segunda-feira, 7 de junho de 2010

ÚLTIMA PARADA 174

O filme cujo título é o mesmo deste post, do diretor Bruno Barreto (2008) é o maior filme sobre nossa desigualdade social que já assisti. Ele também é autor de "O que é isso companheiro?" e "Dona flor e seus dois maridos". Não sou profundo conhecedor do cinema alternativo brasileiro. Mas este filme impressiona pela capacidade de mostrar a sorte de milhões de brasileiros nascidos na ralé. Baseado na história real, ele trata da origem do menino que se transformou de repente no sequestrador do ônibus 174, fato real de grande repercussão na mídia nacional, ocorrido há alguns anos no Rio.
Diferente de outros filmes brasileiros de grande produção e bilheteria, na onda do filão de vendas sobre a violência, que apenas "mostram" a violência no Brasil, mas não "tematizam" o porque da violência, como "Cidade de Deus", "Carandiru", o descaradamente conservador e não por acaso premiado "Tropa de Elite", "Verônica", ou "Querô", este filme de Barreto mostra como um menino abandonado "vira" bandido. A narrativa gira em torno da vida de dois meninos nascidos em favela, um treinado desde cedo para assumir o lugar do pai como traficante, e o outro vagando pelas ruas e pelo abandono familiar, institucional e social, desde que sua mãe, uma batalhadora dona de bar na favela, é assasinada num assalto.
Este último é o Sandro, protagonista principal. Sua ida para as ruas, incapacidade de permanecer na escola, impossibilidade de gravar seus raps, enfim, toda a contingência de sua vida é tematizada no filme. O contraponto com o outro menino o Alessandro, é fundamental para a compreensão do que acontece com Sandro, e por isso acho o filme genial. Alessandro foi treinado para ser o "malandro", cantado por Bezerra da Silva, o esperto, com inteligência e disposição para sobreviver no mundo do crime. Sandro não. Não foi treinado nem para o bem e nem para o mal. Não aprendeu a viver no mundo integrado da "boa sociedade", por não conseguir permanecer na escola, desde cedo apresentava dificuldades e com o assassinato traumático da mãe não conseguia mais aprender nada. Também não aprendeu a viver no mundo da rua, rejeitado pelos familiares, tratado formalmente por instituições de apoio social. Ele se tornou o "mané" das músicas de Bezerra. Bandido por acaso.
Sobrevivente da famosa chacina da Candelária, onde morreu sua verdadeira família, este menino vaga entre a tentativa de recuperar o rumo da vida, buscando a mãe, tentando mostrar seus raps, e a realidade de pequenos delitos pela sobrevivência. No final, as esquinas da vida transformam o menino abandonado em sequestrador. Nosso olhar dominante, cujo baluarte principal é a classe média, considera tal destino uma escolha de um vagabundo. Cada cena deste filme mostra os limites de nossas escolhas individuais. A beleza dos detalhes do filme eu deixo para o leitor conferir.
A arte crítica é aquela que mostra a dor humana. Com uma câmera na mão, ou uma caneta, não basta uma boa história, é preciso o interesse de quem mostra em enxergar a verdade. Não há verdade maior do que a dor humana e os limites reais de nossa vontade. Sandro só queria conhecer Copacabana, vontade derivada de um sonho da mãe, que lá almejava trabalhar. Não aprendeu bons costumes e nem aprendeu maus costumes, como seu colega traficante. Não aprendeu a se defender nem com armas legítimas nem com ilegítimas. Acabou se tornando o bode expiatório dos armados de ambos os lados. Desarmado, também foi desamado. Desalmado. Pobre Sandro. Pobre sociedade brasileira.
Enquanto continuarmos vendo nossa ralé como a protagonista dos nossos erros, não conseguiremos ver que muitos erros não possuem protagonista, e continuaremos sem enxergar a parte de erro que nos faz co-autores de uma sociedade desigual e violenta. Somos uma sociedade fragmentada por que nos percebemos fragmentadamente, por que nao percebemos que todos os brasileiros tem sonhos mas que nem todos tem a realidade que possibilita sonhos virarem realidade. Para Sandro, a realidade foi apenas sonho, e um sonho ruim.
Só podemos transformar a realidade quando sonhamos. Mas quando sonhamos a partir de uma realidade que permite a ação em prol de uma outra realidade melhor, vislumbrada no sonho. Não é o caso de pessoas como Sandro, infelizmente. E pior, não é o caso de muitos bem-nascidos, cuja realidade permitiria contribuir para outra melhor. Permitiria sonhar. Nossa classe média conservadora não tem este sonho. Eu tenho. E artistas como fez Barreto neste filme também tem. Bem vindos ao sonho, todos os leitores. Mas antes é preciso encarar a realidade. E esta, no Brasil, e em outros países de capitalismo periférico, é que nossa ralé não pode nem sonhar.

12 comentários:

Décio Vieira da Rocha disse...

