Roberto Torres
No último texto que Brand publicou neste Blog, ele quis ressaltar o quanto uma sociedade regida pela ciência e pela perícia técnica pode atrofiar a definição do “bem viver”, do que é uma “boa vida” em termos coletivos, nos termos de uma quantificação sobre a vida. O tema empírico em foco, a recente “Lei Seca”, dizia respeito a um desses casos onde o Estado, por meio da Lei, regula deliberadamente o estilo de vida das pessoas, obrigando-as a escolher uma combinação determinada do consumo de álcool com a direção do automóvel. A questão prática torna-se a seguinte. Uma lei é criada justificando-se na tese, já amplamente comprovada na redução do número de mortes por acidentes depois de sua aplicação, de que a maior parte dos acidentes graves é causada pela combinação do álcool com o volante. Então, o Estado usa a Lei para retirar do estilo de vida de grande parte do que podemos chamar de “classe média” o tipo de comportamento que representa a extinção de muitas vidas, de pessoas desta própria classe, com as quais de algum modo estendemos nossa afeição familiar.
O tema da quantificação vem à tona quando fica evidente que o Estado está priorizando a expectativa de vida das pessoas em termos da duração e do risco de sua extinção. Este dado evidente nos causa certa perplexidade e apreensão, pois parece suspender a ordem normal das coisas, onde a política decide tomar conta que questões que julgamos espontaneamente não pertencer a ela. Parece evidente que o estilo de vida não deveria ser regulado por uma política de Estado visando aumentar a duração da vida biológica de (algumas) pessoas. É essa “politização anômica” que Brand no fundo denuncia quando questiona o uso da ciência para justificar este tipo de intervenção perniciosa. Em resumo, a politização do estilo de vida seria contrária à “normalidade política”, traindo a própria legitimação jurídico-democrática do Estado na medida em que viola do direito civil básico de “ir e vir”.
A regulação quantitativa da vida surge como algo estranho e fora da vida política, ou seja, como algo que existe por “si mesmo” e sem relação com as diferenças de poder. Existe uma visão de que o estilo de vida das pessoas não depende de relações de poder e que não implicam uma distribuição desigual de todo tipo de valor e reconhecimento na sociedade e em qualquer espaço político visto como tal. O pressuposto desta visão é o “esquecimento” de que, em “tempos imemoriais” de decisões arbitrárias, o Estado (com seu aparato burocrático e militar) agiu com o “arbitrário da força” não só para controlar como também para produzir o estilo de vida das pessoas. Esquece-se, acima de tudo, que a política pública assumiu um dia na História a tarefa de distribuir desigualmente tanto as condições como os estímulos concretos para que determinado tipo de pessoas, com modos de vida semelhantes, fossem arbitrariamente beneficiadas com estes recursos escassos. Cria-se um “silêncio coletivamente orquestrado” sobre o fato de que estes recursos significam antes de tudo o que Foucault chama de “bio-poder”, tudo aquilo que serve para fomentar a vida com injunções desigualmente distribuídas e aplicadas. Pensemos por exemplo no risco de vida que nossa “ralé” de pobres e miseráveis precisa naturalizar, às vezes com muito bom humor, por ter que viver de modo arriscado na linha de tiro da delinqüência, nas camas dos hospitais, nos ambientes contaminados e propícios à aquisição de doenças “de pobre”, chegando ao limite de “aceitar” a doença como parte do próprio corpo e logo ter a extensão de vida probabilisticamente diminuída. Para reagirmos ao poder da “estatística” precisamos saber que ela faz parte dos corpos humanos, que está habitando, como diria Bourdieu, “a zona mais oculta dos corpos”, sob a forma de uma segurança quantitativa em relação à vida, correspondendo a uma certeza probabilística que incorporamos em nosso “ser” de acordo com nossa origem social.
Esta distribuição desigual da segurança sobre a vida institui um regime de escassez em que a sociedade é, no limite, divida entre amigos e inimigos, numa oposição binária que por sua vez instaura uma contradição, ainda que latente, entre aqueles que o “poder social” escolhe “fazer viver” e aqueles a quem sentencia “deixar morrer”. Apenas em situações extremas, como no Nazismo, é que esta contradição latente costuma vir à tona, e uma raça tida como inferior ser abertamente perseguida em prol de uma vida melhor para a raça tida como superior. Mas é assim que todas as sociedades modernas, pelo menos as com pobreza e marginalidade significativas, que são 90% do mundo, fazem e/ou ratificam no ambiente de todas as suas instituições e práticas. Com o decorrer do tempo, no entanto, como o Estado monopoliza a força e com ela a capacidade de produzir bens simbólicos para disfarçar o seu uso nestas instituições e práticas, as famílias e classes privilegiadas pela distribuição desigual do bio-poder se esquecem de que todo seu estilo de vida depende desta apropriação diferencial da expectativa quantificada sobre vida.
