentais, na região ainda se presencia extenso emprego de trabalho escravo, sonegação tributária, administração precária e baixa produtividade. Características que seriam suficientes para sustentar intervenções que visassem causar exatamente o oposto dos incentivos que estão por vir.

É de bom alvitre ressaltar que, não obstante o foco dos subsídios nos pequenos produtores, os benefícios atingem mais os compradores da cana-de-açúcar. São estes os detentores dos meios de produção, e que irão ter a garantia da matéria prima a baixo custo. Como se pode observar claramente no gráfico de preços internacionais divulgado pela THE ECONOMIST (ver matéria abaixo), não existiria momento mais inoportuno para uma política como esta.

Destarte, vejo-me obrigado a aderir, neste caso em particular, ao argumento evolucionista do mercado: se as empresas canavieiras não conseguiram se reconstruir para se auto-sustentarem mesmo após longas benesses do Estado, deixe-mo-las à falência. O que não podemos é contribuir (com recursos públicos) para a persistência de práticas nefastas tanto do ponto de vista humano quanto do meramente econômico.

Por fim, seria mais importante e eficiente o Estado bancar o custo social do desemprego com políticas redistributivas responsáveis, que sejam capazes de realocar a mão-de-obra dos canaviais. A região ganharia mais e os trabalhadores perderiam muito menos.



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The price of sugar
Sugar rush

Aug 13th 2009
From www.Economist.com

Why the sugar price is soaring

THE price of sugar is higher than at any point in 27 years, having risen much more than prices of other food in recent months. The cause appears to be a huge drop in sugar production in India, the world's second-largest producer. In the 2007-08 season India's output was 28.6m tonnes of sugar, but this year production is estimated to fall to 16m tonnes. Indian farmers planted less sugarcane last year after sugar prices fell, partly in response to a ban on exports. A weak monsoon also threatens this year's production. Indians are also the biggest consumers of the sweet stuff: in 2008, they used 24.3m tonnes, nearly 15% of global demand. A decline in Indian production means that it will import more, driving up international prices. India's government has lifted its export ban, but production is unlikely to meet demand before 2011.







sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Globo versus Record

Divulgo aqui o material divulgado na atual briga das duas grandes emissoras de televisão abertas do Brasil. Uma acusa a antagonista de participação direta em atividades contrárias a qualquer princípio de defesa dos valores democráticos. Já a outra, por sua vez, discute os efeitos de manipulação e utilização de recursos de fiéis na construção de um império de comunicações, enriquecimento ilícito, etc..

Em sociedades sérias, com um Estado democrático de direito sólido, as denúncias de ambas emissoras levariam imediatamente à revisão séria da lei sobre as concessões públicas de comunicação, em um modelo excludente e oligopolístico da produção e difusão de bens simbólicos. Com a proximidade de 2010 não creio que teremos tal desfecho.

Quanto ao primeiro comentário, referente às acusações que uma faz a outra, temo que ambas tem razão.




quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Boaventura, quilombolas e o Brasil

Prezad@s,

Venho divulgar entrevista da Revista virtual independente "NovaE", com 10 anos de existência, realizada com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos.

Boaventura de Sousa Santos é certamente um dos sociólogos mais importantes atuantes em lingua portuguesa na atualidade. Seus estudos no campo da sociologia do direito, ainda insuficientemente divulgados entre nós, e trabalhos sobre epistemologia são lidos pelo mundo todo. A despeito da virulência dogmática de muitos de seus desafetos.

Eu mesmo sou bastante crítico ao trabalho do português. O que não implica que eu deva incentivar o banimento de suas idéias e tampouco o desaparecimento truculento, artificial e autoritário dos dissensos, como parte da academia brasileira insiste em fazer. Interessante como os perseguidos tornam-se perseguidores facilmente....

De toda maneira divulgo esta entrevista pensando objetivamente na questão quilombola. É preciso desconstruir os elementos reacionários da grande mídia sobre a questão fundiária e sobre as populações tradicionais brasileiras. E Boaventura é um reforço importante em mais esta batalha.

Boa leitura!

George

PS: Recomendo ao acompanhamento da revista NovaE. É fundamental o incentivo à produção de idéias para além dos viciados esquemões da grande mídia e seus seguidores práticos.

http://www.novae.inf.br/site/modules.php?name=Conteudo&pid=1323 (acesso em 13 de agosto de 2009)


Para Boaventura, política ambiental do governo Lula é um desastre.


Foto: Wilson Dias/ABr

Bruno Moreno

Passados cinco séculos do início da colonização portuguesa no Brasil, o filho de um cozinheiro português quer ajudar a resolver um dos maiores problemas criados pelos próprios ibéricos: a escravatura e as perversas formas de dominação de raça e classes após a Lei Áurea, que ficou devendo muito aos negros – aceitou a liberdade física, mas negou a econômica e a social, dentre tantas outras. Quem está se propondo a ajudar na questão é o sociólogo e escritor Boaventura de Sousa Santos, que frequentemente vem ao país e até se intitula um “brasileiro adotado”.