Um post bastante interessante, pois a questão de dominação exposta no filme chega a constrangir nós que cientistas sociais ou futuros(como eu).Quando assisti ao filme realmente vi que o conceito do dominador tinha tomado tudo e me perguntei, o que eu como sociedade civil posso fazer por esse garoto?E a resposta bate forte dizendo,NADA!
Chega a se parecer um romance mudo, sandro não fala, não grita, não tem desejos, ele faz o que der para ser, parece o Fabiano de Graciliano Ramos em vidas secas, só que esse cara já não se encontra somente mas nos confins dos sertões, eles estão nascendo cada dia mais ao nosso lado, e enquanto o aparato estatal de imposição e de estruturação da vida social como escadas onde uns estão melhores que os outros, não poderemos ajudar a Sandro, e para onde vai essa sociedade?

Roberto Torres disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Roberto Torres disse...

Bela resenha Fabrício.Estou ansioso para ver o filme. Como nao posso comprar aqui, infelizmente terei que dar outro jeito rs.

Fabrício Maciel disse...

Obrigado por sua presença em nosso blog Décio,

vc percebe bem, ele não pode expressar seus desejos, o diretor pega bem isso. O que podemos fazer como cientistas sociais é semelhante ao que este diretor fez, mostrar a dor humana e transforma-la em teoria e ação política.

Fabrício Maciel disse...

Obrigado Roberto, vale a pena ver. Eu aproveitei o embalo e fui pegar o outro, o documentário ONibus 174 que acho ter saido antes desse. Ainda não vi. Não me lembrava mas é do José Padilha, o mesmo do Tropa de Elite, que achei conservador na época por incitar nossos desejos mais fascistas contra os criminosos. Vamos ver o que ele fez neste documentário, de repente rola um novo post. abraço

Dever Cumprido disse...

Valeu Fabrício
Pela ousadia, pala sensibilidade e pela capacidade análise. Sua resenha pode nos levar a olharmos com um olhar mais humano o Brasil que vemos e não e enxergamos a um palmo de nossos narizes.

Fabrício Maciel disse...

Obrigado "Dever Cumprido,

pelo comentário e pela visita ao blog. Juntos, intelectuais, artistas e principalmente pessoas "comuns" da população podem e devem discutir e agir em prol de uma sociedade mais justa.

vamo que vamo...

Anônimo disse...

Fabrício,
Gostei do seu texto, já tinha assistido o documentário e também filme, você sintetizou bem os trabalhos...
Porém, discordo apenas de sua opinião quanto ao filme "Tropa de Elite", pois não considero ele um filme conservador. O que acontece é que assim como o "Última Parada 174", foi mostrada uma realidade - de corrupção e violência policial -e que diante de um espírito violento que a sociedade brasileira vive, alimentado em grande parte pela mídia do espetáculo, muitos enxergaram no discurso do Capitão Nascimento um caminho para a segurança pública, no entanto, isso não foi o objetivo do filme, conforme o próprio José Padilha e Wágner Moura disseram, "muitos entenderam o filme errado", segundo José Padilha "Capitão Nascimento não é o mocinho da história", ele é o retrato de um policial despreparado, ignorante, extressado, mal remunerado, desgastado, desesperançoso e doente, ele não é um exemplo a ser seguido, pelo contrário, ele é um dos exemplos que tem que ser combatidos, assim outros policiais-personagens do filme que são corruptos.
O filme "Tropa de Elite" é uma denúncia de como está nossa polícia, por isso devemos analisá-lo em todos os ângulos e com a consciência, discernimento e ideologia que temos. Só assim poderemos tentar mudar este pavoroso quadro.
Abs,
Gabriel

Fabrício Maciel disse...

Caro Gabriel,

obrigado por sua presença aqui e por seu comentário. Você compreendeu bem o filme e eu concordo em parte. Considerei conservador por que o Tropa de Elite incita nossos sentimentos mais violentos em relação ao crime. A mensagem subliminar é que tem que matar mesmo todos estes canalhas. Ele mobiliza propositalmente o mesmo sentimento de afago e sensação de proteção que a sociedade integrada sente todo domingo quando o Fantástico mostra o caveirão subindo nomorro. Temos a sensação de que estamos sendo protegidos de um mal externo, como se ele nao fosse produto do mesmo sistema desigual que garante nossos privilégios.

Acho que mostrar a corrupçaõ da polícia é válido, mas convenhamos que isso não é muita novidade nao é mesmo? Assim como mostrar a violencia e a pobreza no Brasil, como nos filmes que citei.

Nunca estudei arte, mas como leigo sinto que a estética por si mesma não é crítica. Mostrar sem tentar analisar comm diálogos e enfoques específicos os motivos da corrupção, da pobreza, ou da violência acaba sendo um mostrar abstrato, um mostrar que na verdade esconde, semelhante ao da estética jornalista predominante no mundo hoje.

muito obrigado pelo comentario e apareça sempre. abraço

douglas da mata disse...

Meus caros,

O dilema no filme TRopa é falso, como todo o resto:

Ou é corrupto ou é violento(eficiente), ora, a violência também e uma forma de corupção, e a pior delas, viola o Estado de Direito com coerção física.

