Liberdade, Igualdade, Fraternidade — a tríade clássica da República nascida com a Revolução Francesa de 1789 continua a ser iluminadora para pensarmos a nossa república bem como a situação brasileira atual, especialmente motivados pela comemoração dos 120 anos de instalação do regime republicano entre nós. Mas a nossa referência aqui deve ser mais ampla e parte do princípio de que uma expressão real daquela tríade em uma determinada situação histórica garantiria o estabelecimento de uma “república democrática”, atestando que tal sociedade estaria a viver sob instituições e animada por uma cultura política democrática digna desse qualificativo. Infelizmente não é essa a situação brasileira, ainda que na atualidade estejamos seguindo um curso alentador naquela direção, a despeito de todas as nossas dúvidas, críticas e inseguranças. Depois de ultrapassarmos os pesados anos do autoritarismo, de estabelecermos as grandes referências para o exercício de uma cidadania moderna entre nós, com a promulgação da Constituição de 1988, e de conseguirmos vencer as complicadas teias da inflação e da estagnação econômica, a sociedade brasileira dá mostras efetivas de que pode ser capaz de avançar rumo a uma república efetivamente democrática, mas sabe que há ainda um longo e complicado caminho a seguir.
De maneira provocativa, a reflexão que segue está concebida a partir da hipótese geral expressa na fórmula: livres como nunca, desiguais como sempre, porém mais fraternos. Nela, mais do que as contingências que marcam as conjunturas políticas atuais, interessa-nos o fio condutor de crenças e sentimentos que movimentam, legitimam e influenciam a consciência e as decisões tomadas pelos cidadãos. Trata-se, pois, de uma reflexão em torno da dimensão simbólica da sociedade brasileira, em torno de como pensamos e de como agimos politicamente ao reconhecermos e interagirmos com os principais componentes da tríade republicana. Nossa hipótese parte do seguinte pressuposto: se a democracia parece-nos inconclusa e incompleta — talvez porque, de alguma forma, ela sempre o será —, especialmente na sua dimensão social, a nossa república, a despeito de todas as nossas incertezas, parece viver um momento de vigorosa ampliação, dando sinais de que acompanhará, ainda que não no mesmo ritmo, os passos do exitoso movimento de estabelecimento das bases materiais proporcionada pela dinâmica do capitalismo que aqui vem se estabelecendo. Conscientemente ou não, nós brasileiros avançamos para uma situação na qual, repito, somos livres como nunca, ainda que desiguais como sempre, porém mais fraternos. Esses são os termos na nossa hipótese.
A questão central dessa reflexão pode ser colocada a partir do seguinte ponto. Utilizando os critérios do cientista político Zander Navarro (2009), haveria três dimensões importantes na composição de uma “democracia ampliada” — isto é, de uma república democrática, no sentido que estamos usando aqui — que se deveria pensar para definir o lugar alcançado por uma sociedade em termos democráticos. A primeira dessas dimensões seria o pluralismo, garantidor das liberdades individuais e civis, assegurando aos cidadãos tolerância e diversidade, em todos os sentidos. A segunda seria o civismo, que visa construir uma cidadania bem formada, consciente e exigente. Enraizado na prática social, o civismo daria uma consciência tanto de direitos quanto de deveres, conduzindo os cidadãos, de acordo com Navarro, à “pujança democrática”. A terceira seria o plebeísmo, responsável pela inclusão cada vez mais progressiva de indivíduos na esfera político-social dos direitos.
As possibilidades de combinação dessas três dimensões são infinitas, o que torna algumas sociedades mais plebeias que cívicas, outras menos cívicas que plurais e assim por diante. É isso que explicaria as diferenças de níveis e de qualidade das democracias contemporâneas. Como se articulariam então essas três dimensões na atualidade brasileira? Pode-se concordar com Navarro em que o Brasil é uma democracia na qual o pluralismo é “vibrante e forte”, ainda que o civismo e o plebeísmo padeçam de anemia e desfiguração. Das elites aos pobres, as condutas cívicas são, em geral, deploráveis, e, por outro lado, nosso plebeísmo arrasta-se de maneira errática, sendo mais objeto de marketing político do que uma realidade em verdadeira e real expansão. O Brasil continua um campeão na extrema concentração de renda como atestam os últimos índices: cerca de 1% dos brasileiros mais ricos (1,7 milhão de pessoas) detêm renda equivalente à dos 50% mais pobres (86,5 milhões). Assim, conclui Navarro, mesmo que “os níveis de pobreza venham caindo, a desigualdade social parece uma rocha irremovível”.
