sexta-feira, 30 de julho de 2010

A política do anti-populismo



Tornou-se uma posição paradigmática importante na ciência social a tese de que a sociedade

se constrói também no processo como ela se observa e se auto-descreve. Com isso busca-se

sobretudo superar a idéia de que as visões de mundo apenas legitimam o mundo, optando-se pela premissa mais forte de que elas também constroem o mundo. Evidentemente pode-se cair num "construtivismo ingênuo", no sentido de achar que visões de mundo estão a nosso dispor, como se pudéssemos literalmente tratá-las de modo manipulável e contingente em qualquer circunstancia. Não creio que este seja o caminho para apreendermos de um modo satisfatório a função prática das visões de mundo.

Para evitar este "construtivismo ingênuo" é preciso considerar que as visões de mundo constituem nossa identidade, nosso sentido de pessoa, sentido este que está para nós como um "pano de fundo" do qual não podemos tomar distancia quando atuamos ou somos percebidos como uma pessoa; e isto vale mesmo para o lado negativo da pessoalizacão, a "não pessoa", o "mero corpo". Por não podermos tomar distancia da visão de mundo que nos torna uma pessoa, mesmo que mudemos nossa condição de pessoa com a mudança de nossa visão de mundo, é preciso considerar que está visão de mundo é antes de tudo um dispositivo prático, que pode ser inclusive incorporada, como diria Bourdieu.

Um dispositivo prático é tudo que, ao ser usado, dispensa fundamentação adicional; é uma convenção arbitrária. Bordieu dizia sempre que era preciso não confundir "as coisas da lógica" com "a lógica das coisas" e assim não exigir das coisas mais lógica do que elas de fato possuem e podem apresentar. A lógica da prática é coerente somente quanto ela não deixa de ser prática. A visão de mundo típica de um tempo histórico é sempre aquela que pode sobreviver às provas da coerência e da auto-contradicao escondendo seus paradoxos. A vida social é prática, antes de ser lógica; por isso ela é sempre fundada no que Durkheim chamava de "conformismo lógico".

Este "conformismo lógico", que é a base cognitiva da reprodução social e de seus regimes de dominação, é tanto mais eficaz quanto ele escapa à tematização, quando ele informa e institui o princípio de todas as questões e tematizações, menos a questão e a tematização de sua própria vigência. Assim ele se "naturaliza", se sedimenta na dimensão factual da vida social, de modo que também as auto-descricoes sociais tendem a reiterar sua invisibilidade. Nesta situação, temos poucos motivos para aceitar que essas auto-descricoes possam construir a realidade social. Parece mesmo que só servem para legitimá-la. O melhor exemplo , a meu ver, é o modo como a semântica do individualismo cria a invisibilidade da desigualdade social estruturada, de modo que esta, de fato, é imputada ao "lado de fora da sociedades", para o "entorno do sistema", diria Luhmann.

Mas é sempre assim? Será que em todos os contextos somos privados da possibilidade de transformar a realidade alterando a semântica naturalizada de nossa visão de mundo? Será que somos forcados a tomar como geral a circunstancia de que somos sempre mais "inteligentes quando agimos do que quando falamos"? Eu creio que não.

Um contra-exemplo que demonstra a possibilidade de um sentido prático da semântica é a disputa conceitual na política. No campo da política podemos perceber que o uso seletivo de conceitos tende a servir, para além de qualquer intenção individual, como estratégia de inclusão ou exclusão no processo de formação da "opinião pública", e mais especificamente daquela dimensão da opinião pública que é percebida como "vontade política legítima" e portanto como em condição de pautar decisões dos poderes executivo e legislativo. Grosso modo, tudo gira em torno de determinar, no contexto destas disputas semânticas da política, o que á "vontade do povo", a se traduzir, em eleições e reeleições, em maioria. Quem é povo? Quem fala em nome do povo (a imprensa, o presidente, o partido ou até mesmo o judiciário)? Como se fala em nome do povo? Todas essas são questões conceituais e práticas ao mesmo tempo no campo da política, especialmente em regimes democráticos, nos quais está, em certa medida, em aberto a resposta para todas elas. Ou melhor: é exatamente o grau de abertura para a definição destas questões que está em disputa no terreno de conceitos para qualificar e classificar fenômenos políticos.

O conceito de populismo, da forma como é usado sobretudo no contexto brasileiro atual, é talvez o melhor exemplo do que está em jogo nesta disputa. Basicamente, o sentido prático do uso desta expressão para observar fenômenos como o "garotismo" ou o "lulismo" – em que pese suas enormes diferenças – é o de desclassificar a qualidade da decisão do voto e da sustentação que se encontram na base na eleição ou reeleição de políticos com "apelo popular". Em geral, o conceito opera do seguinte modo: atribui ao representante a qualidade de manipulador de uma vontade popular que deve ser desconsiderada em grande medida da política, uma vez que a seu portador é atribuída a condição de incapacidade de decidir e julgar programas de governo. Está incapacidade é referida ao fato de pessoas, os "pobres", os "assistidos pelo Bolsa Família", não poderem projetar o futuro como espaço imaginário para tomar suas decisões e votar. Por estarem condenadas ao aguilhão da necessidade, à "vida despida", reduzida a processos biológicos, estas pessoas não teriam nenhum compromisso com o futuro do país. Por não terem futuro, essas pessoas não podem participar de decisões que afetam a vida dos que têm. O limite de sua temporalidade determina a qualidade de sua ação no sentido moral: uma decisão informada somente por necessidades imediatas não pode ser a rigor uma decisão, e quem a toma não pode ser considerado como sujeito, eis a "filosofia política implícita" que dá suporte ao uso do conceito de populismo atualmente.

A estrutura temporal distingue a pessoa individualizada, portadora de "subjetividade decisória", do corpo sem propriedades, levado por circunstancias que são manipuláveis por políticos "populistas".Não importa se este político seja o que mais tenha levado as demandas dos famintos para a pauta decisória. Para a "crítica do populismo" praticada por boa parte de nossa opinião pública, inclusive boa parte da que se compreende como de esquerda, o que importa é que estas demandas não são legítimas simplesmente pelo fato de terem como referencia pessoas tidas como incapazes de saber o que é melhor para o futuro, seja o seu próprio, seja o dos outros. Cria-se de fato uma fronteira "biopolítica": de um lado as pessoas livres do aguilhão da necessidade imediata, cuja vontade é tida como qualificada, e de outro os corpos despidos (não pessoas), presos ao aguilhão biológico do imediatismo, e cuja vontade é tida como desqualificada.

A forca do "lulismo" a meu ver está em conseguir disputar este terreno e assim produzir recursos semânticos para legitimar a inclusão dos corpos despidos na política, para o bem ou para mal, dependendo de onde se observa "o cara". O desafio é levar para a política o fato de que os corpos despidos, presos ao limite biológico da necessidade urgente, são um produto da própria política, tanto do Estado, como da "economia política" que define o horizonte de vida e futuro das pessoas. Se a semântica da política se abre a este problema, não é pouca mudança prática.

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