Bonnie Azevedo nos brinda com um relato instigante sobre sua inserção profissional, que destoa das expectativas afeitas à visão corrente do ofício do cientista social como exclusivo às instituições de ensino superior. Bonnie fala de um lugar específico, a Antropologia, cujas implicações metodológicas são reveladas em muitos dos desafios (e agruras) da etnografia do consumo de bens e serviços ao tornar-se uma demanda crescente no setor privado. Boa leitura!
O LUGAR DA ANTROPOLOGIA NO "OCEANO AZUL"Por Bonnie Azevedo
Recordo que nos tempos de minha graduação em Ciências Sociais na UENF, pouco soube sobre Antropologia do Consumo ou da inserção de antropólogos no mundo corporativo. Assisti a uma aula sobre “O mundo dos bens”, considerado o marco inicial dos estudos antropológicos no campo do consumo, tal como o conhecemos hoje, mas na época, talvez por estar envolvida em outra temática de pesquisa, não dei muita importância.
No entanto, a graduação anunciava seu fim e me deparei com a possibilidade de desenvolver um projeto de pesquisa no mestrado que tangenciava o tema do consumo. Ao chegar a UFF, nas minhas primeiras aulas de Antropologia do Consumo, pensei “é isso”. Senti ter encontrado o que faria dentro da Antropologia e, certamente, essa escolha não era apenas acadêmica.
Pragmática por demais, sempre me senti deslocada e angustiada com uma crença, que parecia generalizada entre muitos de meus amigos: a carreira acadêmica era ‘o’ destino que aguardava todos nós. Quero deixar claro que não tenho nada contra a carreira acadêmica, e de todo, nunca a descartei inteiramente. Meu ponto é que ela não deveria ser uma certeza com uma aura de fardo e era exatamente isso o que ela era pra mim. Precisava saber, portanto, que eu tinha uma escolha.
Em 2006, questionando aquela que viria a ser minha orientadora sobre as perspectivas de trabalho para um antropólogo fora da academia, escutei: “Bonnie, as empresas estão desesperadas por antropólogos”.
Decidida e, desde então, sem mais questionar o que estava fazendo dentro da Antropologia, mergulhei nos estudos de consumo, de onde não mais saí, e pesquisei casos onde os antropólogos, ao prestar serviços como consultores, realizaram estudos para grandes empresas. Entre elas estavam Unilever, Xerox, Microsoft, Nokia entre outras. Havia entendido que o papel do antropólogo nessas empresas era o de ser o mediador – ou mesmo interlocutor – entre a empresa e seus clientes/consumidores-alvos, sempre na condição de um consultor. Ele seria contratado para realizar uma etnografia e para analisar os dados qualitativos resultantes das entrevistas e da observação participante, cujo resultado seria entregue num relatório final[1]. No entanto, o que tenho observado em um determinado segmento de atuação de antropólogos no mercado é diferente. Por essa razão, creio que nós, antropólogos em geral, precisamos estar atentos ao que, em minha opinião, anuncia realidades vindouras de pesquisa de campo para o mercado: realidades de ‘etnografias’ que fogem criticamente de seus principais propósitos.
A realização da etnografia, tal como é ensinada nas cadeiras de antropologia nos cursos de Ciências Sociais, preza por treinar os alunos, ao longo de várias disciplinas (e, conseqüentemente, diversos trabalhos finais) na sensibilidade e na atenção necessária ao fazer antropológico, envolvendo alguns pontos que eu discrimino a seguir:
Uma imersão no campo que precisa estar atenta à relativização do universo cultural do pesquisador, a fim de que este absorva as riquezas culturais do que ele está se propondo a observar;
Olhos, ouvidos, nariz... Enfim, toda sorte de sentidos da percepção aguçados na observação e sensação do ambiente em sua totalidade: físico, social, cultural etc;
Observar o ‘outro’, livre de pré-conceitos culturais;
Adquirir empatia para com o nativo e sua comunidade;
Refletir fundamentado nos instrumentais teóricos para não cair em vãs comparações incomparáveis;
Enfim, como diria DaMatta, um longo e exaustivo, porém prazeroso, exercício de tornar o exótico, familiar e o familiar, exótico.