Ferrenho defensor das ecologias de saberes populares, Boaventura esteve em Brasília, em julho, e encontrou com a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, que, juntamente com outros dez ministros, compõe o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Pois é justamente lá, no STF, que está em curso um dos processos mais importantes para os negros no Brasil.

Vale lembrar que outro ministro que compõe o elenco de magistrados é o presidente do tribunal, Gilmar Mendes. Mas Gilmar não deve estar muito feliz com a ida de Boaventura em seu plenário. Isso porque o professor português o definiu como "uma figura patética", destacando sua publicidade excessiva na imprensa. "Nos Estados Unidos, o presidente do Tribunal não aparece na mídia como o Gilmar. No máximo, ele vai dar uma palestra em uma universidade, de vez em quando", criticou.

E deverá ser Gilmar que presidirá uma sessão que poderá ter seu resultado influenciado por Boaventura. Desde que, em 2003, o
presidente Luís Inácio Lula da Silva assinou o decreto 4.887, em 20 de novembro, a vida dos quilombolas poderia ter ganhado outros vieses, com a agilização da demarcação de suas terras. Entretanto, o então PFL, atual Democratas, tradicionalmente ligado à bancada ruralista, não gostou da proposta, e resolveu entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, contra o projeto.

Aí entra o professor Boaventura. Ele se dispôs, um pouco incomodado, a ir ao STF dar uma aula sobre a história da colonização portuguesa no Brasil, seus efeitos e injustiças históricos, para sensibilizar os ministros para a causa. Entretanto, não entende bem porque isso é necessário. “Falei com ela (Cármem Lúcia) que posso vir, mas há muito material produzido no Brasil. É só ler, é só querer ler”, questionou o professor, em palestra realizada em Belo Horizonte, dia 4 de agosto, em Belo Horizonte, a convite do Sinpro Minas.

E não é à toa que Boaventura se arrisca nessa intentona. Para ele, que lutou contra o imperialismo português que persistiu até 1975 em colônias africanas e no Timor Leste, a maior herança do colonialismo é a pífia distribuição fundiária e o racismo. Olhe um pouco à sua volta e verá que o professor tem razão.

A data da audiência pública em que Boaventura irá participar no STF ainda não está marcada. Mas parte do recado já foi dado. Quem sabe, agora, os brasileiros não estudam um pouco mais o tema em vez de rejeitá-lo?

Em entrevista exclusiva à NovaE, Boaventura detalhou seus argumentos, e também falou do governo Lula, de suas políticas ambiental e social, do agronegócio e da crise econômica mundial do capitalismo. Além disso, afirmou que o Brasil está pronto para ter uma mulher na presidência. Entretanto, ele prefere o ministro da Justiça, Tarso Genro. Confira abaixo.

Qual é a participação do senhor na defesa da demarcação das terras dos quilombolas?

Como trabalho bastante com os advogados populares, que trabalham com os quilombolas, tive notícia de que eles iriam pedir à ministra Carmem Lúcia uma Audiência Pública em face daquela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), que foi impretada pelo antigo PFL, os Demos.

Essa ADI visa fundamentalmente considerar inconstitucional muitos dos processos de regulamentação dos territórios de remanescentes de quilombos – que ultimamente têm sido uma grande transformação, digamos assim, na vida do campo do Brasil devido ao reconhecimento e à organização dos afrodecendentes para reaverem as terras que foram desapropriados, onde viveram muitos anos. Essa é uma luta muito importante, uma vez que sou conhecido e os ministros conhecem as minhas posições.

Eu quis sensibilizar, basicamente, o Supremo Tribunal Federal, para a importância da questão quilombola, sobre a qual existe tanto desconhecimento no Brasil, o que é uma coisa que me surpreende. Uma vez que há muita informação disponível sobre esse movimento, e as razões históricas, fundamentalmente justiça histórica, que está por trás dele. Mas a verdade é que há muita ignorância a respeito disso. A ignorância, no meu entender, pode ser altamente prejudicial ao movimento, e à reivindicação dos quilombolas. Porque pode mudar os critérios dos códigos livrais, que atravessam toda uma parte de direito civil que tem uma concessão privatística da propriedade, e são muito renitentes a reconhecer os direitos históricos sobre a terra. Nesse caso dos remanescentes e também no caso dos indígenas.

Como o senhor vê a questão de um português vir ao Brasil para ter que falar sobre esse tema, já que (a escravidão no Brasil) foi uma criação de Portugal?

É uma pergunta interessante. Obviamente, não me sinto responsável pelo colonialismo. Por contrário, ainda tive a oportunidade de lutar contra o colonialismo, porque ele durou até tão tarde. Desde os anos 1960 lutei contra ainda as colônias que existiam no império e que só se libertaram em 1975. Mas é verdade que a minha ligação a eles e com outras causas que tenho abraçado no Brasil não tem muito a ver com essa responsabilidade, porque não a reconheço.

