domingo, 22 de junho de 2008

Clientelismo e Políticas de Transferência de Renda (cash transfer)

Renato Barreto

Vitor Peixoto


Com a intensa incorporação das massas na participação eleitoral, nos países chamados da “Terceira Onda de Democratização”, muitos analistas voltaram suas atenções aos aspectos do que denominam “qualidade da democracia”. Nesse contexto, as relações entre representantes e representados passam a ser um objeto privilegiado.


O clientelismo tem sido, por décadas, um dos temas mais polêmicos das ciências sociais. Pesquisadores de diferentes linhas interpretativas produziram uma grande quantidade de trabalhos, sempre marcados por fortes divergências que começam na conceituação do fenômeno, se aprofundam na identificação das explicações e, por fim, tornam-se inconciliáveis quanto ao julgamento de seu papel nas sociedades contemporâneas.


As divergências são tão intensas que, ainda na década de 70, Kaufman afirmava diante da variedade de conotações presentes na literatura abarcadas como clientelismo: “a primeira tarefa para os estudiosos da área deve ser identificar quais práticas sociais não são clientelistas” (Kaufman, 1974:285). Há vantagens em assumir essa sugestão, pois analisando as práticas que são consensualmente consideradas “não-clientelistas”, é possível identificar os elementos que por oposição devem constituir as práticas clientelistas.


Para tanto, optou-se por escolher como exemplo de prática “não-clientelista” o programa “Seguro Desemprego” do Governo Federal, instituído em 1986. Trata-se de um benefício integrante da seguridade social, que posteriormente fora recepcionado pelo art.7º dos Direitos Sociais da Constituição Federal e tem por finalidade prover assistência financeira temporária ao trabalhador dispensado involuntariamente. O valor do benefício é proporcional aos três últimos salários recebidos e ao tempo trabalhado. O trabalhador pode receber até cinco parcelas mensais de igual valor.


Partindo da premissa de que uma das características mais comumente atribuídas às relações clientelistas é a conceção de recursos públicos de forma individulaizada, deve-se considerar a seguinte questão: por que um programa como o seguro desemprego não é taxado de clientelista e outros dois programas também caracterizados pelas transferências de recuros públicos a indivíduos (cash transfer), como o Bolsa Família e o Cheque Cidadão, são. Afinal, quais são as diferenças e semelhanças entre esses três programas? De que modo é possivel, por meio de análises comparativas, avançar nos estudos sobre o clientelismo?


Inicialmente, descreveremos as principais características e aspectos do Seguro Desemprego que fazem dele uma politica social “não clientelista”, para depois compará-lo com os dois outros programas:

(1) O seguro desemprego é um exemplo de politica “redistributiva” (Lowi, 1966:02), ou seja, beneficiam amplas categorias de indivíduos cuja a assistência se vincula a padrões legais mais amplos.

(2) Possui característica universalista, ou seja, não realiza uma distribuição particularizada de recursos. Isso significa que, uma vez definidos os critérios, todos os indivíduos que preenchem os requisitos são automaticamente atendidos. Diferente das relações clientelistas, que necessitam estabelecer uma noção de privilégio, se o cliente não for agraciado com alguma benesse que lhe confira um status diferenciado, não há razão para o patron reivindicar em retribuição apoio politico, tampouco motivo para o cliente efetuá-lo. Assim sendo, a seletividade da distribuição é uma condição sine qua non para que se classifique uma política como clientelista – porém, não suficiente.

(3) As regras do programa são claras e públicas, sendo o atendimento ordenado por procedimentos rigorosamente estabelecidos em lei e comprovados por meio de documentos oficialmente reconhecidos. Não existe viés de seleção para identificar os contemplados. O benefício do seguro desemprego é percebido pelo trabalhador como um direito, como um auxílio que está inscrito dentro de suas prerrogativas de contribuinte e que é amplamente reconhecido dessa forma.

(4) A par disso, para requerer o seguro é preciso se dirigir até uma agência bancária federal e simplesmente apresentar os documentos. Isso significa que é muito improvável que uma relação com normas rigorosamente impessoais seja manipulada por algum patron, até porque os procedimentos necessários para obtenção do recurso são realizados em ambientes onde os discursos políticos estão ausentes, impedindo que o pacto clientelista seja efetivado.

(5) Além disso, o benefício é temporário, não sendo possível manipular sua permanência ou interrupção.


Estes aspectos do programa Seguro Desemprego inviabilizam sua captura por práticas clientelistas, primeiro porque impedem que o patron manipule a distribuição dos recursos encoberto pela opacidade das regras de distribuição tão característica dessas modalidades de relações sociais. Segundo, porque inviabilizam ações de natureza coercitivas, visando a punir desertores que não contemplem o patron com apoio político.


Por fim, estabelecido os aspectos do programa Seguro Desemprego, que fazem dele um tipo de politica social “não clientelista”, é preciso agora apresentar quais as características de uma dada relação social permitem classificá-la como clientelista.


O Bolsa Família começou com a unificação de vários programas do Governo FHC, como Bolsa Escola, Auxílio Gás, entre outros. Já o Cheque Cidadão começou no Governo do Estado do Rio de Janeiro, pelas mãos da primeira-dama, Rosinha Matheus.


Os dois são programs de cash transfer, mas o que poderia diferenciá-los?


Como vimos na descrição do Seguro Desemprego, existem dois fatores chaves para que uma política possa configurar clientelismo: seletividade da inclusão-exclusão dos beneficiários e a forma como é realizada a distribuição dos recursos. Se pode haver algum tipo de coerção, viés de seleção ou qualquer desvirtuamento do gênero com efeitos sobre o processo eleitoral, quem tem o poder de fazê-lo são aqueles que cadastram e distribuem.