E, mesmo que seja assim, sabemos que a ênfase na resposta a respeito do grau ou da qualidade da democracia brasileira não é capaz de equacionar todas as questões a respeito do pacto republicano que foi se sedimentando entre nós. São dimensões que se cruzam, mas não são necessariamente as mesmas. Assim, da tríade republicana, o avanço seguro que a sociedade brasileira deu nas ultimas décadas foi efetivamente em relação à liberdade, enquanto a igualdade permanece problemática, e a fraternidade — uma dimensão esquecida na maior parte das sociedades ocidentais — até bem pouco tempo sequer figurava como uma dimensão digna de nota.
Nossa república guarda traços bastante particulares, e aqui vamos explorá-los sumariamente. Como se sabe, a construção da “coisa pública” entre nós se fez no mais das vezes sem afirmar a “linha ascendente” de direitos, dos civis aos sociais, passando pelos políticos. Em alguns momentos da nossa história eles se invertem, em outros, alguns deles foram suprimidos, especialmente os políticos, num processo nem sempre fácil de reconhecimento. Inicialmente oligárquica, nossa república viveria um processo importante de ampliação de corte autoritário a partir da década de 1930, que marcaria sua trajetória até os dias que correm. Extremamente paradoxal, o caminho para a construção da nossa república democrática é, assim, bastante complexo e, no mais das vezes, pouco compreendido. A conexão entre modernidade e caminho democrático é algo que não fez parte da nossa construção republicana, a não ser em poucos e determinados momentos, mesmo que tenha apenas visitado a imaginação criadora dos nossos intelectuais e políticos mais vocacionados a enfrentar tal desafio. Poderíamos dizer, com Luiz Werneck Vianna, que o processo político que constrói o Brasil moderno se caracteriza por uma “ampliação autoritária da República”. Para esse autor, o Estado Novo varguista pavimentou, de fato,
[...] o caminho para a modernização econômica do país, assim como refundou a República, “ampliando” o escopo do Estado a fim de abrigar os novos personagens sociais nascidos do mundo urbano-industrial. Mas o preço da modernização autoritária e da “ampliação” por cima da cidadania importará a perda de autonomia da sociedade quanto ao Estado e uma herança do autoritarismo político a pesar sobre a nossa história republicana — como no regime do Ato Institucional n. 5 de 1968, que obedeceu, em linhas gerais, ao seu modelo —, deixando para trás, como um elo ainda a ser retomado, mas já facultado pelas instituições da Carta de 1988, as fecundas possibilidades, entrevistas na década de 1920, de um alargamento do pacto republicano sob condições democráticas (Vianna, 2001: 152).
Nossa república não se instalou nem ganhou os corações e as mentes dos brasileiros pela adoção de condutas e métodos da democracia política. Não conseguimos “conciliar política democrática com sociedade democrática”, isto é, a “vigência de um sistema de governo baseado em ampla representação e exercido em ambiente de liberdade”, com uma sociedade na qual “as desigualdades sociais são reduzidas e em que há uma ampla mobilidade social”, na síntese muito bem formulada por José Murilo de Carvalho (2002). Por essa razão, há uma fratura entre democracia política e democracia social em nossa trajetória, que passou a ser colocada em questão no período mais recente de superação do regime autoritário no Brasil.
Nas últimas décadas, é inegável que a sociedade brasileira vem demonstrando disposição no sentido de encontrar um novo caminho para a construção democrática da nossa República. Nos dias que correm, parece aprofundar-se, entre os brasileiros, a consciência de que o esforço de cada um e da sociedade em seu conjunto para enfrentar esse desafio depende de como se comportam os indivíduos e as instituições públicas. Essa nova situação evidencia a necessidade cada vez mais presente de consolidação de uma nova cultura cívica valorizadora do espírito público, da conduta republicana, do respeito à lei e aos direitos individuais e coletivos.
Mas essa vontade difusa não é capaz de se fazer valer integral e definitivamente. Pesam sobre ela o movimento dos atores políticos, a força das instituições e os valores assentados na vida sociocultural. Há, portanto, uma história política e cultural que atravessa o âmago desse desafio. Mesmo que em nosso país não se tenha reproduzido um cenário histórico similar ao da Revolução Francesa de 1789, não estivemos isentos da influência marcante da tríade republicana nascida nesse evento histórico. Nossa referência de valores políticos e culturais foi a europeia, marcantemente francesa e, por extensão, ibero-americana, sem nenhuma rejeição, contudo, da influência anglo-saxônica, particularmente norte-americana, mesmo que tais influências tenham sido vistas de maneira polarizada e, em alguns casos, até mesmo antagônicas.