É fundamentalmente porque eu tenho trabalhado no Brasil. Há muita gente que pensa, nos círculos internacionais, que sou brasileiro. Sou um brasileiro adotado. Fiz aqui meu trabalho de campo, meu doutoramento foi feito numa favela do Rio de Janeiro. E participo da vida social, acadêmica e também política, com os movimentos sociais. Num processo que se intensificou muito depois do Fórum Social Mundial. Para mim, é na decorrência disso que eu me dispus a tomar essa ação e vou fazer mais. Também fui o primeiro signatário de um abaixo assinado em defesa da Reserva Raposa Serra do Sol. Também trabalho bastante com o movimento indígena no Brasil, no Equador e na Bolívia, porque também é um caso de justiça histórica que deve ser resolvido.

Mudando o foco da conversa, o senhor acha que o capitalismo, se conseguir passar bem por esta crise, sairá mais forte ou mais fraco?

É muito difícil responder a essa questão. As crises do capitalismo são sempre multifacetadas porque têm diferentes temporalidades. Esta crise financeira, por exemplo, é de uma temporalidade curta. Ela explodiu em agosto de 2008. Obviamente que essa crise não é de agora. Ela já vem de meados da década de 1980 e depois de 1990. Rússia, Brasil, Indonésia e Tailândia foram vítimas disso. A especificidade desta é que ela aconteceu no coração do sistema. E esta é uma crise de curta duração, que é sinal de outras, provavelmente mais profundas, mas que pode ser resolvida a curto prazo, sem em grandes transformações sistêmicas. Mas há outras crises que são muito mais de longa duração. Essa tem a ver com os limites ambientais e esse tipo de desenvolvimento. Eu penso que essa é a grande crise do capitalismo. Ela vai surgir duma ou doutra forma. É aquela que vejo que vai haver mais dificuldades para sua resolução. Não só porque ela toca nos fundamentos do capitalismo, enquanto nesta crise financeira não estamos a por em causa um certo tipo de capitalismo, o neoliberal, que se propôs desvencilhar do Estado, e que em momentos de crise volta ao útero do Estado.

Temos outra crise mais profunda, que atinge a todos nós, na medida em que ela, como no aquecimento global, como em todas as crises que decorrem dos limites ambientais desse tipo de desenvolvimento, vem de nossos próprios hábitos do cotidiano. São os nossos carros, o nosso conforto, daqueles privilegiados no mundo que têm acesso a esses bens.

Eu penso que o capitalismo vai entrar numa crise civilizacional. E essa vai se manifestar de diversas formas, algumas das quais estamos a ver. É muito difícil de ver qual o tipo de crie. Já muitas vezes foram anunciadas as crises finais de capitalismo, que afinal não foram. A questão ambiental tem tantos prolongamentos. Ao nível da questão social, das pandemias, da fome, da seca, das mudanças climáticas. Eu prevejo que aqui haja uma maior turbulência porque a articulação sistêmica que pode impedir que isso ocorra é muito mais complicada.

Com a crise, o governo Lula isentou os carros do IPI, e também produtos da construção civil, como o chuveiro elétrico. Se houvesse uma mudança de viés de desenvolvimento, haveria um estímulo à produção de aquecedores solares para as residências, por exemplo. Como o senhor vê a questão ambiental no governo Lula? Ele está perdendo a chance de mostrar ao mundo que o Brasil poderia ser uma potência ambiental?

A política ambiental deste governo é um desastre. Isso nota-se pela sucessão dos ministros do Ambiente. Este que está agora (Carlos Minc), também já em dificuldades, e sendo uma pessoa muito mais tolerante para o tipo de desenvolvimento atento na idéia do agronegócio, com todas as suas consequências ambientais. Ele próprio sente dificuldades. Obviamente que a ministra Marina Silva teve muito mais dificuldades. Portanto, eu penso que tem sido realmente um desastre. E isso se intensificou ao longo dos anos.

O governo Lula ficou preso a um desenvolvimentismo que já não é o do século XXI. Por exemplo, poderia ter apostado nas energias renováveis. Ao invés disso, aposta no agrofuel, que não é biofuel. Não tem nada a ver com biologia, com a preservação do meio ambiente, ao contrário. É uma outra cultura de plantação. E entrou dentro da cultura genética dos líderes que neste momento governam o país. Num país com essa dimensão, com esta riqueza e com essa diversidade biológica, que tem uma responsabilidade mundial, eu penso que isso é um desastre.

O que está a passar na Amazônia é de proporções inadmissíveis. Nós estamos a assistir, ao contrário do que se diz, uma destruição da Amazônia, com crimes ambientais a ponto de criar a destruição do encontro das águas. Há realmente uma cultura desenvolvimentista, que no meu entender está a minar toda aquela potencialidade de esperança que o Brasil veio trazer ao mundo, no momento em que resolveu ter uma liderança regional, e eventualmente global, ao lado de Rússia, China e Índia (BRIC). É bem que o sistema se torne policêntrico, é mal se esses países, ao entrar, venham a reproduzir o pior do sistema

Apesar da questão ambiental, Lula está fazendo um bom governo?

É um bom governo porque tem um alto nível de aceitação. Beneficiou-se obviamente do carisma de Lula, que desfez todas aquelas idéias estereotipadas que havia no tempo do Fernando Henrique Cardoso, de que a esquerda é burra, que um metalúrgico não pode governar o país. Ele pôde governar o país, atrás de uma conjunção de razões externas e internas que foram muito favoráveis. Foi muito favorável o desenvolvimento da China.

