por Fabrício Maciel
Continuando a série "Analisando a nossa identidade", iniciada por Brand, quero falar um pouco da relação que o conteúdo específico disso que há muito conhecemos como brasilidade tem a ver com a negação tanto teórica quanto prática, seja na academia ou na política, do significado dos conflitos sociais. Venho analisando desde minha monografia de graduação, o que resultou na publicação de meu livro "O Brasil-nação como ideologia" (Annablume, 2007), que o conteúdo específico do mito nacional brasileiro consiste exatamente na negação do peso que os conflitos sociais exercem em qualquer formação cultural. Desde o início oficial do Brasil, com nosso "patriarca" da independência José Bonifácio, montou-se para o brasileiro a identidade de povo naturalmente bom e hospitaleiro. Tal personalidade dócil, fruto da mistura espontânea de três raças, seria superior à qualquer outra no mundo não por esta isenta de sofrer conflitos, algo inerente à toda sociabilidade humana, mas sim por saber lidar de uma maneira prática e agradável com este. Tal habilidade é o que se sintetiza perfeitamente na figura do malandro, portador por excelência de nosso celebrado "jeitinho brasileiro".
Passando pela sistematização teórica acadêmica, cuja obra de Gilberto Freyre apresenta a versão mais perfeita, e reproduzindo-se em intelectuais contemporâneos, de forma explícita, como em Roberto Damatta, e muitas vezes, o que é pior, de forma implícita, como em muitos outros, nosso mito vem sobrevivendo, tanto mais eficaz em seus perversos efeitos políticos quanto mais invisível e diluído parece. Um mito coletivo, definido como um conteúdo cognitivo e emocional específico que atribui a sensação de singularidade a um grupo social, não sobrevive apenas como idéias soltas no ar, que passam por exemplo na televisão. Ele é praticado desde o início na vida comum e obviamente na política. É um traço fundamental dos imaginários sociais modernos, que substituem as narrativas religiosas da antiguidade, a percepção de singularidade e autenticidade, ou seja, a doce sensação que temos de ser únicos no mundo, e mais do que isso, o povo mais interessante e atraente. Variando no conteúdo específico dos mitos nacionais, cada nação de algum modo vivencia esta experiência. No entanto, o que desejo ressaltar como prejudicial em nosso caso (não que não haja problemas com os outros mitos, mas aqui só posso falar do nosso agora) é que seu conteúdo resume-se exatamente na negação de algo que não pode ser esquecido na vida política: o conflito latente a toda relação social.
Os efeitos desta nossa especificidade podem ser vistos empiricamente tanto na dimensão da política nacional quanto na local, cujo material campista é rico não de agora. Ao compartilharmos uma narrativa coletiva que nos faz crer que somos bonzinhos, nunca brigamos com ninguém, sabemos levar tudo na "macieira", e todo este tipo de baboseira que o brasileiro pensa sobre si mesmo, acabamos nos sentindo sempre vítimas e procurando lançar a culpa no outro. Como não podemos esperar que outro povo resolva por nós, o outro culpado acaba sendo na maioria das vezes o Estado. Se há algo errado o problema é dele, e se alguém tem que resolver, quando não se espera por Deus, cujos desígnios não se pode questionar, e assim atribuir-lhe culpa (algo não só brasileiro) resta o Estado como demônio e bode expiatório. Não é outra coisa que sustenta implicitamente a tese ainda forte entre nós, dentro ou fora da academia, do patrimonialismo. Apostar todas as fichas no aperfeiçoamento de instituições democráticas é uma expectativa que não possui outra origem.
No geral, trata-se de uma identidade que se crê portadora de habilidades especiais para acordos. É verdade que o mundo presencia hoje uma era de escuridão, como tentei dizer em texto anterior, onde impera uma lógica de acordos. Mas no caso brasileiro, a presença da idéia de que isto é por excelência a nossa especialidade, expressa muitas vezes de forma bem intencionada na sentença de que o brasileiro supera com dignidade suas dificuldades, faz com que naturalizemos e jamais admitamos a necessidade de se entender os conflitos em nossa vida política. Enquanto isso agimos conflituosamente o tempo inteiro, mas jamais admitindo isso, se pensando como bonzinhos que precisam de ajuda. Tal personalidade cultural não poderia resultar noutra coisa senão numa passividade política, o que explica a ausência da tão evocada "vontade política" do Estado e a "alienação" do povo, como se este pudesse simplesmente querer tomar atitude e acompanhar de perto os assuntos de interesse coletivo. Isto para o brasileiro significaria uma verdadeira crise de identidade, deixar de se acreditar como povo mais gostoso, bacana e gente boa do mundo. Os efeitos políticos que esta identidade aparentemente tão maneira acarreta podem ser pensados também contextualmente em relação ao lugar do Brasil no mundo. Enquanto importamos conhecimento e tecnologia, exportamos os corpinhos deliciosos de nossas pré-adolescentes nordestinas, mas isso já é assunto para outro texto ainda sobre nossa identidade.
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2 comentários:
Fabrício, seu texto e seus argumentos estão muito bem concatenados, eles não deixam dúvidas da capacidade explicativa de sua idéia. Em virtude disso, uma questão muito importante a respeito do seu tema surge. Essa questão gira entorno da diferença entre o discurso que foi elaborado entorno das práticas sociais, e o conteúdo dessas práticas.
Não sei se vc concorda, mas creio que há uma diversidade não só dos mitos nacionais (como vc disse) mas também de práticas sociais enraizadas entorno de agrupamentos sociais, e isso muitas vezes se aplica à nação. No caso brasileiro me parece que os intelectuais (ao menos na atualidade) incorporaram o discurso do senso comum, sendo incapazes de representar a singularidade de nossas práticas sociais fora do senso comum, ou seja, não conseguem representá-la a partir de conceitos sociológicos. Neste caso, a sociologia adota uma linguagem moral e política, porém não analítica, como deveria ser. Ficamos presos no: “ou somos bonzinhos ou maus”. E aí, tudo está perdido.
Ao dizer que tudo neste nosso processo é apenas a “negação do conflito”, nos resta apenas uma saída, partir para o conflito! E um exemplo disso é o caso do racismo no Brasil. Nos dividimos dicotomicamente entre a visão idílica da “harmonia social” e a adesão ao conflito, neste último copiando acriticamente o modelo norte-americano. Mas não precisa ser muito inteligente para ver que o problema entre negros e brancos no Brasil e nos E.U.A. é bastante diferente. Presos a isso, perdemos a possibilidade de entender a singularidade de nossas relações e práticas sociais. Com esse comentário não quero fazer nenhuma afirmação fechada, apenas pontuar que acho que temos muito a caminhar nesse debate, e que também, que a naturalização da percepção do senso comum nas ciências sociais brasileiras é desastrosa.
Exato Brand, e partir para o conflito no ambiente intelectual significa explicitar as regras do jogo e como não há neutralidade em nenhuma posição, como sugere explicita ou implicitamente o relativismo predominante. Não há meio termo na relação entre idéias e realidade, quando não se explicita o que reproduz o mundo social se contribui para sua perpetuação. Atualmente, a nação ainda é uma dimensão, apesar das idéias sobre a globazização sugerirem sutilmente seu fim, onde se reproduzem teorias que omitem classe social e favorecem a perpetuação de mecanismos opacos de poder em favor de alguns Estados-nacionais no cenário mundial. Já que voce tocou muito bem no racismo, é interessante lembrar também que este elemento é também central em nosso mito. A interação entre raças é fundamental para a idéia da brasilidade negadora, na prática, dos conflitos.
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