domingo, 22 de março de 2009

“Quem quebrou a casa de meu Pai?” Uma breve resenha*

Depois de alguma relutância, que se devia por ter eu uma certa antipatia com quem fez a contra-capa do livro, — acho que quem não admira a vida intelectual e até mesmo se ressente dela não deve ter o direito de participar dela, mesmo que de forma coadjuvante — resolvi ler o livro de Antonio Carlos Pereira Pinto, intitulado “Quem quebrou a casa de meu Pai?”. Pra quem não conhece, o livro narra uma parte da história da decadência das usinas de Campos a partir do olhar de alguém que estava no olho do furacão, o autor, além de ter sido deputado em mais de um mandato (PDT) é filho de um dos importantes usineiros da região no período da decadência.

Ao ler as primeiras páginas do livro, temos a impressão que nos depararemos com um tipo de literatura muito similar à alguns outros livros que tem sido lançados em Campos nos últimos anos, a saber, um conjunto de memórias relatado por uma aristocracia rural que olha para o passado com um saudosismo natural de quem perdeu o prestígio que tinha. Quanto a isso, o livro de Ivone Wagner (“A estrada da Saudade”), no qual ela apresenta um conjunto de relatos dos tempos da fazenda do seu pai, a importante fazenda do colégio, aquela do solar dos jesuítas, é um marcante exemplo deste tipo de literatura. Porém, com o seguimento da leitura do livro percebe-se que este vai muito além de ser apenas um conjunto de memórias pessoais, a narrativa avança sobre outros flancos, nas quais eu destacaria três pontos como valiosos: (1) o conteúdo histórico, (2) o drama familiar que se desenrola, e por último, (3) a personalidade do “personagem” principal, o “velho”.

Numa terra intelectualmente devastada, como é o caso de Campos dos Goytacazes, qualquer relato de memórias já se torna um documento histórico valioso, mesmo de forma simples, preenche um vazio imenso deixado pela intelectualidade local. Vazio este construído pelas faculdades locais e que o Centro de Ciências Humanas da UENF não deu ainda mostras que é capaz de preenchê-lo. Assim, o livro de Pereira Pinto, mesmo nao sendo uma obra construída e elaborada por um rigor científico (não se pretende a isso) se distancia dos meros relatos de memórias, podendo ser um bom instrumento e fonte para quem busca entender a sociedade local. Na leitura do livro podemos mergulhar em parte da história econômica e política de nossa região, como também flertar com a história nacional e seu impacto regional, já que o autor narra fatos do golpe e do governo militar os quais pode presenciar como deputado até sua cassação pelo regime, e depois pode presenciar através de outro ângulo, como empresário (usineiro) na negociação da política econômica do regime militar em relação às usinas do norte fluminense.
Em paralelo aos eventos da história nacional e regional, um drama familiar digno de roteiro de bons filmes se instaura no seio da família Pereira Pinto. A intervenção do regime militar na economia local, que se dá através de uma “proposta” (imposição) de empréstimo fácil de dólares americanos para “modernizar” a produção açucareira do norte-fluminense é o estopim que incendeia um barril de pólvoras na família. A “proposta” tem o mesmo efeito daquela feita por Virgil Solozzo ao clã dos Corleone na obra de Mario Puzzo, adaptada ao cinema sobre o título de “O poderoso Chefão”. Assim como os olhos dos filhos do Don Corleone (Sonny e Tom Hagen) brilharam com a proposta de Solozzo, brilharam também os olhos dos filhos do velho Pereira Pinto com a “proposta” dos militares. Porém, da mesma maneira que com a astúcia de uma raposa o Don Corleone rejeita a proposta de Solozzo, o “velho” Pereira Pinto rejeita a “proposta” dos militares. A experiência de vida tinha ensinado a ambos sempre desconfiar de propostas muito generosas. No seguimento da história a estratégia dos militares não foi muito diferente da de Solozzo, sacar o “velho” da frente dos negócios para implantar seus planos junto aos filhos. Diferente do filme, os militares conseguem colocar os filhos contra o pai, e a partir daí um grande drama se desenrola.

Mesmo descontando os possíveis exageros que o autor possa ter cometido ao descrever o pai (nisso não vai uma crítica, é natural que um filho que ama e admira seu pai proceda assim), o “velho”, como é chamado no livro, tinha uma personalidade extraordinária, era um homem de espírito como diria outrora. Do ponto de vista político, longe de ser um homem de esquerda mantinha-se a léguas de distancia do liberalismo (ou neoliberalismo) que começava a crescer aqui. Na verdade, era um homem de outro tempo, com uma visão orgânica do mundo, diferente daquela visão mecânica que se instalava. Não tinha uma visão fragmentada do mundo, na qual cada um deve ocupar-se e especializar-se em setores isolados da vida, preocupava-se sempre com o todo, e a sua sensibilidade para o universo econômico se baseava nisso. O “velho” tinha uma postura titânica ante ao mundo, queria na verdade construir e gerenciar seu mundo particular, sem a interferência externa, queria fazer de seu conjunto de fazendas e duas usinas uma unidade auto-suficiente, um feudo moderno para ser mais claro. E para consolidar isso, desafiou o seu tempo, mas como era um mortal, o deus do tempo o engoliu, trazendo novos ares, mas não necessariamente melhores.