Tudo isso para que o pesquisador tenha os resultados esperados da etnografia, resultados estes que a distinguem como um método ímpar de pesquisa sócio-cultural. Ela nos confere acesso às motivações profundas dos comportamentos individuais e sociais; permite-nos entrar em contato com o “tom emocional” (ethos) dos eventos; alcança o implícito e o explícito, os detalhes, o inconsciente (razão a qual muitos dos contratantes se atraem pelo método); capta o que ‘o nativo’, no nosso caso, ‘o usuário’ ou ‘o cliente’ não sabe e/ou não consegue racionalizar em palavras em um questionário ou grupo focal, métodos comuns na pesquisa de mercado tradicional.
Embora em níveis de profundidade e exigências diferenciados, as razões que expus acima são consideradas os grandes diferenciais e ganhos de se usar a etnografia como método tanto na academia, quanto no mercado.
Casos como o da Xerox [2], entre tantas outras etnografias de mercado bem sucedidas, ilustram que uma pesquisa de campo levada a cabo por antropólogos que passam algum tempo com consumidores em suas situações de compra e consumo pode trazer contribuições importantes à vida desses consumidores.
No entanto, algumas das pesquisas clamadas ‘etnográficas’ que vêm sendo realizadas abdicam justamente daquilo que as distinguem. Isso me leva a acreditar, diante do que tenho observado, que qualquer profissional minimamente treinado em observar usuários, independente de sua formação, pode realizar tal levantamento, pretensamente ‘etnográfico’. Pesquisas que supostamente levariam semanas ou meses para ser executadas e para condensar dados significativos sobre determinado universo sócio-cultural de consumo têm sido realizadas em períodos insignificantes, inconstantes, e mal-planejados. Exatamente por isso suas informações e análises podem ser superficiais.
No macro ambiente de mercado, o excesso de informação se tornou uma conseqüência da “era da informação”, onde o importante era adquirir o máximo de informações possíveis, criar bancos de dados, usar ferramentas estatísticas eficientes para processá-los, estar atento às notícias dos últimos minutos, porque afinal, atualizar-se é uma das competências imprescindíveis do mercado atual. No entanto, como disse recentemente um de meus professores [3], estamos passando por um momento de transição da era da informação para a “era da análise”. Isso não quer dizer que os valores da era da informação não estejam mais presentes. A mudança reflete o atual ‘estado da arte’: há um excesso de informações, mas o potencial de análise dos sistemas é insuficiente para condensá-las de forma significativa para o processo de tomada de decisão.
Em suma, há muita informação e conteúdo e pouca capacidade de análise. Ora, o que somos nós, cientistas sociais, se não treinados analistas de informações? Ir a campo, coletar dados, interagir com ‘nativos’, criar quadros mentais condensando informações, entender os universos simbólicos, comportamentos, formas de associações e relacionamento, valores, concepções de mundo, estilos de vida, histórias de vida, para então refletirmos sobre o que esses dados dizem sobre o mundo para nós. Não é exatamente isso que fazemos desde nossos primeiros ‘trabalhos finais”? Ou seja, o próprio ‘mercado’ está nos dizendo que somos peças necessárias no “oceano azul” que se delineia, onde a estratégia de expansão empresarial é mais voltada para encontrar espaços inexplorados no mercado do que para a acirrada concorrência (por uma pequena fatia) em um mercado saturado [4].
‘Pesquisas etnográficas’ se desprenderam tanto do seu caráter ‘original’ ensinado na Academia, que hoje já começa a haver uma distinção entre antropólogos e etnógrafos. Estes últimos seriam quaisquer uns daqueles que vão a campo com papel e caneta – e/ou todos os equipamentos tecnológicos disponíveis, como gravadores de áudio, câmeras fotográficas e filmadoras digitais (escondidas ou não) – em busca de um determinado comportamento de compra e uso de produtos ou serviços, de um perfil específico de consumidor.
Posso afirmar isso, até como ‘nativa’. Recentemente fui entrevistada por uma aluna de graduação (não uma graduação de antropologia) que procurava saber especificamente sobre os sapatos com os quais eu vinha trabalhar [5]. O tipo de pesquisa que a vi fazer é bem semelhante ao que sou requisitada a realizar em meu trabalho. Estive conversando com ela uns 20 a 30 minutos e por ser antropóloga já supunha algumas das questões que seriam interessantes de se apresentar a ela. Mesmo assim, deixei que ela conduzisse a entrevista e tentei, ao máximo, apresentar o conjunto de coisas que estavam relacionadas à resposta de suas perguntas – que eram gerais, temáticas e não pontuais como num questionário, o que me levava a crer que seu propósito era desenvolver uma pesquisa com um significativo viés qualitativo. No entanto, para minha surpresa, ela não anotou mais do que 10 palavras em no máximo cinco linhas, o que indicava que ela tinha um quadro mental prévio do que ela queria saber e todo o contexto que eu lhe estava sugerindo poderia ser ignorado para os seus propósitos.
