Talvez estejamos ainda estupefatos com a frase de Obama sobre Lula, na reunião do G20. De fato, soa como algo surpreendente porque nós nos acostumamos na velha posição criada por nosso “complexo de vira-lata”, e como que de súbito galgamos patamares evolutivos em direção à nova forma de Pit-Bull. Isto é o que ouvi, em várias análises de jornal, que preferiram isto a ressaltar explicações como “gentileza” ou “afago interessado”. Não é esta a frase que mais me atraiu na reunião do G20. A mais interessante foi a de Lula, explicando o ocorrido: “vocês acham que é fácil para um americano dizer isso?”. Lula aqui inverte o argumento, e de forma perspicaz foca os EUA, não o Brasil. Minha questão principal sobre o ocorrido vem exatamente desta inversão, e pergunto: qual é a atual atmosfera cultural americana sob a qual esta frase faz todo o sentido?
Nenhum outro país se viu tanto no cinema como os americanos (talvez os indianos). Grande parte da vida americana passou na tela, grande parte de seu imaginário foi estampado em película e exportado para o mundo todo. Estamos, pois, diante de um bem cultural que apresenta as auto-representações de uma nação inteira, que ademais serviu para perpetuar duas de suas características mais identificáveis: “a honra e o orgulho americano”. Estes dois elementos combinados criaram a figura do Xerife dos filmes de John Ford, a figura dos pioneiros que em caravanas expandiam os limites territoriais em direção ao oeste profundo. Dois atores marcaram época e incorporaram a imagem da bravura, da honra e do orgulho americano: Henri Fonda e Clint Eastwood. Nesta mesma época, década de 50 e 60, o sonho americano se concretizava na “golden age”. Este era o cenário cultural propício para a exaltação da honra. Isto perdurou e, na política externa, a expressão da honra e do orgulho americano ocorria nas famosas afirmações a respeito da “arrogância americana”, do unilateralismo. G. Bush foi a expressão radicalizada e tardia dessa atmosfera cultural, que obviamente expressava subliminarmente interesses econômicos.
Mas, em Bush, aquela atmosfera já havia mudado (saiu do cargo como o presidente mais detestado da história, e pelos americanos) e ninguém expressou tão bem esta mudança como o cinema. Não falarei da cinematografia de Eastwood, que dá uma guinada (em um de seus últimos, “A troca”, a inimiga é a polícia e no mais recente, “Gran Torino”, os imigrantes asiáticos são amigos). Não falarei também dos últimos filmes dos irmãos Coen, eles são canadenses (“Onde os fracos não tem vez” é emblemático, o xerife corre do bandido). O que mais me interessa é um dos maiores filmes da história do cinema, “Sangue negro” (There will be blood, EUA, 2007, Paul Thomas Anderson). Ali há a materialização de tal mudança na atmosfera cultural americana. Há a desconstrução dos dois personagens mais emblemáticos da história americana: o pioneiro, caracterizado por um pastor evangélico e um capitalista, explorador de petróleo (para a nascente indústria símbolo americana, a indústria de automóveis). Estas figuras, sempre idealizadas, se enfrentam em todo o filme, não pela honra, mas pelos seus próprios interesses econômicos, a ponto do capitalista se converter para que sua reserva seja aprovada pela comunidade, obviamente mediante uma doação para a igreja. Os símbolos da honra americana são figuras ridicularizadas. As cenas mais interessantes são os batismos: o pastor é mergulhado em uma poça de petróleo (à força) e o capitalista no “sangue de cristo” (na cena, Daniel Day-Lewis cinicamente deixa-se banhar). Não há em nenhum momento um único valor nobre a se ressaltar.
Poderia citar vários outros exemplos, eles têm aparecido com mais força. Mas o que interessa é que estes filmes captaram talvez uma mudança nos valores americanos. Em função das migrações latinas e asiáticas? Em função da radicalização da doutrina Bush? Não se sabe, mas talvez tudo isso tenha contribuído. A questão é que em tal atmosfera cultural a frase de Obama é possível e não mais tão difícil de ser dita. Mesmo o Brasil assumindo uma posição ímpar nas relações internacionais, o que acho ser o caso, esta frase só seria dita por um líder americano em tal atmosfera cultural.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
30 comentários:
muito bom bill. toda mudança cultural é dentro, e cabe pensar no senso comum mundial contemporaneo que me parece liderado pelos norte americanos, devido a sua ainda dominação cultural. trata-se do multiculturalismo, onde é politicamente correto e inteligente ter aliados no sul. neste contexto eu concordo que Lula seja o melhor, pois está sendo comparado com políticos do eixo sul como um todo. é o que me parece agora.
o que obama disse?