Ao nível interno houve algumas políticas que tiveram um efeito redistributivo. Não só sistemas de ação afirmativa, obviamente foram criadas formas de acesso à universidade pública, mas principalmente o Bolsa-Família. Foi ele que alimentou o mercado interno que veio acabar por ser uma almofada de proteção contra a crise financeira. Este governo tem coisas muito positivas do ponto de vista social. Soube distribuir uma migalha a populações que estavam muito desprovidas. Mas permitiu que o capital financeiro, sobretudo o capital agrário, tivesse as possibilidade de lucro como nunca tinha tido no passado.

O Brasil está pronto para ter uma mulher na presidência?

Eu penso que a Dilma está obviamente. Não sei se a Dilma é realmente a candidata ideal da esquerda. Se estivesse no Brasil eu teria outros candidatos. Mas é a candidata que vamos ter, aparentemente. É uma incógnita para todos saber em que medida o peso e a aceitação que o presidente Lula tem hoje se pode transferir para o apoio à candidata Dilma. É problemático, é uma grande jogada de grande risco da parte do presidente Lula. Mas acho que seria muito bom para o Brasil ter uma mulher como presidente.

Quem seria o melhor candidato para o senhor?

Obviamente, Tarso Genro.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Os blogs – Entre clavas da justiça e mordaças



George Gomes Coutinho

Os blogs em sua diversidade normativa, com a conseqüente pluralidade de temas e posturas derivadas, representam eletronicamente aquilo que é encontrado na própria modernidade. Não há um pensamento único. Não há uma única fonte interpretativa. E todo tipo de tentativa de construção narrativa em caminho oposto deve ser vista sob o signo da mais pura desconfiança. As perigosas fontes do fascismo, que demarcam anacronicamente a reivindicação de elementos de verdade/validação valorativamente únicos, estão aí nos umbrais a nos espreitar.

Todavia desde ontem a maioria intrinsecamente plural do conjunto de blogs que constitui a rede campista, mesmo em sua diversidade, apresentou uma voz em uníssono. Motivados pela ação judicial contra o professor Roberto Moraes do Instituto Federal Fluminense impetrada pelo grupo “Folha” de Campos dos Goytacazes, onde há maiores explicações aqui e aqui, os autores da rede de blogs, justificadamente com virulência, bradaram contra o que interpretam como uma tentativa de censura do grupo de comunicação à liberdade de expressão. Neste ínterim o jornalista Vitor Menezes, um dos urgentistas, revela no espaço público virtual que também sofre uma ação judicial movida pelo mesmo grupo (ver aqui).

Antes de qualquer coisa afirmo minha concordância com o diagnóstico dos colegas blogueiros e identifico um indefectível traço de mordaça nas duas ações. Mas, como é praxe, decidi problematizar um pouco.

Como eu mesmo ventilei alhures, acredito piamente que vivemos um outro momento das tecnologias de informação com uma descentralização sem paralelo dos meios de comunicação. Nem regimes fechados tem obtido eficiência absoluta do controle contra os diversos meios disponíveis, vide a denúncia das irregularidades nas últimas eleições iranianas que giraram o mundo até mesmo pelo Twitter. Esta, portanto, é uma tendência incontornável e devemos compreender que meios de regulação que não compreendam a acelerada dinâmica destas vias estão fadados ao fracasso. Nestes termos saúdo os debates no legislativo sobre a entrada da internet como meio lícito e lucidamente regulado, ainda que experimentalmente, nas próximas eleições brasileiras. A entrada deste debate na agenda política “tradicional” ou “formal” mostra o reconhecimento destes grupos dos potenciais ainda inexplorados da grande rede em uma realidade de constituição tardia e incompleta da esfera pública.

Portanto isto implica que não estou incentivando o uso leviano e/ou difamatório dos blogs ou da internet como um todo em um sentido político. Eu particularmente acredito que seja desejável uma minima moralia, uma "pequena moral", como ironicamente Adorno fez alusão a Aristóteles e a sua Grande Moral. A “pequena moral", nos blogs independentes, deve perpassar um pequeno conjunto de procedimentos básicos em prol da livre e irrestrita circulação de idéias que possa estimular amplos debates.

Neste espírito reprimi o que considerei a demonstração de devaneios narcisistas que obscureciam os debates em prol do bom desenvolvimento dos mesmos. Todavia jamais poderia ser favorável a um uso despótico dos blogs enquanto meio, onde se obscureçam elementos importantes e pertinentes ao esclarecimento de elementos que dizem respeito à vida dos cidadãos. Nestes termos, a exigência de supressão de informações na ação movida pelo grupo “Folha” de Campos dos Goytacazes implica um ataque frontal ao direito de livre informação dos cidadãos. E igualmente um insulto àqueles que ambicionam trazer elementos da sociedade civil, e para esta, visando deflagrar fluxos comunicativos e a reflexividade necessárias para este exercício cotidiano de construção pari-passu da esfera pública.