Não tenham dúvidas: se restassem dois tipos de policiais que fossem abordar um de vocês em uma viela escura, vocês escolheriam um que "negociasse" um habeas corpus de rua.

Lógico que nenhuma das duas situações é desejável, mas esse é um dilema de TODAS as polícias do mundo, em grau menor ou maior.

Desde o FBI, a NYPD, com sua "war on terrorism", e suas "ações de exceção", à base do Patriotic Act, até o MI-5 e Scotland Yard inglês com Jean Charles de Menezes.

É preciso entender com funcionam as mediações sociedade e polícia, afinal, a polícia só reflete o "mandato de violência" que o senso comum lhe outorga, e é claro, com um plus dos "psicopatas de ocasião", como capitães nascimentos e outros.

O filme Tropa é, sim, conservador e retrógado, quase-fascista.

Um abraço

Fabrício Maciel disse...

Caro Douglas,

é sempre bom tê-lo aqui debatendo conosco. Outro ponto que acho interessante no Tropa de Elite, é que ele enfatiza a luta do Bope contra o Terrorismo brasileiro, ou seja, o tráfico, como se fosse uma Luta do Estado contra uma parte da sociedade que ameaça a boa sociedade. Com isso ele omite nosso verdadeiro grande conflito, que não é entre Estado e Sociedade, ou alguma fração dela, mas sim nossa luta de classes velada pela brasilidade.

A questão da violencia no Brasil é radical pela radicalidade de condições de vida de nossa ralé, naturalizada por nosso senso comum meritocrático e quase-fascista no sentido de querer se livrar matando ou jogando em nossos campos de concentraçao modernos que são nossas prisões, como o próprio documentário do Padilha sobre o onibus 174, este menos conservador que o Tropa simplesmente por ser formato de documentário e dar vozes a pessoas de vários lados da guerra velada pelo Tropa.

A questão da violência no Brasil é uma questão de pobreza e desigualdade e não se resolve matando os pobres sejam eles traficantes ou ladrões de galinha como é o caso do Sandro do 174. Se resolve com politicas sociais a medio prazo que precisam compreender as condições de vida e os motivos pelos quais muitos ralés se tornam bandidos. O filme de Barreto mostra com maestria como alguém pobre se torna bandido por acaso. O livro "a ralé brasileira", do qual alguns deste blog participaram, tenta mostrar em dimensão maior o triste destino de quem não tem muita escolha na vida.

O Tropa é conservador por que simplesmente "resume tudo a uma questão de polícia" como dizia nosso clssico pensador Raimundo Faoro, e como foi repetido por muita gente boa do tipo Delfin Neto ou Denise Frossard.

Abraço a todos

douglas da mata disse...

Fabricio,

Centrei a questão na minha área de atuação, pois o arcabouço teórico é de vocês.

Seu comentário é preciso: Resumir tudo a uma questão de polícia.

E a polícia protege o Rei, SEMPRE.

Há uma face dessa questão que conversasva com uma amiga, recentemente.

Defini como a esquizofrenia da violência, ou a violência da esquizofrenia:

Veja que nossa sociedade enfrente seus conflitos de classe sempre de forma segmentada e estanque, como múltiplas personalidades esquizofrênicas.

Assim, impedida de ver o quadro total da criminalidade e seu combate, sob uma ótica democrática, vai adotando discursos diferentes para problemas parecidos, mediando-os pela lógica da distinção de classe.

Elabora políticas públicas de segurança também fragmentadas, que procuram resolver problemas pontuais, como se isso desse solução para todos os problemas.

Legitima discursos e atos violentos, e particulariza as medidas repressivas, conferindo status de "favor", direitos que deveraim ser observados e preservados.

Ensinamos nossos policiais a julgar, mediar e executar as penas, baseados em cortes ideológicos.

Todas, eu disse, TODAS as sociedades PERMITEM que seus policiais transgridam a LEI para fazer cunmprir o desejo de promover segurança.

Foi assim depois do 11/09 nos EEUU, foi assim na Inglaterra e Espanha, depois dos atentados. Esse é um movimento humano.

A questão é: a aparente falta de "controle" da polícia, nesses casos, deve sempre remeter a proteção da coletividade, que depois, deverá recorrer aos meios de verificar quais excessos são "toleráveis" e quais são "puníveis".

No Brasil, pelas características de nosso processo histórico e da formação do nosso Estado, essa compreensão de uso da força/violência sempre obedeceu a um critério privatista.

A polícia estadunidense, por exemplo, pode ser tão ou mais violenta que a nossa, tão ou mais racista que a nossa, a diferença é que essa condição é sempre uma decisão institucional, e sumbetida a formalidade procedimental, quer dizer: Mudando o cenário político e a correlação de forças, poderão mudar a forma de encarar o problema policial.

No Brasil, mudam o status quo, mas permanece a lógica privatista que substitui segurança por proteção.
Policiais sabem disso, ou intuem isso.

Mas, enfim, quem determina os limites é a sociedade e nunca o contrário, ou seja: sociedade violenta, excludente e preconceituosa, polícia idem.

Um abraço.