Fabrício, acho que o que Bill chama de mudanca na atmosfera cultural tenta falar de um um processo de aprendizado moral trazido pelo multicultualismo. O politicamente correto do multiculti., com o sua afinidade inegável em mascarar conflitos, também nao deixa de trazer uma obrigacao moral nova, que talvze tenha a ver com a esta nova atmosfera. Eu tenho duas ressalvas a partir do texto do Bill:
1) É necessário, em termos de precisao analítica, falar dos conflitos sociais inerentes a esta mudanca de atmosfera.
2) E, com essa consideracao, é necessário também precisar no que poderia consistir essa nova referencia de valores, o que Fabrício tenta fazer ao associá-la ao multiculturalismo.
Eu acho que nada acima é contraditório com o que tentei falar. Não dá para desprezar o multiculturalismo como uma fonte de conflitos, no que tange também o seu conteúdo étnico. Não sei se esta fonte de conflitos seja a mais importante hoje (suspeito "fortemente" que não seja). Porém, acho que há um "aprendizado moral" sim, nos EUA. e acho que a frase do Obama se enquadra neste contexto. A fonte disto é que deve ser melhor investigada, não o fiz no texto, apenas sugeri, sem finalidade analítica. Acho que, hegelianamente, as coisas "mudam" em função dos contrastes, conflitos, e tudo que se enquadra nestes processos devem ser levado em conta para investigar "novos conteúdos morais".
Abraço
Excelente texto, bill!
Compartilho com a idéia de que as diversas formas de narrativas (literárias, cientificas, filosóficas) sempre guardam um compromisso com as representações coletivas que circulam e que se impõem em dada época social. Esse, no meu entendimento a priori, parece ser o caso das narrativas cinematográficas. Feita essa observação inicial, acredito que, atualmente, a principal marca (ou pelo menos, a parte mais interessante) da produção discursiva no campo cinematográfico norte-americano esteja sendo a de uma desconstrução dos mitos nacionais e tradicionais americanos. “Há tipos que se transformam em mitos”, afirmava Octavio Ianni, tendo em mente a metamorfose de personagens “típico -ideais” das narrativas históricas, sociológicas e literárias em mitos. E é nesse sentido que figuras tipológicas como o “pioneiro”, o “protestante”, o “individuo isolado e independente da cidade grande” povoaram e alimentaram por bastante tempo o imaginário social americano. No entanto, recentemente, a exemplo do cinema, é possível perceber um processo inverso, precisamente, de desconstrução, ou melhor, “desmitificação” daqueles personagens tão caros ao “mito fundacional” da nação americana. Além dos filmes lembrados por Bill, incluiria também filmes geniais, tais como “Beleza americana” ( uma crítica ácida do ideal de American of Life e da família americana); “gangues de Nova York” ( uma desconstrução da imagem romântica do pioneirismo dos WAP - White-Anglo-Saxons- Protestant – na formação da grande nação americana); “Crasch” (filme que coloca em evidência a face conflituosa do multiculturalismo); “O psicopata americano” (uma caricatura das patologias ligadas a sociedade hedonista e de consumo); e até mesmo o leve e doce “Miss Sunshine” ( denuncia sutil, mas não menos violenta, do aspecto efêmero e fútil da ideologia do desempenho). Todos esses filmes e muitos outros mais atuais representariam um processo em andamento de revisão crítica do imaginário nacional americano, outrora, marcadamente “ufanista” e uma das fontes fundamentais da atitude prepotente e arrogante dos americanos diante do restante do mundo. E vejam só, uma crítica endógena dos ideais americano. Isso, sim, me parece uma mudança significativa no aprendizado moral coletivo daquele país ( nas devidas proporções, claro).
De acordo rapaziada, tem um potencial de aprendizado que pode ser explorado sim.