Essa disjuntiva é decisiva quando examinamos o tema da república, e é a partir dela que começamos a desenhar a nossa hipótese. Deve-se anotar, antes de mais nada, o fato de que o republicanismo norte-americano, nascido com sua revolução de independência, em sua versão conservadora ou democrática, não necessitou mobilizar a tríade republicana na sua integralidade. Como afirma John Rawls:
Comparando liberdade e igualdade, a ideia da fraternidade teve um lugar menor na teoria democrática. Foi concebida para ser um conceito politicamente menos específico, que não define por si mesmo nenhum dos direitos democráticos, mas que canaliza precisamente determinadas atitudes mentais e formas de conduta, sem as quais perderíamos de vista os valores que são expressos nos direitos (2008: 125).
Nosso argumento se desenvolve no sentido de mostrar a distintividade da realidade brasileira diante da teoria democrática formulada a partir dos fundamentos expostos acima por Rawls. No interior da tríade republicana, parece-nos que, entre nós, há algo que faz transbordar o liso equacionamento liberal anglo-saxônico que solda o nexo entre liberdade e igualdade: trata-se da noção de fraternidade. É em torno dela que nos parece importante afiarmos nossa reflexão para jogar alguma luz no entendimento da nossa atualidade e buscar compreender a emergência de uma cultura política que tem demonstrado capacidade para dar sustentabilidade ao governo atual, bem como um nível de apoio jamais visto à sua liderança maior, garantindo-lhe tão extraordinária quanto aparentemente indestrutível popularidade.
A noção de fraternidade emergiu historicamente pela primeira vez em 5 de dezembro de 1790, na Assembleia Nacional Revolucionária, ao final de um discurso proferido por Robespierre no qual ele defendia a legitimidade de todos os franceses pertencerem à Guarda Nacional que então se reestruturava. A metáfora da fraternidade generalizou-se no processo da Revolução Francesa, ao cristalizar o fato de que se havia estabelecido uma luta frontal contra a loi civil vigente. E isso se faria combatendo o absolutismo, no plano da loi politique, e o domínio patriarcal, no plano da loi de famille. No plano político, as noções de liberdade e igualdade foram os valores predominantes na luta contra o absolutismo real, enquanto no plano da família será a questão da fraternidade entre os homens o móvel mais expressivo da mobilização dos franceses.
Esse é um aspecto relevante, uma vez que demonstra que o movimento da revolução atravessava a dimensão pública e penetrava a dimensão social e até mesmo privada da sociedade francesa da época. No contexto revolucionário de 1789, os pobres — aqueles que eram vistos pelas elites como a “canalha”, nas palavras de Marat — “queriam assumir, com plenos direitos, a condição de uma vida civil de homens livres e iguais”, em suma, a condição plena de cidadãos e, para isso, deveriam acabar com a “configuração senhorial, tutelar e paternalista característica da sociedade civil europeia do Antigo Regime” (Doménech, 2004: 13). A metáfora da fraternidade se tornaria efetivamente o móvel pelo qual o enigma da completude e da integridade da república seria enfrentado em contexto revolucionário e se generalizaria como uma cultura política pelos confins da Europa e da América Ibérica.
Mas aqui nos interessa enfatizar a seiva que a compõe. A fraternidade está essencialmente assentada na dimensão familiar e privada da vida e, a partir dos acontecimentos franceses, se torna um signo fortíssimo da cultura política republicana, mesmo que posteriormente ela tenha sido esquecida por revolucionários de todos os quadrantes e ideologias. Tratava-se de “emancipar” — mais uma metáfora da vida familiar — a população humilde das várias situações de dependência patriarcal. Emancipar-se significava irmanar-se com seus iguais em liberdade e direitos; emancipar-se, enfim, da dominação (que vem de domus, outra metáfora familiar) patriarcal, senhorial, privada, e irmanar-se na nação e na pátria (mais uma metáfora familiar). Assim, a fraternidade torna-se inexplicável sem a compreensão da luta e do avanço histórico que significou esse embate contra a sociedade senhorial do Antigo Regime europeu. Como se sabe, seguindo Alexis de Tocqueville, uma questão que a sociedade nascida na América do Norte não teve que enfrentar. E, por isso, como dissemos, o republicanismo norte-americano não tinha razões para incorporá-la em seu pensamento democrático. Também se deve notar que essa é uma distinção importante entre a revolução de Independência norte-americana e a Revolução Francesa, distinção mencionada de forma negativa por Hannah Arendt, já que, para essa autora, o ingresso da questão social, via manifestação de les malheureux na Revolução Francesa de 1789, acabaria por complicar e, em certo sentido, inviabilizar por muitos anos a conquista de um patamar expressivo e estável de liberdade e igualdade na França.
