Desta vez utilizo o espaço do blog para um pequeno experimentalismo textual. Dentre minhas obrigações e compromissos profissionais assumi a composição de um texto no campo da chamada "divulgação científica", assim como da "batalha das idéias", sobre a questão quilombola. Visando testar o argumento diante dos olhares sempre argutos dos leitores deste espaço, resolvi lançá-lo aqui antecipadamente.. embora reforce que ele será divulgado em publicação oficial em breve.
Até lá aguardo o generoso retorno crítico de sempre. Chegando em tempo pretendo incorporar as críticas e sugestões certamente para a versão "final".
Questão fundiária e quilombolas: sobre dívidas históricas e políticas de reconhecimento
George Gomes Coutinho
Primeiramente cabe dizer que a terra enquanto meio de produção, no Brasil, jamais passou por um processo fático macro-estrutural de reforma agrária. Em verdade seu formato latifundiário, vide as infames Capitanias de outrora, tornou-se um sustentáculo do poder que gerou os potentados locais que se concentrou nas franjas do poder, tanto no Império, quanto notadamente na República Velha e atravessa as décadas chegando ao Brasil contemporâneo. A obra de Vitor Nunes Leal, “Coronelismo, Enxada e Voto” (Editora Alfa e Ômega) é somente um dos relatos mais competentes desta problemática.
Pela sua capacidade de arregimentar recursos simbólicos, econômicos, privados e estatais, e por manterem uma das bancadas tão corporativas e longevas no legislativo nacional, os ruralistas enquanto grupo de pressão, realizam intervenções públicas ou representações jurídicas que constrangem os já parcos avanços na questão fundiária nacional. Todavia, qual não foi a minha surpresa, quando ainda no mês de fevereiro último, li em um jornal de circulação nacional que um destes grupos ia ao Superior Tribunal Federal representar contrariamente ao processo de reconhecimento e titulação dos territórios das comunidades quilombolas, passível mediante a lei 4.887 de 2003, regulamentada pala Instrução Normativa 49 de 19 de setembro de 2009. O argumento, que constava no referido jornal, alardeava que a titulação das comunidades sobre a propriedade transcorreria com facilidade. Penso que o argumento certamente seja construído por quem não conheça o trâmite para a titulação ou por quem não compreenda o trâmite. Ou simplesmente trata-se de exercício de má fé pois o processo pode ser adjetivado de qualquer forma. Só não me parece ser merecedor do adjetivo “fácil”.
A elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, documento fundamental neste processo, segue trâmites invariavelmente lentos, ricos em detalhes etnográficos, na estrutura insuficiente do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), onde há parcos recursos humanos para atender as demandas de um território nacional vasto como o do Brasil. Entram como variáveis, dentre outras: o autoreconhecimento (tarefa nem sempre viável dado o espraiamento de elementos religiosos forâneos nestas comunidades), a associação comunitária, a titulação enquanto quilombolas conferida pela Fundação Palmares em Brasília, a etnografia realizada por um etnógrafo credenciado pelo INCRA, os caminhos jurídicos e processuais de idas e vindas, etc.. Por tudo isto cabe a dúvida se o que se encontra no preâmbulo da Constituição Nacional de 1988, que ano passado completou 20 anos de existência, a prevalência dos direitos sociais sobre os direitos estritamente civis (individuais) faz de fato algum sentido prático. Todavia, poderia-se constituir todo tipo de crítica. Mas não que a titulação seja “fácil”.
Em verdade, a resposta dos movimentos sociais envolvidos com a questão fundiária e étnica para as modificações nos processos de titulação foi diversa. Dentre estas, levantadas pelas associações quilombolas e agrupamentos envolvidos na representação das comunidades tradicionais, está a maior burocratização do processo na medida que os remanescentes de quilombos, visto que a cultura é sempre dinâmica, possam ter sua auto-compreensão simplesmente apagada no longo trâmite dos processos. Resumidamente, na leitura dos movimentos sociais aí envolvidos, deu-se um passo para frente, onde delimita-se com ainda maior exatidão formal o que venha a ser uma comunidade remanescente de quilombo. Mas, optou-se por dar dois passos para trás ao complexificar demasiadamente a titulação de terras sem o incremento logístico que garanta a agilidade estatal para as demandas apresentadas. Isto sem contar na queixa pela opção top-down como diriam os americanos, no encaminhamento destas questões, ou em bom português, uma dinâmica encaminhada de cima para baixo, na medida em que houve parca mediação com os movimentos sociais.
Para ser ter uma noção quantitativa, estima-se que tenhamos pouco menos de 1300 comunidades reconhecidas pela Fundação Palmares, portanto auto-reconhecidas enquanto comunidades remanescentes de quilombos. Destas apenas 150 obtiveram também a titulação de suas terras, um número infinitamente menor das reconhecidas pela Fundação Palmares dentre tantas outras que ainda podem estar sem qualquer aparato técnico ou institucional , que permitam sua sustentabilidade em acordo com a convenção169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que prescreve acerca dos direitos dos povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário.
O que deve ficar claro, em um sentido progressista, é que práticas como as que permitam a titulação de terras para estas comunidades são enquadradas em uma concepção de Estado onde há saltos civilizatórios qualitativos. Em outras palavras, temos o que autores contemporâneos como o Axel Honneth ou Nancy Fraser chamam de “política de reconhecimento”, visto que o Estado, longe do agente individual abstrato liberal, traz para si a compreensão de que é preciso tratar desigualmente os desiguais. Ou que se trata de materializar os sujeitos em contraposição a uma noção de indivíduo que não encontra solo em qualquer apreensão fática.
Ainda, o Estado detém uma dívida simplesmente inviável de ser mensurada em termos monetários, na medida em que garantiu institucionalmente meios de perseguição e violência, então legítimas, naquele momento contra escravos em prol de seus senhores. A sociedade brasileira livre participou de maneira decisiva e usufruiu, direta e indiretamente, da mão de obra escrava negra e indígena. Devemos ter me mente o quanto de subversivo há na poderosa imagem dos negros “fugidos” que por uma questão pragmática necessitavam de um tipo de asilo simbólico que somente os quilombos, afastados geograficamente e ocultos simbolicamente do restante da sociedade, poderiam oferecer.
Finalizando, em cada momento em que o senso comum midiático ou mesmo os agrupamentos políticos movem-se criminalizando ou obstaculizando as políticas de reconhecimento, como as que permitem a titulação de territórios de remanescentes de quilombos, ou mesmo quando setores militares arrastam indefinidamente a complexa situação da comunidade da Marambaia (litoral do Estado do Rio), estamos retroagindo nos processos civilizatórios que indiquem a possibilidade real de que seja paga esta dívida histórica de nossa sociedade. Mesmo que seja para as gerações atuais e vindouras.