A meu ver, esses três aspectos que eu pus em destaque, são ao mesmo tempo os trunfos e o calcanhar de Aquiles do livro, são tão fortes que parece que o autor não se decidiu por qual deles iria construir sua narrativa, o livro pendula várias vezes em ser uma narrativa de fatos históricos ou um grande romance de drama familiar ou a biografia de um grande homem. Mas creio ser isso perdoável pra quem não é um profissional do ramo.

O fim desta história é a quebra das usinas e o desmantelamento do poder provindo das oligarquias rurais na região, os desempregados das usinas vindo pra cidade, as favelas aumentando bruscamente, e um profeta da periferia urbana surgindo e arregimentando essa massa, mas isso é uma outra história. . .


* PINTO, Antonio Carlos Pereira. “Quem quebrou a casa de meu pai?”. Niterói, RJ, Comunità: panorama ED, 2004.

10 comentários:

bill disse...

Belo relato, Brand. Quem trabalhou com a indústria da cana em Campos sabe das dificuldades de fontes históricas bibliográficas. E acho que seu diagnóstico ao ressaltar o vazio intelectual na região acerta em cheio. É impressionante como no RS todos sabem a história do estado, inclusive de suas cidades, às vezes com menos de 7 mil habitantes. O povo fluminense parece sem história e parece que não se tem, ainda, mudado este quadro, a despeito das universidades que chegaram...

Paulo Sérgio Ribeiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Paulo Sérgio Ribeiro disse...

Brand, sua resenha é alvissareira, pois visiona um programa de estudos ainda pouco explorado no CCH: uma sociologia da literatura (e dos intelectuais) que tome por objeto as representações que os membros desse patronato fazendeiro local tinham de si mesmo e da sociedade em seu entorno. No mais, sua resenha está muito bem delineada quanto aos impasses vividos por esse patronato em um período de decadência, relevando, talvez, um aspecto dessa relação com o passado marcada pelo esquecimento, como Bill mencionou.

Brand Arenari disse...

Bill, acho que vc tocou num ponto importante, a questão da memória. Para além de várias mazelas que a falta dela traz, acho que essa falta tem um impacto político muito ruim. As pessoas em Campos vivem numa ditadura do presente, isso limita a visualização da possibilidade de outros ações políticas, naturalizam a realidade, não a entendem como construída. Parece que a cidade nunca existiu sem o Garotinho e seus asseclas. Por outro lado, essa ausência de memória tem um impacto forte sobre um dos maiores problemas da cidade de Campos, a falta de auto-estima coletiva. A maioria da classe média campista de vergonha de ser da cidade, não saberia dizer se em outras classes é assim Tb. A cidade não sabe de seu passado de importância, e até beleza. Por incrível que parece essa cidade já foi bonita, basta ver as fotos antigas. A cidade é a associada hj com as últimos figuras de destaque que fizeram fama nacional, a saber, Caixa D’agua, Garotinho e Rosinha. Assim é natural que as pessoas sintam vergonha.
Reconstruir a memória de campos é um ato político que quem almeja ser oposição não pode prescindir!

Brand Arenari disse...

Paulo, as dívidas intelectuais das universidades locais (e nisso não exclua a UENF) parece so aumentar. Pouco se tem feito.

bill disse...

Não há maior fonte de identidade que a história, e por isso ela deve ser tão cuidadosamente construída, para evitar seu aproveitamento por aqueles que estão contando. Mas pior que isso é não ter história e consequentemente não ter identidade. É como vc disse, Brand, a pior prisão é o presente: este não tem identidade e nem projeto de futuro.

Paulo Sérgio Ribeiro disse...

Sem dúvidas, Brand. O seu texto e todos os comentários feitos até aqui passam pelo crivo da auto-crítica.

Roberto Torres disse...

A consequencia política mais séria desta prisao ao presente é nao poder acreditar que o mundo possa ser de outro modo. Assim política em Campos vira sinonimo de decidir se é Arnaldo ou Garotinho... E quando se crítica Garotinho, se é quase automaticamente enquadradado como um arnaldista... A ditadura do presente aprisiona também a concepcao que se pode ter sobre a formulacao de interesses, como se nínguem pudesse ter interesse de longo prazo, de modo que isso soa ridículo muitas vezes. Assim, nao se consegue imaginar que eleicoes possam ser decididas fora do jogo do clientelismo vigente.

Splanchnizomai abraçando o amanhã. disse...

Eu também quero perguntar? Quem quebrou a casa do meu Pai de Amor e de Misericórdia em Campos? Quem?

Fabrício Maciel disse...

Brand, o livro parece oferecer através desta história um panorama de toda uma geração. através dela dá pra imaginar o cenário político e social que abre espaço para o Muda Campos, se as mudanças nacionais foram difíceis para os mais poderosos, que dirá para as camadas populares.