Não soa como algo exatamente chocante o uso do direito em um sentido autoritário em nossa realidade. O corpus jurídico é dúbio,mais ainda na realidade periférica, sendo não poucas vezes utilizado como via de referendar os caprichos e desejos particularistas dos “sobrecidadãos” descritos pelo jurista/sociólogo Marcelo Neves. Aos “subcidadãos”, o outro lado da medalha, cabe a única relação possível: a violência do aparato coercitivo estatal.

De toda forma recomendo a retirada imediata das ações judiciais impetradas contra Roberto Moraes e Vitor Menezes. Estas são máculas inaceitáveis para um grupo de comunicação digno deste nome, onde detecta-se um lastro autoritário simplesmente inviável de ser mensurado e representa, anacronicamente, a manutenção das tradições de intolerância e censura que encontram-se na via oposta do Estado democrático de direito. A retirada das ações implica um gesto elegante de reparação aos danos provocados.

Todavia considero que temos aqui um divórcio insanável. Nós, os organizadores da cultura, como diria o comunista sardo Antonio Gramsci, assim como os produtores diretos de bens simbólicos de toda ordem, precisamos tanto da livre circulação de informações quanto as plantas necessitam de solo e água para seu desenvolvimento. Difícil não reconhecer que, como cientista social e defensor do mais amplo e irrestrito aprofundamento das liberdades democráticas, nos encontramos em lado oposto ao do grupo Folha. E nestes termos apóio irrestritamente as justas sanções que se façam necessárias. Mas, de forma diversa ao que procede usualmente no referido jornal, garanto que se houver o desejo de manifestação de uma contra-versão dos fatos este espaço está democraticamente garantido. Pois é nas esferas de produção e circulação de comunicação que estes elementos devem ser apresentados. E não em mais este lamentável episódio de judicialização absolutamente negativa das relações sociais.

domingo, 9 de agosto de 2009

Quem é o inimigo?: novo blog busca colaboradores

por Djamilla Olivério &

Roberto Torres

Este pretende ser um blog com intencao política: definir quem sao os inimigos do povo brasileiro. Povo aqui sao todos aqueles cujas vidas nao podem ser trilhadas na base de privilégios herdados: os pobres que anseiam uma vida menos sofrida e menos humilhante, sem muita esperanca de deixar de fato a pobreza, e os trabalhadores pobres que sobem na vida sem poder entrar na complexa rede de privilégios dos estabelecidos. Numa „sociedade competitiva“ como a nossa, privilégios sao oportunidades economicas e edudacionais transmitidas em segredo entre uma minoria, criando um grave paradoxo dentro de uma sociedade que se diz democrática: o modo de vida dos que representam o país como classe dominante é valorizado como algo que nao pode ser desfrutado por pessoas comuns. A classe dominante nao acredita nos ideais que ela prega através da mídia para os outros. A boa vida consiste em desprezar tudo que nao seja exclusivo. A „boa nova“ nao pode ser transmitida para quem teve o azar de nascer do „lado de lá da vida“.

A atividade política pode ser dividida em duas dimensoes fundamentais: a profecia e a estratégia. Como profecia a política é o esforco de imaginar e caminhar rumo a um outro mundo, a uma outra forma de vida comum capaz de contemplar intesses ainda ignorados. Sem profecia, a política é amesquinhada na reproducao indefinida dos interesses vigentes, sem crédito dos excluídos, que nela nao veem nenhuma saída, e sem crédito dos incluídos, que nao querem que uma alternativa ao regime de privilégios seja sequer sonhada.

A ditadura da falta de alternativas desqualifica todo tipo de profecia como delírio e atrevimento de quem busca aventuras que nao valem a pena. O procedimentalismo instituído (a máxima de que devemos preservar as instituições) precisa destruir o poder da lideranca carismática para impedir que a simbiose entre os liderados e o líder produza um discurso capaz de se impor na vida democrática. A primeira grande batalha para que a democratizacao signifique mudanca é reagir ao poder da opiniao pública instituída que tenta calar as vozes que ela nao pode dirigir. A mídia hegemonica e seu público é o autoritárismo privado que deseja manter a heranca do autoritarismo público do regime militar.

Precisamos de uma imaginação de mundo que encontre no presente tanto as prefigurações do novo como a forca viva do autoritarismo conservador. Aí surge a outra dimensao da política, a estratégia. As forcas sociais que podem sustentar o surgimento do novo tendem a estar mais desarticuladas, e seu interesse no novo é um fato a ser construído pela credibilidade da profecia. Já as forcas sociais que sustentam o regime de privilégios reagem com muito mais coesao a tudo que possa ameacar o seu mundo, pois sao o produto deste mundo de privilégios. A política como estratégia é a tentativa de mostrar para o público desarticulado dos "sem privilégio" que existe uma forca articulada que é eficaz em defender os seus privilégios. Este blog quer ser um espaco para definir, redefinir, discutir como vive e funciona a forca social interessada em manter o mundo de privilégios no Brasil, ou seja, o inimigo de todo e qualquer projeto popular.