O recente "Watchmen", outra pérola deste contexto, traz uma diálogo revelador. Em uma Nova York devastada pela criminalidade, imigrantes e corrupção, um dos heróis pergunta para o outro: "mas o que houve com o sonho americano?" e de pronto o outro responde "esse é o problema, ele se realizou."
A música que abre o filme é a belíssima do Bob Dylan "the times are changing"... E uma série de outros elementos reveladores de tal aprendizado vão se concatenando. O filme não é lá interessante, mas para um blockbuster, é referência demais a respeito dessas mudanças.
abraço.
legal, vou assistir.
Oi Bill,
Por Watchmen, a obra prima de Alan Moore e David Gibbons, ser da década de 1980 eu diria que esta leitura dos EUA sob um novo lugar no imaginário social já é latente da própria sociedade americana...
A autocrítica constitui o self americano como demonstra o Robert Bellah em "Habits of the heart". O lugar da autocrítica é elemento constituinte do ethos salvacionista que constitui a autosignificação do que venha a ser "o americano". Fiquei muito chocado quando li isso no Bellah, mas, me pareceu muito eficiente para explicar de Bad Religion ao Michael Moore.
Sem falar das leituras beat ácidas (em sentido lisérgico e figurado) que pululam no universo pop. Tão americanas quanto a torta de maçã ;). Na excelente música folk de Dylan...
Enfim.
Talvez a conjuntura tenha propiciado este lado crítico e interessante dos americanos sair do armário.
Abçs!
George, acho que a frase do Bellah está mais que correta. E é exatamente esse ethos crítico dos americanos o que permite de tempos em tempos a reavaliação de sua própria condição. Ora, os americanos tiveram figuras críticas ímpares no século XX e, mais que isso, receberam na época do fascismo e nazismo toda a sorte de descontentes. A questão é que agora essa autocrítica tem ganhado uma dimensão mais "pop".
Abraço.
Um debate fundamenta a partir disso, trazendo o assunto para a análise comparativa, seria discutir se e como diferentes mitos nacionais e seus conteúdos guardam diferentes níveis de auto-crítica..junto claro com os processos pelos quais esses mitos aprendem ou incorporam elementes de autocrítica que antes nao tinham. Fabricio com certeza iria se interessar por publicar algo sobre isso aqui no blog, nao é?
O Chico Buarque se perguntava pelo "malandro"... Assim como os americanos hoje se perguntam pelo xerife. Estaria aí mitos fundadores e possibilidades de análises comparativas?
tá aí uma questão cabeluda...
Caros,
Embora concorde com George, que sempre existiu um conteúdo auto-critico nas narrativas da “cultura pop” norte-americana, creio que seu alcance, no entanto, sempre foi periférico em relação ao imaginário social dominante. Alan Moore, David Gibbons, Jack Kerouac, assim como outros ícones da chamada “contra-cultura” escreveram ou se manifestaram artisticamente, tendo em mente, mais os seus pares do que propriamente a sociedade como um todo. Não por acaso, sempre foram estigmatizados e tratados como o símbolo de um anti-patriotismo a ser evitado coletivamente. Seus discursos e leituras de mundo nunca tiveram força simbólica significativa a ponto de se converter em praticas sociais. Diferentemente do contexto de emergência e sucesso do discurso ativista político de Michael Moore. É bom lembrar que o seu primeiro sucesso de mídia (Tiros em Columbine/2002) foi lançado em meio a um contexto em que a sociedade norte-americana começa a repensar seriamente o seu status de nação modelo. O EUA vivia o clima de terror e confusão diante do ataque às torres gêmeas. Hobsbawn, analista cirúrgico como ninguém, já afirmava na época que o que estávamos vendo não era apenas um atentado de grandes proporções: mas um duro golpe no orgulho americano, manifesto nos seus símbolos. Ainda segundo o mesmo, o “11 de setembro de 2001” se equivaleria apenas a “queda da bastilha” (símbolo político do fim do absolutismo). Aliás, é em meio a esse clima que vemos pela primeira vez, um cineasta declaradamente anti-patriota e anti-americano ganhar uma estatueta do Oscar. E também é a partir desse período que cada vez mais se produzem filmes com conteúdo político abertamente anti-americano. Teria a grande industria de cinema norte-americana descoberto a teoria crítica? Não, acho mais provável a hipótese de que emerge cada vez mais um mercado de consumidores extremamente desiludidos com os símbolos tradicionais americanos. É esse o contexto de adaptações como "V de vingança" e "Watchmen". Curiosamente, a crítica de cinema americana tem chamado atenção para a atualidade política do conteúdo desses filmes/HQs
Concordo Kadu,
O chamado "white trash" sempre foi predominante na cultura americana.. Mas, meu argumento é que as liberdades individuais são um valor na constituição da autocompreensão americana. A tal ponto que elementos da contra-cultura sejam formalmente toleráveis (politicamente não são).