O caráter exploratório de uma pesquisa etnográfica no mercado, normalmente, é quase anulado, uma vez que eles já sabem onde querem chegar. No entanto, os antropólogos que vão a campo com tempo e background suficientes, conseguem dados que não só atendem às expectativas da empresa, como apresentam questões que não foram formuladas, mas que também se mostram cruciais aos propósitos da empresa contratante. Como afirma o próprio Tom Kelley [6], antropólogos são
extremamente capazes de resolver o problema sob uma nova ótica – com base nas idéias que desenvolveram durante suas pesquisas de campo – a ponto de a observação certa não raro ser revolucionária (KELLEY, 2007: 16).
Por isso, afirmo que há uma grande difusão da pesquisa qualitativa no mercado, movimento esse que começa a se difundir nos circuitos de Marketing e Comunicação em geral e mais recentemente no Design [7]. Apesar desse reconhecimento, algumas dessas pesquisas não se atêm às características mais valorizadas do método. Um dos principais empecilhos é o tão famoso “tempo”. O texto “Etnografia: a nova pesquisa de mercado” já anuncia isso como uma realidade para a qual as empresas precisam estar atentas.
Esse tipo de processo consome bem mais tempo do que o preenchimento de um questionário ou a organização de uma discussão com a mediação de um especialista. Por isso, outra recomendação dada pelos mais experientes é reservar a esse tipo de pesquisa o tempo realmente necessário. É preciso olhar com reservas para a empresa de pesquisa de mercado que prometer utilizar a etnografia e apresentar um relatório em dez dias; um estudo dessa natureza requererá algumas semanas para soltar apenas uma "primeira avaliação". E será preciso haver uma boa equipe multidisciplinar conduzindo o estudo e representatividade dos grupos observados (HSM Management 60 Jan-fev 2007).
Antropólogos dispostos a “encarar” as etnografias de mercado devem saber que serão felizardos se tiverem a oportunidade de fazer o que é considerado uma etnografia rápida – “quick and dirty” –, levada a cabo de dois a três meses, porque a realidade atual já não mais me permite considerar muito do que tem sido feito, como etnografia, nem mesmo “quick” ou “dirty”. Por mais que eu escute nos mais diversos ambientes falas que revelam a importância de uma pesquisa qualitativa bem conduzida, seja ela etnográfica ou não, estas mesmas falas sempre vem acompanhadas de “a questão é que pesquisa é uma atividade cara e demanda muito tempo”. O que antes se pesquisava em 2 meses, hoje se faz em 1. E é isso que me preocupa. Até quando o “tempo” de pesquisa será “relativizado”.
Como não poderia deixar de atingir a nós, antropólogos, lá estão elas, as re-significações de métodos, de usos, de experiências e a tão famosa adaptação a essas transformações, onde não são os mais fortes que sobrevivem, mas os mais desprendidos dos métodos tal como aprenderam, os que facilmente se tornam “metamorfoses ambulantes”.
Nós, antropólogos, treinados a ver diversos mundos e a considerá-los (e por que não valorizá-los?) pelo que são, deveríamos, supostamente, adaptar-nos facilmente a essas mudanças. Entretanto, acredito que, consciente ou inconscientemente, haja um treinamento tão intenso de valorização da etnografia como o método por excelência da Antropologia, e do resultado que sabemos que ela é capaz de oferecer, que sentimos (ou pelo menos eu sinto) o que não acho palavra melhor para descrever do que “dó” e/ou “frustração” em ver seu potencial ser relegado a um segundo plano pelas contingências temporais, financeiras, enfim... pós-modernas.
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Seguem abaixo não apenas os artigos que foram citados, mas também os que serviram de inspiração a feitura desse artigo e que são uma excelente fonte para os interessados em entender melhor sobre as etnografias realizadas nas empresas. Eles versam tanto sobre experiências nacionais como internacionais.