O Brasil é complexo, e os "sem privilégio" nem sempre percebem e sabem que estao do mesmo lado, de modo objetivo. Existem duas classes sociais que nao participam da rede de privilégios, da "Franca tropical" que é o Brasil para os herdeiros legítimos de uma certa classe média estabelecida: 1) a ralé de indivíduos pobres que no máximo conseguem levantar a cabeca para o alívio relativo de viver uma pobreza menos humilhante, menos expostos ao aguilhao da fome. Estao completamente alijados de sucesso escolar, economico, influencia política, e vida afetiva livre de necessidades imediatas. Depois 2) os trabalhadores pobres "batalhadores", indivíduos e famílias que conseguem uma estratégia minimamente bem sucedida para planejar o futuro, estimular o sucesso dos filhos e constuir a identidade a partir de um interesse moral no trabalho e nas relacoes de confianca e afeto. Os primeiros sao aqueles a quem grande parte da classe média estabelecida acha um absurdo o Estado assistir com menos de 200 reais por mes para a satisfacao das necessidades básicas através do Bolsa Família. Os vê como preguicosos, acomodados. Um estorvo que, no fundo, só deveria existir para fornecer empregadas domésticas e prostitutas. Os segundos, embora tendo sucesso na escola, no trabalho duro e honesto, é o sucesso incomodo para a classe média, que possui mencanismos para evitar que este sucesso chegue às posicoes sociais de maior prestígio e influência. A ascencao social dos pobres é vista como a aparicacao dos brasileiros que os legítimos estabelecidos nao querem convidar para seus círculos e apresentar aos amigos de bom gosto. Nao frequentam as mesmas escolas, nao possuem o mesmo lazer e creem em deuses tidos como menos autenticos pelos que creem no dom legítimo do privilégio. O forte crescimento das igrejas evangélicas é o melhor exemplo de como os batalhadores vindos de baixo buscam construir uma cultura de classe que marca uma distancia consciente com o mundo de privilégios e prazeres da classe média estabalecida.

A questao é que esta cultura de classe dos batalhadores parece estar sendo insuficiente para perceber que o privilégio que os separa da classe média estabelecida é mais nocivo para seus interesses do que a assistencia que o Estado pode dar ao núcleo duro da pobreza. É frequente se manifestarem contra o Bolsa Família, em nome de uma moral do trabalho que expressa a verdade cotidiana de seu modo de vida, mas que é uma mentira quando vem da boca dos privilegiados de sempre.

Hoje, a mudanca social que pode transformar radicalmente a estrutura da sociedade brasileira só pode acontecer se esta classe de batalhadores em ascencao perceber que o inimigo que vive do privilégio Estatal e privado, da rede que perpassa mercado e Estado, nunca foi e nem será a ralé do Bolsa Família, mas a grande parcela da classe média estabelecida que produz e consome a opiniao pública liberal que acusa o Estado e os "senhores feudais do Maranhao" para esconder o poder de sua complexa oligarquia. É preciso mais do que nunca identificar e investigar o inimigo político de todos que desejam um país onde ao menos deixe de ser natural a heranca de classe definir quem é gente e quem é instrumento e lixo de gente.

Partimos de tres pressupostos, que podem ser revistos ou nao ao longo da empreitada aqui proposta: 1) que esta forca social nao pode ser definida nem como os "políticos de brasília", os "senhores feudais" que a revista Veja aponta como o inimigo; e nem 2) como os grandes empresários e especuladores que se reuniriam com os políticos para montar uma rede simples e pequena de privilegiados. Esta forca do privilégio tem a participacao de políticos, empresários e especularodes, mas sua vitalidade nao é a soma da forca de cada um destes atores. A vitalidade da forca que mantem o privilégio é mais complexa do que isso e também é capaz de incluir um público que quase nunca se encontra com empresários, políticos ou especuladores. É um público que recebe os privilégios acreditando que se trata de mérito e que encontra na opiniao publicada da imprensa hegemonica o seu maior meio de aderir à rede complexa, impessoal, dos privilegiados. Mas os mecanismos que dao coerencia e forma a esta rede impessoal de privilégios sao se resumem à imprensa. Eles perpassam toda a vida cotidiana, de modo muito sútil e discreto ao olhar desatento. Mas, 3) apesar de nao ser "tramado de cima", existe, por parte dos privilegiados, um forte interesse em manter a rede de privilégios. Este blog quer ser um espaco para descrever e analisar os meandros do privilégio; nao somente os de Brasília, a ponta do iceberg. Mas tambem os de nossa cidade, nosso cotidiano, nossa escolas, nosso lazer, e, como interesses aparentemente díspares ou "inocentes", que sao trazidos nestes espacos cotidianos, se coordenam para manter a rede fechada.