É interessante ver que a tradição americana tem essa dubiedade... O argumento pró "desobediência civil", não devemos esquecer, é americano!
O que não retira na contemporaneidade a originalidade desta conjuntura, tal como todos nós parecemos concordar.
O Kadu me fez pensar agora numa questao. O fato de um forma narrativa inovadora, como a que voces mostram aqui, ser incorporada pelo mercado de bens simbólicos necessariamente implica na anulacao de seu conteúdo inovador? Eu diria que nao....
Bill, acho que seria uma boa possibilidade. Vale a pena saber se alguem ja fez isso ou nao... Mas, em todo caso, eu penso que a crítica de Xico já nao é mais contemporanea.
Lá vem o xacal com sua colher suja...
Me instigou a analogia do mito fundador: malandro e xerife...
Não, não creio no malandro como mito fundador...
O aparato ideológico varguista, da década de 30, e a polêmica wilson batista versus noel rosa já era um prenúncio da morte de uma das nossas principais "qualidade"...
o malandro não é um mito para a construção do senso coletivo de nação, é ao contrário, um estratégia individual de sobrevivência a essa ausência de projeto nacional...
o xerife, ao contrário, é a base filosófica para estruturação do aparato jurídico-normativo do Estado estadunidense...exacerbado, é lógico, pelas distorções que simplificam sua compreensão pela sociedade a qual se dirige...
o que está muito mais próximo dessa figura do nosso mito fundador é o capitão nascimento...
A gênese do nosso senso coletivo, e de nossa auto-percepção estão ali declaradas...quer ser "honesto", mas não encara o abuso da violência como "corrupção", mas a diferença entre os dois, talvez desvende a grande diferença entre nós e eles:
1-o xerife é violento, individualista, mas age sempre dentro de regras pré-estabelecidas, até mesmo a morte, sempre delimitadas em duelos, ou enforcamentos, onde bem e mal estão bem demarcados...sempre age em nome da Lei...não há nuances sociólogicas(pobreza como explicação da criminalidade, por exemplo)...o cara escolheu ser mau, e ponto...esquemático, simplista, mas que os poupa de conflitos morais sobre a punição: matar em nome do Estado é válido, e formalizado...
O xerife, é antes de mais nada, sua percepção de justiça, que é incorporada pelo Estado, e legitimada pela população, e não o inverso...
2-já nosso mito, o faca na caveira é uma produção do senso coletivo, e da noção de Justiça, que habita uma dimensão própria: é política oficial, mas não é "legal", é vista como "legítima", mas perverte quem a usa...não há duelos, há execuções...o nosso mito não age só, ele é parte de um aparato, com regras, tradições e linguagem: um corpo...
Dentro da sociedade, não há uma definição clara do papel do mal, a não ser que ele é excluído, não pela sua condição "moral" na história, e por razões sócio-econômicas...
E freqüentemente, as camadas da elite cruzam seus interesses com esses "alvos" do capitão...
Por isso, nosso mito é esquizofrênico...
Esse é um tema confuso, e não sei se me fiz entender...
Um abraço...
É por não ser isto Xacal, que Chico perguntou pelo malandro... "aquela tal malandragem não existe mais...", a discussão é a que vc fez, o que incorpora nosso valores morais atualmente? Capitão Nascimento? não sei, chego a pensar em alguns momentos nos valores da "nova classe média": o que sintetiza isto?
Abraço.