Inclusive a própria reação crítica à quantificação do estilo de vida, típica de todas as variantes estéticas e políticas do “expressivismo” e da “vida autêntica, só faz sentido na suposição de que haja o privilégio de uma expectativa de vida experimentada espontaneamente em termos quantitativos. Todos nós que projetamos nossa vida em termos de uma carreira, ou sob a base dela, possuímos de modo quase natural a sensação de uma segurança quantitativa sobre a duração de nossa vida. A questão é que esta segurança existencial não existe para todos. E ela é uma questão política desde quando podemos saber que envolve a apropriação arbitrária de recursos e estímulos para a duração e a quantidade da vida. Não devemos estar fechados à descoberta de que o consenso secreto mais importante de nosso mundo social possa ser aquele que, escondendo uma guerra de “raças”, a pusesse em marcha por outros meios, mas sem nunca descuidar da disputa pela existência dos corpos em relação ao mundo.
10 comentários:
Querido Roberto,
Achei extremamente interessante o texto que procura descortinar elementos ocultos neste debate. Sem dúvida uma via analítica é essa de apresentar os elementos pré-reflexivos envolvidos neste tipo de interpretação de mundo.
E isso é um fato.
Mas... por outro lado vcs também não podem estar sendo, de forma inadvertida ou não, defensores de um tipo específico de postura política e filosófica que é em si anti-regulação???
Em verdade eu me deparar com determinados dilemas morais nesta lei, mesmo com todas as imperfeições, dveemos pensar nas hierarquias morais de uma sociedade não sustentável como a nossa... Onde um tipo específico de comportamento não só é reproduzido como é também incentivado.
Desconfiemos da arrogância do "direito positivo". Mas também devemos pensar o que que está tentando ser regulado...
Creio que é exatamente pensando em nossa hierarquia moral, onde os corpos da ralé valem nada, que Roberto escreve este texto. O ponto é que quando o Estado toma medidas que protegem corpos socialmente úteis, que não são da ralé, vira estatística, reportagens e debates. No entanto, é constitutivo do Estado moderno a política pública implícita e inarticulada de deixar morrer corpos de socialmente inválidos. É neste ponto que precisamos avançar, articulando como o Estado é negligente, na escola ou no hospital, diante de sua função liberal manifesta de promover condições de vida iguais a todos. Acontece que tal fato é tematizado na mídia e em debates públicos apenas de modo folclorizado, nunca trazendo à luz as condições diferenciais sociais de classe que fazem de algumas pessoas dignas de políticas efetivamente protetoras e de outras meros números para notícias das páginas de dentro dos jornais.
George, sem dúvidas não defendemos uma visão de mundo anti-regulação. Alias, nesse ponto a relação de continuidade entre confusão teórica e conservadorismo politica fica bem clara. Todos os que usam, por exemplo, a noção de "cidadania regulada", mesmo que que pretendem ter um "charminho crítico", são no fundo comparsas inapeláveis do liberalismo conservador que, ao investir na falsa noção de que a regulação estatal não é um elemento constitutivo da cidadania, apostam no nascimento espontâneo da cidadania, sem regulação. Por isso Foucault é importante, como critico maior da concepção liberal de poder. Como se o poder não criasse as coisas, como se ele apenas as regulasse....
Veja que pouca atenção se deu, ou atenção nada pedagógica, à critica de Fábio Wanderley ao conceito de cidadania regulada, quando se tratava de um ataque teórico de alta precisão analitica e teor critico à concepção liberal.
No caso da escola, citado por Fabrício, ainda que se quisesse tomar ao pé da letra a ortodoxia liberal a escolaridade figura como um direito social assegurado pela regulação estatal. No liberalismo clássico preconizava-se a cidadania não como um direito mas como o reconhecimento da capacidade de empreendimento dos indivíduos nas relações de troca. A livre concorrência econômica ocupava o centro da sociedade liberal do século XIX, reservando-se ao poder estatal a manutenção da ordem legal dos contratos e da segurança pública. No entanto, haveria um direito no qual o Estado pode e deve intervir sem restrições – a educação – pois o "self-government" não é um atributo natural do homem, demandando então assegurar um conjunto de práticas disciplinadoras que dotasse os indivíduos em "igual" medida para o exercício da livre escolha.
