terça-feira, 24 de novembro de 2009

O muro de Berlin, a exclusão, o território e a liberdade dos corpos

Roberto Torres

O vigésimo aniversário da queda do muro de Berlin foi marcado como uma comemoração da vitória da liberdade contra a tirania, em termos concretos, da vitória da democracia de mercado sobre a ditadura do socialismo de Estado. É este consenso que parece estar presente no “significado universal” da queda do muro. Eu não consigo encontrar nenhum argumento que invalide este sentido. Mas creio haverem alguns argumentos que demonstrem que esta semântica é incapaz de considerar as condições estruturais necessárias para que a queda de “um muro politicamente centralizado” opere de fato como um ganho de liberdade. O argumento é que o “muro politicamente centralizado” não é o único que restringe a “liberdade de movimento dos corpos” ( o que entendemos como o direito civil de “ir e vir”). Estruturalmente também podem atuar “muros politicamente descentralizados”, como sempre procurou mostrar Michel Foucault, capazes de restringir cotidianamente para onde certos corpos podem ou não se deslocar.
O “problema do muro” (de Berlin) é que ele é exposto em praça pública de modo que todos podem vê-lo sem nenhum esforço. Ele destaca desde sempre que a política se relaciona com o território, com a administração burocrático-militar de uma jurisdição. O muro se tornou uma forma de regular a relação entre território e corpo, entre certo território e certo tipo de corpo. Mas ele é apenas o recurso visível entre várias outras possibilidades de obter o mesmo sucesso. A tese de Foucault me parece avassaladora quanto a isso: a especificidade da “política moderna” é que ela é feita com enquadramentos, limites, decisões, que ocorrem de modo intransparente para o “público”. Elas acontecem em organizações autárquicas, as quais nem o “poder central”, representado na ideia do “Estado soberano”, com sua legitimidade juridicamente assegurada, nem a “opinião pública”, hegemonizada pela comunicação de massa, conseguem dirigir.
E é justamente o poder autônomo destas organizações para limitar e induzir o “movimento dos corpos” que confere à política moderna sua estrutura antidemocrática. Para Foucault, isso se condensa na fórmula “Estado policial versus Estado de direito”. Mas também a burocracia em geral, com o monopólio do “poder simbólico” (a começar pelo de emitir ou negar vistos, controlar fronteiras, e que sempre produz e controla a dinâmica dos corpos.), atua a revelia de tudo que venha da representação soberana do Estado. Em resumo: organizações políticas que não aparecem na política oficial executam poderes sobre o corpo cuja forma de operação ignora o que acontece nas proclamações e festejos da liberdade nas praças, nos parlamentos e na televisão.
O poder direcionado ao corpo, que o toma como “matéria” de suas operações, atua antes de tudo na relação do corpo com o território, ou seja, de modo a estruturar, a estabilizar expectativas no modo como o corpo ocupa o território. Nos dando um nome e assim dizendo onde é nossa casa, decretando nossa prisão, nos capacitando com recursos materiais e “imateriais” que nos credenciam a ocupar certos espaços etc. Nenhuma sociedade conseguiu tao bem fazer isso em detalhe, ainda que com enormes ansiedades geradas pela própria pretensão do controle sobre o rendimento do processo, como fez a sociedade moderna, espalhada pelo mundo todo. A política moderna vitoriosa é esta do corpo, convenientemente silenciosa, e não a política dos parlamentos, das eleições, da crítica, enfim, da democracia. A política do corpo que estrutura minuciosamente as possibilidades da ocupação do espaço começa na família. É nesta esfera institucional que o controle do espaço, através da exclusividade do território doméstico, e o controle do tempo, através do período reservado para a educação do filho, criam os pressupostos para tomar decisoes. A ideia de que a família é a “célula da sociedade” não poderia ser mais falsa. Tudo o que julgamos natural de ser praticado e estruturado na espera doméstica é o produto artificial (tornado realidade) de estruturas e poder sociais mais complexos que os laços de sangue ou qualquer coisa que possamos imaginar como “afeto espontâneo”. Laços afetivos, mesmo os reproduzidos no íntimo do lar, são socialmente estruturados já (embora também dentro) fora dele.

Um certo “instinto anarquista” incauto nos levaria a concluir que somente a “emancipação” deste poder seria algo em prol da democracia e da liberdade. O triunfalismo envolvendo o muro de Berlin é a visão de direita que insiste em ver somente na “emancipação” da organização estatal o caminho para a liberdade, como se (como sempre....) para participar do mercado não tivéssemos que desde sempre participar de alguma organização. No pano de fundo desta noção de “emancipação” está uma ideia de “liberdade” que nega a sua própria condição de possibilidade ao caracterizar sua negação como “imposição”, como se o indivíduo “livre” existisse contra o poder organizativo da sociedade, como se ele não fosse de modo organizado “tornado livre”. Uma crítica a este “como se”, a este passe de mágica discursivo, estará condenada a reproduzir uma exigência idealizada de democracia, cujo sentido é justamente ignorar que a política do dia a dia não é coordenada pela representação soberana e jurídica dela, enquanto não superar esta semântica da liberdade que esconde a gênese atualizada de todo agir livre: o acesso arbitrário a organizações que detêm a munição cognitiva e motivacional para a escolha e a decisão. Democratizar a política do mundo real é democratizar o acesso a organizações, desde a família nuclear até os meios de comunicação de massa.

2 comentários:

Fabrício Maciel disse...

O próprio Estado nacional em sua configuração de froteiras é um destes principais muros que limitam os corpos. Com a queda do muro de Berlin, quase que paralelamente se reforça o muro da comunidade européia, e principalmente de seus países mais poderosos, se aproveitando do discurso do terrorismo para resolver um outro problema. Trata-se de impedir que uma ralé mundial crescente entre na Europa, derivada de um refluxo histórico do capitalismo mundial, marcado pelo fracasso do Welfare State e pela concomitante reestruturação produtiva intelectualizada.

Roberto Torres disse...

E isso mesmo. Hoje o problema é que nao da mais para deixar esta ralé em colonias, zonas de fronteiras da propria sociedade mundial, e nem assegurar inclusao economica como era possível na época da reconstrucao dos países no pós guerra.