Todos aqui começaram refletido acerca da desconstrução em andamento nas narrativas artísticas dos tipos-mitos fundadores tradicionais norte-americanos - o "pioneiro", o "protestante", o "xerife", o "cowboy". Como não poderia deixar de acontecer, acabamos discutindo acerca de nossos próprios tipos-miticos nacional. Foi citado o "malandro" como um desses personagens do nosso imaginário nacional que dizem algo sobre o caráter do brasileiro. Incluiria "Macunaíma", o "Jeca Tatu" e o "homem cordial" (talvez nosso mito fundador mais famoso). E é interessante que ao contrário daqueles personagens norte-americanos que apresentam o valor positivo, nossos personagens que compõem o mito de fundação brasileiro são símbolos negativos. Suspeito que seja esse um dos motivos da aposta dos paulistas na imagem do "Bandeirante", outro símbolo que povoa nosso imaginário nacional e que talvez seja o único portador de uma valor moral positivo. Evidente que é preciso reconhecer o papel de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro no sentido de construirem modelos positivos alternativos para atender "também" ideologicamente aos interesses de Vargas e o Estado Novo.
Xacal,
"Capitão Nascimento" não constitui um mito fundacional. Eu particularmente o vejo como um símbolo contemporâneo, que certamente vai se transformar em mito nacional. Mas ao contrário dos outros, ele tem vínculo originário muito forte com a moral e visão de mundo da classe média brasileira. Seus discursos sobre corrupção e violência coincidem com os valores do estrato de classe citado acima. Sobre o "malandro", o fato desse ser negativo e ser negado após Vargas, não invalida a sua força simbólica naquele período. Afinal, os mitos também morrem ou pelo menos se transformam, diria Marshall Sahlins.
Abraços a todos
Pescador, a enfase de Xacal em Vargas eu acho muito importante e correta, pois ali se trata de que imagem o brasileiro vai ser convocado a fazer de si mesmo no momento da construcao efetiva do Estado Nacional. E, de fato, as virtudes do malandro foram deixadas de lado em nome do brasileiro trabalhador... Talvez um traco da malandragem fica, justamente aquele que nao deslegitima o valor trabalho: a nocao do brasileiro flexível, capaz de se adaptar e sobrevier às adversidades.
De resto, eu queria fazer uma provocacao... Lembremos que se tratam de mitos, que embora influenciem a realidade, o fazem na medida em que mascaram e dissimulam esta realidade. Por isso devemos buscar explicar os mitos com base na realidade que lhes dao suporte e sobre a qual eles contam uma meia verdade, e nao escorregar no papo meio fascinante de explicar a realidade pelos mitos. Um abraco
Pescador,
Está aí meu ponto de vista...
Defendo o capitão como mito fundacional, porque, ao contrário de outros países, como os EEUU, nossa fundação é tardia e se funde com o contemporâneo...
Sempre tivemos capitões: Filinto Müller, Mariel Mariscot, Capitão Nascimento, etc...
Como nosso mito fundacional está subordinado a noção que nossa sociedade excludente tem do outro, do cumprimento das Leis, e do próprio Estado, ele se atualiza...
Talvez o capitão seja uma atualização contemporânea do nosso "mito fundacional", ressalvando sempre que talvez ainda não tenhamos fundado uma idéia de nação bem definida...
Um abraço...
Roberto...
Essa sua assertiva se contrapõe a própria idéia de mito fundacional, ou não...?
Oi Xacal!
Um “mito fundacional” corresponde a uma narrativa histórica de origem de uma determinada sociedade. Mais precisamente, responder a pergunta sobre “quem fundou ou quem foram os fundadores dessa sociedade?
No caso dos EUA, a resposta está nos WAPs (White/Anglo-saxon/Protestant). Isto é, a sociedade norte-americana se auto-representaria como o resultado desses três personagens históricos, o que, segundo Talcott Parsons, explicaria a condição de subcidadão do negro, haja vista não ser considerado “americano”. Todas as sociedades e também todas as culturas, independente de serem Estado-Nações ou não apresentam um mito de fundação (Abrão e Moisés para os Judeus; Cristo para os cristãos, etc). Seu papel é gerar e justificar um sentimento de identidade cultural mais ou menos homogênea, destacando o compartilhamento coletivo de valores e princípios de comportamento que seriam comum ao grupo. Trata-se de um sistema simbólico que opera como mecanismo de distinção ( identidade americana, identidade servia, identidade brasileira, identidade africana). O mitos fundacionais funcionam, por meio da narrativa histórica, como meio de negar o caráter de “construto social” das identidades culturais e, dessa forma, gerar um forte senso de solidariedade coletiva. Dito de outra maneira, o mito fundacional é exemplo particular de “naturalismo”, diria Charles Taylor. No Brasil, a mesma questão foi colocada no inicio do século XX: “Afinal, o que vem vai ser o Brasileiro? Quem são os fundadores do Brasil?”
