domingo, 27 de junho de 2010

Democracia e exclusão política: Irã


 

    Ainda que sem entrar no tema com grande esforço teórico e sensibilidade empírica, é possível perceber que, na "era pós-guerra fria" em que vivemos, vigora no mundo a busca por tornar hegemônico um conceito de democracia como forma de selecionar os "atores globais" (Estados-nacionais) para decisões políticas e de atribuir-lhes posições assimétricas neste processo. Segundo esta concepção, a democracia é, em si, a forma que deve ser assumida pelo Estado-nacional. Na base desta concepção está a visão de mundo de que em torno de Estados-Nacionais se organizam "sociedades nacionais" com mais ou menos democracia. E muitas com nenhuma democracia. Estas sociedades nacionais seriam "sociedades civis" de diferentes tipos e com diferentes culturas políticas ou até mesmo com valores, tradições e mentalidades antagônicas.

Esta idéia de sociedades organizadas em torno de Estados-Nacionais costuma ser chamada, na sociologia, de "nacionalismo metodológico". Eu creio ser ela mais do que isso: trata-se de uma crença genuinamente moderna, sedimentada em nossa experiência cotidiana quando usamos o conceito de sociedade, de Estado-nacional, de democracia. Métodos podem ser trocados como se descarta um objeto; crenças costumam ser viscerais e suas mudanças, assim como as "revoluções científicas", demandam morte de gerações. A antiga "teoria da modernização" está viva nos esquemas naturalizados de observar o mundo social. Esta via os países como sociedades nacionais e assim hoje se faz na mídia e até em grande parte da sociologia.

    Por conta disso, o que na Sociologia se chama hoje de "nacionalismo metodológico" é ainda um contínuo de plausibilidade que une ciência e senso comum. Os esforços de questionar esta plausibilidade espontânea estão à margem, face ao uso constante da noção de "sociedade nacional" e semelhantes, como se tais existissem na condição de unidades autônomas com valores e instituições particulares. É com base neste pressuposto que os produtores e consumidores do conceito hegemônico de democracia observam, perplexos quase sempre, problemas políticos em países como o Irã.

    Dispondo desta hegemonia, o "bloco histórico" do Ocidente vencedor da "guerra fria" assume e defende a posição de "portador de valores democráticos" e de uma missão civilizatória em nome destes valores. Nesta perspectiva vêem o Irã ou como uma 1) "sociedade inocente a ser salva de seu (s) tirano (s)" ou 2) como uma "sociedade suspeita de ser cúmplice de seu tirano". Oficialmente só pode vigorar a primeira, mas a segunda rola com forca "no silêncio". Se os iranianos não odeiam o seu presidente, são vistos como "infantis" ou fanáticos, restando-lhes subordinação e aprendizado às "normas da democracia". Neste terreno semântico o presidente ditador, no limite, não é digno de confiança e a ele não deve ser dada à palavra, senão para se desculpar e acatar. Quem não demonstra incorporar os "valores democráticos" deve ser excluído da democracia global, ou seja, do processo decisório da política.

Parece que o sistema político global tem no conceito de democracia a sua forma semântica atual de reproduzir a diferenciação vigente entre os Estados-Nacionais, sobretudo na dimensão centro/periferia. Nesta dimensão vê-se que o centro se percebe - ainda que não represente esta percepção, conferindo-lhe, ao invés disto, a condição de princípio naturalizado - como depositário regionalizado de valores universais que devem ser expandidos. No "sentido prático do conceito" reside a mesma função que em outra época coube à diferença explícita entre civilizados e bárbaros, ou seja, a função de sedimentar a diferença entre o centro e a periferia, no caso aqui, no terreno específico da política. A questão fundamental deixada na sombra por esta semântica da democracia é se, de fato, existem sociedades nacionais estruturadas por valores nacionais, valores estes representados na política nacional. Enfrentar esta questão exige uma visão sobre o processo de expansão de valores ou códigos valorativos específicos e ver se existem ou não "sociedades nacionais caracterizadas pela falta destes valores", mais exige mais do que isso: exige colocar em evidencia a função atual do uso desta diferença conceitual para reproduzir uma forma de diferenciação da política mundial que, ao se definir como democrática, intitula-se no direito e no dever de determinar quem deve ou não receber confiança, ou seja, quem deve ou não participar de situações decisórias importantes.

6 comentários:

Dever Cumprido disse...

A isso eu chamo de democracia imperialista, ou se pensa como eu ou não é democrata. Não é por acaso que a maioria das organizações Norte Americanas, apoiadas pelo PIG, se coloca no processo eleitoral brasileiro ao lado da candidatura José Serra. O fato do Lula se “atrever” a buscar o dialogo com o Irã e expandir o comercio no cone sul é por essa gente imperdoável.

Décio Vieira da Rocha disse...

Excelente artigo...

Roberto Torres disse...

Obrigado Décio.
Caro Dever Cumprido, a posicao do Brasil parece ser intermediária neste aspécto. O Ocidente parece nos conceder o selo de democracia, mas sempre com ressalva. Ainda somos percebidos como uma sociedade conivente com a corrupacao ou como conduzidos por políticos corruptos, como se houvesse uma "classe política" especificamente brasileira ou latina substancialmente corrompida.

Mr Gayrrisson disse...

Dear Roberto,

É absolutamente perturbador ter que reconhecer que o discurso em torno de valores de nos são tão caros, como o da "democracia" podem também se prestar à legitimação de práticas de dominação.

E mais ainda, podem substituir tipificações como centro/periferia, civilização/barbária, inequívocas formas de compreender o mundo que amparam as mais variadas formas de dominação.

Li seu texto, esperando extrair dele alguma conclusão, mas infelizemente/felizmente, só posso compartilhar a sensação de perplexidade.

A democracia se coloca em risco, permanentemente, e este é um fardo que temos para carregar.

Seridade á parte, o texto está uma "delícia" ! Rs ...

Roberto Torres disse...

Caro Mr Gayrrisson,

Parece mesmo que a democracia está em constante risco. Mas talvez a consideracao deste caráter arriscado e contingente seja exatamente uma das possibilidades de evitar o potencial excludente embutido na missao civilizatória da democracia ocidental. Alias, o critério de democracia nao vale para as relacoes dos EUA com vários países, como Arábia Saudita.

Brand Arenari disse...

Caros debatedores,
interessante observar neste debate e no texto que, a dominacao só é verdadeiramente eficaz quando "vive nas sombras", ou seja, quando nao é percebida. Assim, o uso de conceitos ou jargoes científicos é um campo privilegiado, por trazer em si a falsa nocao de neutralidade e universalidade.