Convidamos a todos os que tiverem o mesmo interesse a participarem desta empreitada. Antes de mais nada, ajudando a escolher um nome para o novo blog, que pretende se alocar na rede campista de blogs, mas que busca um alcance maior. Depois, para quem estiver disposto a escrever de vez em quando, a contribuir com textos, descriçoes, analises, cronicas, contos etc, sobre o modo de vida e meandros do privilégio de classe no Brasil. Penso, no enorme material que temos nos comentários de leitores da imprensa hegemonica, o que podemos selecionar de acordo com os temas ; nas experiencias de vida de cada um de nós; nos dramas dos privilegiados que a grande mídia exibe para produzir compaixao por parte dos dominados. Este nao é um trabalho para especialistas. Este é um trabalho para interessados, para quem tem vontade ao menos de mostrar quem sao como realmente vivem os que nao precisam de nenhum esforco para ganhar a vida neste país.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A MÁ-FÉ DO SISTEMA DE SAÚDE EM CAMPOS

Fabrício Maciel
Acabo de sair de uma gripe daquelas. Com medo de ser a suína, corri para os hospitais de Campos. Fui direto no Ferreira, por toda a fama dele. Lá, os funcionários nada sabiam. Depois de algum tempo e um bate-boca básico, alguém chamou um médico que estava praticamente atendendo as pessoas na porta do hospital. Havia um rapaz visivelmente bem pior do que eu. O médico deu uma olhadinha rápida nele e disse: "é melhor vc ficar em casa se tratando por que aqui não temos leitos e a possibilidade de vc piorar é maior". Espantado, fui parar nos Plantadores, onde disseram haver o teste da gripe suína. Havia, mas nao naquele momento, era fim de semana. Como se a doença tivesse descanso. Disseram para ir ao PU da Saldanha Marinho. Nada sabiam por lá também. Aliás, no jogo de empurra básico, disseram que no Ferreira resolviam... Fui parar no HGG. Neste até fui atendido, mas depois de duas horas esperando fui embora. Achei melhor morrer em casa como o médico havia sugerido.
Alguns dias antes, eu havia me consultado no Hospital da Unimed, supostamente de classe média. Mas em Campos é igual a qualquer outro. Qualquer piada do Casseta e Planeta sobre planos de saúde precisaria ser exagerada aqui. Até o de Caruaru, no interior do Nordeste, é melhor do que o daqui. Fiquei aqui umas duas horas para uma consulta e Raio X. E não fizeram nenhum exame.
Bem, não estou contando muita novidade aqui para um bom leitor campista. Em época de novo vírus, o descaso com a saúde do campista continua. Jessé Souza e seu grupo de pesquisa denominam esta situação como má-fé institucional. Isto significa que as instituições modernas possuem uma função manifesta, no discurso, e outra latente, na prática, que geralmente distinguem classes sociais de acordo com seus valores objetivos na sociedade do mérito. Geralmente a ralé é quem mais sofre nas instituições públicas, e ainda mais quando a sobrevivência imediata do corpo está em xeque.
No entanto, toda a população paga numa circunstância como essa, onde o vírus não escolhe cor, gênero ou classe social. Toda a sociedade é nivelada por baixo quando temos instituições que desprezam o bem estar da população. Um dos fatores desta realidade sem dúvida deriva do velho problema de administração e boa vontade política, ou poderíamos dizer, boa fé. Quero declarar aqui uma nota pública de desprezo pelo desprezo da administração da saúde pública em Campos. Numa cidade rica de tantos royalties, é um vexame público um cidadão visivelmente doente ser incentivado a voltar para casa. Ou ficar duas horas no HGG como fiquei, onde só tinha um médico de plantão para tudo, emergência ou não. Isso é um vexame público, que me faz como intelectual sentir vergonha desta cidade.
Enquanto isso, nossa prefeita está inaugurando escolas, que parece dar mais visibilidade. Se houvesse pelo menos inteligência governamental, não precisaria nem haver boa vontade para com o povo, mas pelo menos noção administrativa, se faria neste momento uma política totalmente voltada para saúde pública. Algo do tipo: "nenhum campista morrerá de gripe suína". Seríamos exemplo para outras cidades, apareceríamos bem no Jornal Nacional. Teríamos orgulho desta cidade. Isso deveria ser a pauta do dia. Mas não, é mais fácil aparecer como mais uma cidade onde houve uns quatro ou cinco casos, como se isso fosse pouco.
É claro que a mídia exagera, que outros tipos de vírus sempre mataram e os números são omitidos. Os médicos que vi tentam amenizar sua debilidade coletiva com tais discursos. Isso não justifica a debilidade geral do sistema. Uma política de saúde totalmente nova, com recursos e acompanhamento profissional é urgente. Talvez uma estatística um pouco diferente seja possível.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Adiamento do início do semestre na UFF-Campos

Prezad@s,

Divulgo informações que recebi das professoras Ana Maria da Costa e Isabel Cristina Chaves Lopes. A UFF Campos, onde há expectativa sobre o início dos novos cursos na cidade, também fará o adiamento do seu início de semestre. Notem que na UENF tanto a pós quanto a graduação igualmente aguardam a decisão de um novo calendário para igualmente iniciarem o seu semestre.

As ciências humanas recomendam a análise de qualquer fenômeno ex post facto, vide a famosa e bela metáfora da coruja de Minerva hegeliana. Este é o momento mais adequado e seguro para se fazer um balanço de qualquer fenômeno. Mas, há eficácia de fato nessas medidas adotadas? É possível conter algo que se recusa a atender parâmetros normativos?