Em cima dessa mesma questão que homens como Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre vão construir tipos famosos como o “Macunaima”, “Bandeirante”, “Jeca Tatu”, o “índio”, o “explorador ibéro-lusitano” o “mestiço”, o “homem cordial” como símbolos primevos da nação brasileira.
Evidente que os mitos sempre podem ser repensados ou atualizados. Veja o caso de “Zumbi”, um mito fundacional da nação afro-brasileira criado pelo movimento negro a fim de construir e afirmar uma certa “identidade negra”. O que caracteriza um mito fundacional é, como a própria palavra denuncia, a sua condição de fundação de algo (seja uma cultura ou uma sociedade), condição de origem primeira.
Continuando,
O “Capital Nascimento” não é um mito fundacional porque não diz nada sobre a origem do brasileiro ou da sociedade como um todo. Ele é um tipo ideal construído em cima da representação atual sobre como deve se comportar os homens da lei diante da violência sistêmica. É extremamente contemporâneo e digo mais, internacional. Ou melhor, americano! Capitão nascimento é a nossa versão tupiniquim do Batman, nosso “Charles Bronson”. Um homem da lei desiludido com a corrupção generalizada nas grandes metropólis modernas. Para esse sujeito que encara os direitos humanos como uma proteção ao crime, assim como para “Rorschach” de Watchman, não existe massa cizenta no mundo. Ou é preto ou é branco. Não existe meio termo. Bill e George devem lembrar bem do detalhe da mascara de Rorschach: ela nunca forma imagens cizentas. O preto da mascara que é uma espécie de látex nunca se mistura com o branco, formando uma terceira cor. Isso representa a certeza moral sobre o mundo que Rorschach. Não existe flexibilidade ou tolerância para um crime, ainda que seja altruísta. Assim, também pensa o Capitão Nascimento. E assim também pensa estratos das classes médias das grandes metrópoles. Por isso, a força do discurso moralista e com pretensões de evidencia aparente entre esses estratos. Por isso, Eduardo Soares é pop. (rsrs)
Muito bem colocado Pescador. A questão que faltou o Roberto havia colocado: O mito fundacional é construído a posteriori, por isso tende também a estar vinculado aos desejos historicamente estruturados de quem o propõe. É por isso o (re)surgimento de Zumbi no imaginário nacional, proposta para a unificação do movimento negro no Brasil.
Tudo bem que o capitao nascimento nao seja uma narrativa situada no período "mais crítico", quando se buscava seriamente responder às questoes fundacionais, mais a questao do Xacal é importante pelo seguinte: se este personagem tao recente angaria adesao é porque ele representa nosso imaginário hoje, o conteúdo e a forma pelas quais os mitos de antes se atualizam. Entao algo importante de seu comportamento toca em alguma coisa de nossa fundacao.
Na verdade, uma primeira crítica que eu acho que deve ser feita aos mitos para compreende-los é justamente questionar o caráter nacional que eles postulam, assim como as oposicoes análiticas que ingenuamente decorrem deste nacionalismo. Como disse o pescador, o capitao nascimento é americano, embora nao tanto por atuar em nome da lei, como ressalva o Xacal, mas fundamentalmente por defender a "boa sociedade". O mito do pioneiro americano é aqui o bandeirante desbravador de fronteiras, que tem sua versao nacional muito bem enraizada, e nao só em Sao Paulo. Todo e qualquer pobre que precisa desbravar fronteiras no caminho de sua subida na vida gostaria de se ver como um assim. Alias, outro traco dos mitos é sua polissemia, sua capacidade universal de "unificar" sentidos diversos como se fossem o mesmo. Intuo que há uma grande universalidade neste mitos, que pode ser maior ou menor, claro, em funcao do contexto em que se criam ou se atualizam estes mitos. E por isso acho que Brasil e EUA tem muito mais em comum do que estamos acostumados a pensar quando escorregamos por nossa sociologia brasileira tradicional com seu desejo de aqui realizar o sonho americano como se estivéssemos tao distante dele. Temos em comum com eles mitos para nacoes que buscavam se construir diante de fronteiras e na aglutinacao da identidade nacional em luta contra o mal frequentemente representado nestas fronteiras. Alias pescador, sua análise sobre o mito americano, na minha visao, esquece de considerar que, apesar do racismo histórico contra os negros, a nocao de americano nao se fez vinculada à uma linhagem que se quer pura e sim a uma empreitada que pode unificar estrangeiros na busca de um alvo comum.