A maior inovação do Bolsa Família foi exatamente nesses dois aspectos – um misto de centralização administrativa e descentralização distributiva. Ou seja, o Governo Federal controla todos os critérios de inclusão e exclusão do programa (definição de regras), formas de pagamento, valor dos benefícios, etc. Entretanto, transfere às prefeituras municipais o cadastramento dos beneficiados e a distribuição dos cartões.


As Secretarias Municipais de Assistência Social ficam entre os beneficiados e o Governo Federal. Cabe a este último fiscalizar e auditar esses processos, mas a execução está em poder das prefeituras. Aqui reside a grande quebra da resistência da oposição com o Bolsa Família, pois as localidades mais beneficiadas são majoritariamente administradas por prefeitos de partidos da oposição ao Governo Federal. Em quatro anos do programa, foram repassados às prefeituras cerca de R$ 17,5 bi. Os partidos da oposição (PFL – PSDB e PPS) receberam mais de 37% destes recursos, enquanto as prefeituras do PT, PC do B e PSB (bloco de esquerda da coalizão de governo) administraram apenas 17% desse montante.


Já o Cheque Cidadão não construiu qualquer tipo de controle externo de distribuição. O Governo Estadual controlava todo o processo, desde os critérios até a distribuição. Se existiam intermediários entre os beneficiados do programa e o Governo, eram os membros das Igrejas e os chamados ADL (Agentes de Desenvolvimento Local), nomeados pelo Poder Executivo Estadual. Dois fundamentais grupos de apoio eleitoral do Governador.


Ambos os programas são redistributivos. Entretanto, o processo de distribuição é a característica mais marcante que os diferencia, pois aqui é que surge a possibilidade de manipulação através da seleção dos beneficiados. Enquanto a distribuição do BF é realizada pelos departamentos de assistências sociais dos governos locais, o CC era distribuído pelas Igrejas e ADL’s. Ou seja, neste último, o dinheiro público era entregue a entidades que não receberam qualquer mandato popular, foram escolhidos porque eram aliados do governador e 85% das entidades que repassavam os recursos eram igrejas evangélicas. Houve ainda várias denúncias de uso eleitoral do programa, como o episódio ocorrido em Campos nas eleições de 2004, quando, dois meses antes das eleições, o governo de Rosinha Matheus iniciou o cadastramento de eleitores para o programa.


Conceitualmente, pode-se até afirmar que a diferenças entre os dois programas são tênues. Entretanto, por meio de uma análise um pouco mais acurada, percebe-se diferenças cruciais entre o Bolsa Família e o Cheque Cidadão.


O simples fato de terem conferido dividendos eleitorais aos governos que os implementaram não é suficiente para colocá-los dentro da mesma categoria. Afinal, democracia é o sistema em que indivíduos escolhem aqueles que podem melhor lhes beneficiar, portanto, presume-se que o fazem com liberdade de escolha.

5 comentários:

George Gomes Coutinho disse...

Muito bom o artigo!

Recomendo apenas que coloquem as referências ao final.. Já recomendei a leitura aqui para quem é de direito (alunos de Serviço Social, professores, pessoal do CCH).

Brand Arenari disse...

Muito elucidativo os texto, o qual nós faz pensar sobre outros programas políticos. Poderia ser o “restaurante popular” considerado uma prática clientelista? Se nos é muito claro, ainda mais depois de ler o texto, o descuido ou a má fé no projeto “cheque-cidadão”, por outro lado o “restaurante popular” me parece ser um projeto com potencial de ser melhorado e ampliado. O que acham?

Brand Arenari disse...

E quanto ao problema da conceituação do clientelismo eu tenho uma suspeita. Parece-me que, ao chafurdar-se na empiria, ou seja, por se ater de mais em catalogar PRÁTICAS, perde-se a possibilidade de uma elaboração conceitual mais precisa. Mas isso é apenas uma suspeita.

Roberto Torres disse...

òtimo texto!! Brand, acho que catalogar práticas, num certo sentido, é o que devem fazer o conceitos. Catalogar para relacionar o que senso comum serara se separar o que o senso comum confunde.

Como todo conceito que, para o bem ou para o mal, penetra nos discursos políticos, como populismo, o de clientelsimo precisa ser refeito para recuperar precisão e mesmo poder normativo. Quanto a esse aspécto, cabe a analise politica reformular identificar os pressupostos valorativos que o clientelsimo nega e corrompe. Tem uma corrente "antropológica" que nega o fato de podermos fazer um julgamento se o clientelismo e bom ou ruim! Num artigo que li uma senhora (rsrs) ao mesmo tempo em que defendia esse relativismo cínico, propunha uma definição bem elástica de clientelismo. Onde alguma instância politica atende demandas, há clientelismo. A imprecisão conceitual sempre anda junto com o conservadorismo .....

Palavras polissêmicas sempre servem para "engraxar" a realidade e reproduzí-la, num efeito quase mágico, onde o mero uso de palavras bonitas para falar sobre algo produz um efeito de legitimação.

Rodrigo Rosselini disse...

Muito bom mesmo o texto. Fico pensando no potencial eleitoral destes programas clientelistas e na maneira como isso é feito aqui em Campos.
É comum vermos grandes mercearias e até mesmo algumas que formam redes, chegando a se transformar em supermercados, como me parece ter sido o caso da rede Super Bom, em Campos. Me parece uma política muito interessante também para o empresariado do setor de alimentos.