E mais.. quando a imprensa divulgará algum quadro comparativo sobre a letalidade de outras doenças igualmente infecto-contagiosas em comparação com a mortandade real provocada pela H1N1? Se não a imprensa... quando as autoridades sanitárias o farão?

Mesmo recomendando a análise ex post facto neste momento me parece que a maneira com que está sendo conduzida esta questão é carregada de equívocos, em que há tanto a disseminação do pânico quanto a desinformação histérica... Afinal, quem constitui o "grupo de risco"? As faculdades privadas, que operam na lógica de proletarização docente, também irão adiar os seus semestres?

De toda forma eis o informe oficial da UFF:


UFF-Campos adia retorno às aulas

O Polo da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Campos, decidiu adiar a volta às aulas, que estava inicialmente marcada para acontecer na próxima segunda-feira, 10 de agosto. A decisão se deve ao surto da nova gripe e foi tomada após ouvir especialistas e autoridades do setor de Vigilância Sanitária do Estado e do Município. Em princípio, as atividades acadêmicas estão suspensas por uma semana, mas, na quarta-feira, dia 12, a direção da universidade realizará nova reunião para avaliar a evolução ou regressão da doença e o possível retorno das aulas no dia 17 de agosto.

A programação inicial com Aula Magna e palestras, elaborada para ser incrementada na semana de 10 a 14 de agosto, a UFFesta de confraternização entre os calouros e a mesa redonda com lideranças do movimento estudantil Nacional e regional, marcadas para os dias 20 e 21 de agosto, assim como as atividades da Uniti, também estão momentaneamente adiadas. Os interessados em acompanhar o desfecho desse processo podem acessar o site da UFF: www.proac.uff.br/campos ou www.uf.br.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A Crise da Mídia e a Democracia
Emir Sader

A inquestionável crise da mídia brasileira se choca com um processo de maior democratização da sociedade brasileira o que, por si só, deveria levar a pensar o caráter tanto da imprensa no Brasil, quanto da própria democracia entre nós.

O que está em crise é a forma de produzir notícias, a forma de construção da opinião pública. Seria grave se a dimensão da crise que afeta a mídia refletisse, nas mesmas dimensões, a democracia no Brasil. Ao ler alguns órgãos da imprensa, pode-se ter a impressão que a democracia retrocede e não avança entre nós, que estamos à beira de uma ditadura, ao invés de um processo — lento, mas claro — de democratização da sociedade brasileira.

Cada classe social toma sua decadência como a decadência de toda a sociedade, quando não de toda a humanidade. Neste caso, é uma casta que controlou a formação da opinião pública, de forma monopólica e que, com isso, se considerou depositária dos interesses do país. Derrubou a Getúlio, contribuiu decisivamente para o golpe militar de 1964 e para o apoio a este, uma parte dela tentou desconhecer a campanha pelas eleições diretas, tentou impedir a vitória de Brizola nas primeiras eleições diretas para governador do Rio de Janeiro, apoiou a Collor, esteve a favor de FHC, a ponto de desconhecer a evidente corrupção presente nos escândalos processos de privatização, na compra de votos para a reeleição, entre tantos outros casos. Agora, se coloca, em bloco, contra o governo Lula, o de maior popularidade na história do Brasil, chocando-se assim flagrantemente com a opinião do povo brasileiro.

A mídia tradicional está em crise, a democracia brasileira, não. Porque se amplia significativamente o circulo de produção de opinião, de difusão de noticias, se democratiza a informação e os que são afetados pelo enfraquecimento do seu monopólio oligárquico — em que umas poucas famílias controlavam a mídia — esbravejam. Tentam impedir a realização da Conferência Nacional de Comunicação, convocada para dezembro, porque detestam que se debata o tema da democracia e a mídia.

A crise do poder legislativo é parte do velho poder oligárquico, que sobreviveu na passagem da ditadura à democracia, que se vale do fisiologismo para vender seu apoio aos governos de turno. Não por acaso os mesmos personagens envolvidos nas acusações atuais no Congresso apoiariam ao governo FHC e, com o beneplácito da mídia, foram poupados das acusações agora dirigidas contra eles, na tentativa de enfraquecer a base de apoio parlamentar do governo. Enquanto o Brasil se torna mais democrático, com a promoção social de dezenas de milhões de famílias, a estrutura parlamentar reflete o velho mundo oligárquico, similar ao da propriedade da mídia privada.

No momento em que o Brasil precisa de uma nova mídia, uma nova forma de difundir notícias, de promover o debate econômico, político, cultural, a velha mídia resiste em morrer, em dar lugar à democratização que o Brasil precisa. Sabem que a continuidade do governo atual e o aprofundamento dos processos de saída do modelo herdado do governo FHC sepultarão toda uma geração de políticos opositores — derrotados pelas urnas e/ou pela senilidade. Daí seu desespero na luta contra o governo — que conta com 6% de rejeição a Lula, contra 80% de apoio.

A crise da mídia é outro reflexo do velho mundo que desmorona, para dar lugar à construção de um Brasil para todos e não para as elites minoritárias que historicamente o dirigiram.