Olha Roberto!
Posso ter entendido errado, mas você parece afirmar que a noção de americano é construída a partir da idéia de uma pluralidade de estrangeiros que compartilham projetos em comum (caso eu tenha interpretado de maneira, fica a vontade para me corrigir). Bom, de fato, o mito fundacional americano é construído sob a idéia de uma nação construída por estrangeiros. Entretanto, não se trata de “todos” os estrangeiros. E é aqui onde está a sutileza do mito americano. Por muito tempo, os “estrangeiros” reconhecidos como fundadores legítimos da nação foram o “branco”, o “anglo-saxão” e o “protestante”. Judeus, negros e católicos, outros três grupos que tiveram papel importante na formação da sociedade americana eram vistos como “estrangeiros” e carregavam uma forte carga negativa, sendo de estigmatização em expressões depreciativas como “wops” (referencia negativa aos italianos), “polacos” (referencia negativa aos judeus) e outros termos. Três filmes que retratam bem essa distinção hierárquica entre estrangeiros “insides” e os estrangeiros “outsides” é o “Gangues de Nova York” ( retrata um conflito histórico entre os “nativos protestantes”, liderados por Daniel Day-Lewis que reivindicam a legitimidade sobre o direito de viver na América e uma gangue de irlandeses católicos, liderados por Leonardo Dicaprio. O filme se baseia em um fato histórico). Um segundo filme que retrata isso é Manderlay (o segundo filme da Lars Von Trier onde problematizada a situação do abandono do negro americano no sul durante a década de 1920). Por último, um que se passa em um período mais recente é “A outra história americana” ( retrata o anti-semitismo e racismo americano). Esses três filmes retratam bem a origem da estigmatização dos grupos que não se situavam dentro do modelo “WASP”. Situação essa que só foi contornada devido ao caráter pluralista liberal do protestantismo americano. Mas claro, não igualmente para todos os três grupos (judeos, católicos e negros). Os negros só vão se beneficiar dos status de cidadania plena a partir da década de 1960, durante o movimento de direitos civis. Portanto, essa história de a América sempre foi uma nação aberta aos estrangeiros é também um mito que vem recentemente sendo fortemente contestado.
E sobre isso, acho muito esclarecedor fazer uma gênese social da formação dos estigmas contra minorias em diferentes nações. Por exemplo, inicialmente, o estigma em relação ao judeu e o negro nos EUA não era da mesma ordem do que ocorre na Alemanha. Existem motivações diferentes para o "racismo". O nazismo, nesse sentido, teve um papel de homogeneização dos estigmas que já existiam, muito embora, por motivos diferentes.
concordo pescador. Eu só fiz esta referencia ao estrangeiro no mito americano, para demarcar sua diferenca, por exemplo, à nocao de povo alemao, muito mais fortemente vinculada à idéia de uma linhagem pura.
Sim, Roberto!
Você tem toda razão sobre a diferença entre o mito fundacional americano e o mito fundacional alemão. Sem dúvida, a idéia de "Volks" nunca foi um elemento importante de agregação na sociedade americana, como foi na Alemanha. Nos EUA, valorizou-se muito mais a idéia de comunidade associativa, muito embora, altamente restritiva e exclusiva, inicialmente. Entretanto, "bourdiesianamente", os dois mitos operam com o mesmo mecanismo simbólico (distinção classificatória hierarquica) no processo de construção da identidade nacional.
Abraço!
Postar um comentário