Pois bem, e o que isso tem a ver com a atualidade brasileira? A primeira observação é a de que, quase integralmente eclipsada em toda nossa história republicana, a metáfora da fraternidade invadiu o imaginário político da sociedade brasileira a partir da vitória eleitoral de Lula, em 2002, e teve condições de sustentabilidade tanto em razão da situação socioeconômica conquistada até aquele momento, quanto devido àquilo que se implementou em seguida como política social, soldando a figura e a liderança de Lula a esse avanço sem precendentes da nossa república. Haveria assim um movimento político-cultural de mão dupla a sustentar a emergência da fraternidade: ele é tanto uma representação que a sociedade constrói a respeito da ampliação dos direitos possibilitados pelo avanço da cidadania, quanto uma identificação promovida pelo poder de comunhão entre líder e massas, ambos num contexto democrático que não pode ser desconsiderado.
Nossa hipótese é que a cultura política que sustenta a altíssima popularidade de Lula está baseada nesse movimento. Com ele emerge a cultura política da fraternidade como um elemento integralizador da nossa república que, até o momento da transição democrática, havia sido sempre claudicante no que se refere à sua completude, recusando-se ou não sendo capaz de reposicionar, a partir da metáfora da fraternidade, os nexos entre liberdade e igualdade. O advento de Lula como presidente — por tudo o que ele é e representa — jogou a temática da fraternidade para dentro do processo de construção da nossa república. Mas houve ai uma astúcia digna de nota: Lula derivou de um quase assumido jacobinismo de sociedade civil para um moderantismo instrumental que joga de muitas maneiras com a problemática da fraternidade. O contexto democrático exige isso do ator e é, ao mesmo tempo, a suprema garantia para impedir devaneios de corte autoritário que rondam o personagem e seu ímpeto discursivo.
Apesar de não fazer parte do seu vocabulário (Kamel, 2009), ela é, contudo, central no seu discurso e um poderoso elemento de legitimidade política. Não é outra a razão para o discurso político lulista estar recheado de metáforas do mundo familiar e privado. Diuturnamente, desde que alcançou o poder, o presidente faz referências às figuras da família, nos filhos e na figura da mãe, realçando os sentimentos populares inclinados à ideia de irmandade. No seu discurso de posse, em 2002, esse chamamento não deixava dúvidas: “Os homens e as mulheres, os mais velhos e os mais jovens estão irmanados num mesmo propósito de contribuir para que o país cumpra o seu destino histórico de prosperidade e justiça”. Trata-se de um discurso no qual se objetiva ressignificar o país como uma “comunidade fraterna”, num contexto de democracia. Como um coroamento dessa estratégia, Lula aparece agora, ele próprio, como “o filho do Brasil”.
Outro elemento derivado da noção de fraternidade é a permanente oposição entre o “nós”, os irmãos, os pobres, o coração e alma do Brasil, e o “eles”, os “senhores”, os patrões, as elites, que nos governaram e nos dominaram por cinco séculos, embora seja forçoso reconhecer que aqui não se instalou e parece que não se instalará a disjuntiva amigo/inimigo, sob o critério da luta de classes, com sua consequente lógica de exclusão e supressão das liberdades. Assim, o discurso lulista não explicita um “pobrismo” de classe e, sim, uma operação simbólica eficaz que quer aludir à situação social geral dos brasileiros, dando-lhes esperanças de melhoria. Analisado esse discurso no seu conjunto, trata-se de uma ruptura — não revolucionária, é verdade — com a nossa trajetória republicana; mas também se trata de uma continuidade, já que estabelece um nexo com o nosso imaginário familiar e com a cordialidade brasileira que nos marca desde os tempos coloniais. A fraternidade lulista é vermelha (a cor do PT), mas ela é difusa. Certamente não é comunista e nem mesmo quer ser vista como de esquerda. Não é o Graal da utopia social, mas também não segue as frias linhas do interesse privado daquele “liberalismo dos de baixo” que frequentou a origem da sua trajetória. Amplia nossa república subordinando-se a processos políticos democráticos, socialmente pouco universalistas e estruturantes, mas está franqueada ao mercado e se sustenta numa legenda de estratégias inclusivas por meio de processos sociais moleculares de duvidosa eficácia.