No (o)caso brasileiro, às vezes penso que nosso liberalismo não passa de um "liberalismo moreno", porque os serviços sociais e a educação, instâncias incontornáveis para civilizar a sociedade civil, são tomados (com ingenuidade ou má-fé) pela defesa pura e simples do privatismo.
Paulo, não podemos tomar o que o liberalismo clássico dizia sobre si mesmo como explicação suficiente sobre ele. Ele não dizia que a segurança pública era sempre feita não só contra inimigos externos, mas contra inimigos internos tb, como a construção da delinquência mostra em todos os países europeus da época.
Certamente, Roberto. Os "inimigos internos" a partir de seus movimentos espontâneos e organizações sociais é que, de fato, ampliaram a cidadania para além do direito privado burguês. Apenas quis "carregar nas tintas" para questionar a associação espontânea entre liberalismo e anti-estatismo, dando margem à crítica (procedente, diga-se de passagem) que você faz.
de forma tosca: as vidas que supostamente foram "salvas" com esta lei, a partir das estatísticas divulgadas, escolheriam esta tal "vida autêntica" ao encarar a morte ou se contentariam com a vida estatisticamente regulada? e por que esta última não é autêntica? acho que vc se esquece que a modernidade se estrutura em torno de cálculo de risco, isto é uma condição para se viver com tal soma de possibilidades de vivência; e cálculo de risco envolve estatística, matemática, ciência. esta é nossa condição moderna e não a vejo menos autêntica que as anteriores. esta crítica à modernidade, que é o que vc faz implícitamente, parece uma vontade romântica de retornar àquelas antigas comunidades medievais.
existe uma provocação que gostaria de fazer:
muito se falou do aspecto "ilegítimo" da manifestação estatal (via lei) para regular a "escolha" de estilo de vida (ou morte) do cidadão, considerado em risco e merecedor de mediadas "preventivas"...
a questão não deve ser apenas esmiuçada pela lógica indidvidual (como um postulado "liberal clássico", ou da imagem construída sobre ele)...
o Estado não arbitra apenas sobre as "escolhas", mas também sobre as conseqüências que estas "escolhas" têm sobre a esfera jurídica de terceiros que não fizera "essa escolha" ou que não estão dispostos a pagar o preço por elas...
esse é o alcande lato sensu implícito na idéia de regular a vida social através da coerção legislativa...
creio que a discussão está centrada em bases restritas...
Bill, acho eu fui imparcialo de mais no texto.... ou me expressei mal mesmo. Com o tema do biopoder eu quis exatamente ressaltar o controle do risco como algo que a vida moderna traz para a dimensão do estilo de vida.. estatística incorporada, certeza probabilística em forma de habitus.
Agora sobre a questão da autenticidade. Particularmente, eu nunca me encantei pelo romantismo alemão... Os defensores dos expressivismo quase sempre se esquecem que eles já nasceram e foram criados em condições sociais definidas pela vida regulada quanto a seu risco e duração...
Desprezam a estatisitica, mas tem todo o seu estilo de vida definido pelo que ela significa em termos de biopoder. Quanto a isso, concordo.
Agora, o tema da vida autêntica, ou da vida dotada de sentido, numa expressão talvez menos romantizada, ainda não se esgota nisso. Não podemos negar que a preocupação com a urgência da vida, a ausência de biopoder incorporadp e seus efeitos na visão de mundo, o medo de que ela esteja sempre em risco, compromete o horizonte semântico e tb prático, em termos de se preocupar com outras coisas ao estar despreocupado com a defesa constante da propria vida, de um modo que não compromete nos indivíduos livres desta preocupação. Ai tem uma margem de articulação de sentido cujo valor normativo nenhum de nós consegue negar em sã consciência.
Xacal, concordo com voce que o arcabouço de legitimidade do Estado sobre essa lei é bem maior e consegue responder as críticas restritas de controle do estilo de vida individual como algo supostamente ilegítimo.
Agora se a discusão está sentada em bases restritas, a primeira restrição a ser superada é a concepção juridico-legistaliva do Estado, ou seja, onde o Estado encena a sua ideologia de legitimidade. Sendo direto, é preciso ver a politica fora do TEATRO PARA TOLOS que é o parlamento e a justiça. Superemos o vício liberal de imaginar o poder se concentrando em Brasília para depois operar seus efeitos de modo coerente em nosso dia a dia...
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