BARBOSA, Lívia. Marketing etnográfico: colocando a etnografia em seu devido lugar. RAE. Vol 43. n 3. JUL/SET/2003. PP 100-105. Disponível em http://www.rae.com.br/artigos/1891.pdf. Acessado em 07 de outubro de 2009.
BARROS, Carla. A contribuição da Antropologia ao Marketing nos estudos sobre consumo. Seminário Estilo de vida e Consumo. Senac 2008. Disponível em http://www.rj.senac.br/img/Semin%C3%A1rio%20Estilo%20de%20Vida%20e%20Consumo_18%20e%2019%20de%20setembro%20de%202008.pdf. Acessado em 07 de outubro de 2009.
CAMPOS, R.; CASOTTI, L.; SUAREZ, M. Possibilidades de Contribuição da Sociologia ao Marketing: Itinerários de Consumo. Anais do II Encontro de Marketing da ANPAD – EMA, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em http://www2.coppead.ufrj.br/port/pdf/catedra/metodo_itinerarios.pdf. Acessado em 07 de outubro de 2009.
Dossiê ‘Etnografia: a nova pesquisa de mercado.’ HSM Management 60 Jan-fev 2007. Disponível em http://www.novonordisk.com.br/documents/promotion_page/document/etnografia_nova_pesquisa_mercado.asp. Acessado em 07 de outubro de 2009.
KELLEY, Tom. LITTMANN, Jonathan. As 10 faces da inovação: o poder da criatividade e da inovação na empresa. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2007.
KIM, W. Chan & MAUBORGNE, Renée. A Estratégia do Oceano Azul. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2005.
PEIXOTO, Fabio. Invasão de domicilio. Revista Exame. 08.08.2001. Disponível em http://www.culturaesociedade.org/pdf/Invasaodomicilio.pdf. Acessado em 07 de outubro de 2009.
SURI, Jane Fulton. HOWARD, Suzanne Gibbs. Going deeper, seeing further: enhancing ethnographic interpretations to reveal more meaningful opportunities for design. Journal of Advertising Research, September 2006, pp 246-250. Disponível em http://www.ideo.com/images/uploads/thinking/publications/pdfs/jar_2006.pdf. Acessado em 07 de outubro de 2009.
[1] Poderíamos considerar isso como a tradução do caminho de uma pesquisa acadêmica tradicional para uma pesquisa etnográfica voltada para um objetivo específico, demandada por um contratante: o ponto de partida com a idéia da pesquisa, seguida do planejamento de campo, trabalho de campo, análise dos dados e apresentação dos resultados encontrados.
[2] Em 1979, a Xerox “(...) contratou a antropóloga Lucy Suchman para trabalhar no centro de pesquisa instalado em Paio Alto e a incumbiu de fazer um trabalho de campo: Suchman deveria visitar as empresas que haviam instalado fotocopiadoras da marca e realizar um filme com uma síntese da "experiência" dos profissionais na hora de utilizar o equipamento. Depois de assistir à luta dos operadores com as copiadoras para tirar uma cópia, os engenheiros da Xerox começaram a desenvolver o produto de maneira diferente. A pesquisa feita pela antropóloga resultou nas atuais máquinas copiadoras (de todas as marcas), que hoje ostentam um grande botão verde bastante visível, mas que no passado ninguém conseguia encontrar. Seguindo o exemplo da Xerox, na década de 1980 as agências de design industrial começaram a incluir em seus quadros de funcionários antropólogos e sociólogos.” (HSM Management 60 Jan-fev 2007)
[3] Atualmente curso uma pós-graduação em Marketing Estratégico.
[4] A metáfora do oceano vermelho (concorrência acirrada) e o oceano azul (inovação) é discutida num livro muito comentado nos ambientes organizacionais: “A estratégia do oceano azul” de W. Chan Kim & Renee Mauborgne.
[5] Desnecessário aqui dizer o nome, o curso, ou o propósito da pesquisa.
[6] Gerente da IDEO, empresa que trabalha com Design Thinking como método para desenvolver inovação. Nesse método, a etnografia é o ponto de partida.
[7] A etnografia se destaca como método ou inspiração para os trabalhos que hoje são realizados em marketing etnográfico, branding experience, design thinking, design estratégico, user experience, design sensorial, método de itinerários, entre outros.