A hipótese que aqui se levanta argumenta, portanto, no sentido de que todo o arcabouço conceitual até agora mobilizado para qualificar o “poderio” lulista tem se mostrado incapaz de formular uma síntese convincente. O qualificativo “populista” é flagrantemente débil. Ele não é mais do que jornalístico e essencialmente não corresponde às características e possibilidades institucionais da democracia brasileira da ordem constitucional de 1988. Além disso, peca por mobilizar um conceito fracassado na ciência social brasileira e latino-americana. Por outro lado, o estigma do catolicismo contradita a capacidade de ampliação e de diversificação na composição de seus apoios e de sua legitimidade. Assim, Lula também não pode ser visto como expressão do catolicismo de esquerda à Teologia da Libertação e tampouco como um personagem subalterno politicamente à hierarquia da Igreja Católica, como alguma vez se cogitou. Lula rejeitou a “política de rebanho”, optando pela valorização de cada individuo como pessoa, no plano societário, e, no plano político-cultural, adotou a perspectiva de uma revalorização da tradição republicana brasileira: um Brasil de todos, um Brasil da fraternidade, onde todos somos irmãos na democracia que construímos, mas sem estarmos subsumidos a uma definição ideológica distintiva. Por fim, a inclusão de Lula na “nova esquerda” também peca porque não é possível qualificar claramente esse “movimento” sem riscos profundos de avaliação. Lula não pode ser equiparado a Chávez, porque lhe é impossível aceitar e assimilar a beligerância política e ideológica com a qual o presidente venezuelano busca se legitimar todo tempo. Lula sabe que a sua legitimidade tem que passar pelo filtro das instituições da democracia brasileira e é nela que até agora tem apostado todas suas fichas.
Não há como não concordar que temos avançado muito em termos de liberdade. A igualdade se faz ainda merecedora de um projeto coletivo mais aprofundado e contemporâneo que possa ser assumido como uma grande política compartilhada por todos os brasileiros e produzir resultados duradouros. Nesse campo de expectativas, faz sentido o slogan do atual governo: “Brasil um país de todos”, ainda que não esteja assegurado que a “coisa pública” seja assimilada como uma dimensão afeta à responsabilidade “de todos nós”. Mas é precisamente a cultura cívica referente a esse “todos nós” que se apresenta agora como a grande questão da nossa república.
Com Lula, a metáfora da fraternidade é tanto uma representação que se construiu quanto uma identidade que se construiu. Daí a sua força aparentemente inquebrantável. Com ele, sem revolução, a tríade Liberdade, Igualdade, Fraternidade, mesmo que não integralmente, passou a fazer parte da nossa república pela primeira vez. Sob o contexto democrático que o condiciona, Lula procura mobilizá-la para encontrar a solda com a nossa tradição de modernização. Mesmo com todo seu “poderio”, movimenta-se como um equilibrista, muitas vezes à beira do vazio. Não foi o paladino da construção institucional da democracia brasileira das últimas décadas, mas se serve dela como se a fizera nascer. Para isso mobiliza o que nenhuma engenharia institucional é capaz de operar: um sentimento difuso de fraternidade do qual ele tem sido um protagonista convincente.
A fraternidade de Lula não é a mesma de Vargas, submetida aos ditames organicistas e solidaristas da ideologia nacional que dirigia o destino dos brasileiros como uma “comunidade fraterna”. Lula também quer o Brasil como uma “comunidade fraterna”, mas trata de ressignificá-la a seu modo, conformando-se ao contexto que lhe possibilitou a fortuna por onde se move, avança e busca politicamente se sustentar e se reproduzir. Tudo parece ser igual, mas não é. Na hipótese aqui desenhada há uma inovação em curso que precisa ser acompanhada atentamente e questionada de forma produtiva, para que não se fixe a máxima negativa que marca nossa tradição política na qual “tudo muda para seguir como antes”. Ao final de dois mandatos, haverá que se perguntar se esse importante avanço terá continuidade, garantindo, no seio da nossa república, isonomia aos componentes da sua tríade original. Incompreendida, a fraternidade estará subordinada e se perderá no jogo aritmético das eleições. Conspurcada, ela não passará de um joguete na composição da mitologia que se quer fabricar para o grande líder. Ambas as coisas não servem nem à democracia nem à república.
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Alberto Aggio é professor titular de História da Unesp/Franca.