quarta-feira, 25 de junho de 2008

Papel e eficiência burocrática


Não é exclusividade do Estado brasileiro situações insólitas que ocorrem em função da diferenciação das esferas que o compõe. A diferenciação é uma máxima moderna. Há a necessidade de se separar objetivos do Estado e objetivos de governo. Se de um lado o governo é a expressão mais ou menos explícita dos interesses partidários, por outro a administração pública deve zelar para que estes interesses não se confundam com o Estado mesmo, parasitando-o em torno dos interesses políticos sazonais. A confusão de limites é o que tem causado nossos maiores males públicos. Falta de diferenciação? Não, formalmente ela está lá. Falta de instituições coibidoras de excessos? Também não, elas também existem. Acho que existe um problema, que não explica tudo, posto que a diferenciação produziu uma complexidade de causas e conseqüências jamais discretas ou simples, mas pode indicar um elemento de análise importante, quem sabe de conseqüências administrativas. Refiro-me a uma diferenciação nos papéis, que serve de base para a execução mais ou menos eficiente das exigências da administração pública moderna. Nós não conseguimos ainda criar a figura auto-justificável do funcionário público, aquele que se identifica com o papel a ponto de reduzir a sua vida profissional a esta dimensão. Não se consegue vincular a vida à sua dimensão profissional no Brasil, o que faz com que aqueles limites sejam borrados e o privado acabe invadindo o público. Vários autores já escreveram a respeito, contrastando esta nossa postura pública ao nosso outro privilegiado, os americanos, reproduzindo as antigas imagens de progresso e prosperidade que dificilmente hoje nos convence, haja vista os interesses particularistas da família Bush, e dos amigos do Texas, serem reiteradamente privilegiados quando se fala em política energética, ou alguém acredita que a escalada no preço do petróleo é simplesmente uma acomodação dos preços internacionais do barril? Escrevo porque ainda estupefato assisto aqui no Rio Grande do Sul a CPI do DETRAN, que levou a depor o secretário da casa civil a partir da exibição de uma fita em que ele explicitamente quer fechar com o vice-governador uma “paz”: lotear cargos estaduais e incluí-los em esquemas de financiamento de campanha com dinheiro público. O secretário é taxativo, a fita é evidente, mas em uma postura esquizofrênica nega tudo o que fez anteriormente, re-significando palavra por palavra, obliterando uma postura particularista com elementos republicanos dos mais nobres. É fato que as coisas estão mudando, como já se escreveu neste blog, os escândalos estão mais evidentes a partir de uma maior atuação do ministério público e do aumento da concorrência política (a competição parece ser uma virtude da democracia liberal). Mas penso que o preço ainda é alto no Brasil para se manter as coisas mais ou menos funcionando, tudo seria mais fácil e menos custoso se a diferenciação dos papéis ocorresse de forma generalizada, se eles não fossem somente atributos de promotores responsáveis ou de uma oposição fiscalizadora de fato. Esta falta de limites poderia ser uma questão cultural, mas o que se poderia dizer então do Rio Grande do Sul, o Estado supostamente com a maior cultura cívica do país? Acho que esta identificação entre personalidade e papéis passaria pela melhoria nas condições de formação de nossa burocracia estatal, imprimir o imperativo técnico através de programas de incentivo à capacitação e valorização da função pública. É contraproducente nossas falsas imagens do funcionário público e do político, que se localizam em torno de expressões como “moroso”, “corrupto” e “ineficiente”. Afinal, neste estado de coisas, ninguém assumiria um papel vinculado a estas formas simbólicas. E não fazendo, não há identificação, relação duradoura e, finalmente, desempenho formalmente esperado e substancialmente executado. Ao lado de mecanismos funcionais de eficiência burocrática, acho que se deveria ressaltar de alguma forma os mecanismos socializadores da personalidade ao papel.

15 comentários:

Roberto Torres disse...

Bill, a questão dos mecanismos socializadores da personalidade ao papel remete o tema da diferenciação funcional ao tema da estratificação social, pois o papel do funcionário precisa ser definido de modo relacional, ou seja, na sua vinculação com o cliente. Ao constatar que a vinculação patológica ao papel, o que Durkhiem chama de divisão anônimca do trabalho, representa o exercício arbitrário de um poder que deveria se guiar pelos limites da função, precisamos conhecer sobre quem se exerce este poder arbitrário; sobre que tipo de cliente ele pode atuar.

bill disse...

Acho que a questão aqui não é só de demanda, Roberto. as duas dimensões deveriam ser levadas em conta. o que quero dizer é que nossa hojeriza aos mecanismos técnicos da administração pública também importa na compreensão dos problemas que enfrentamos no Estado, como é a corrupção. A administração pública cristalizou seu papel em torno de lugares comuns que não contribuem para nada. Isso cria uma dimensão simbólica depreciada e portanto motivadora dos desvios.

Roberto Torres disse...

claro Bill, as duas dimensões devem ler levadas em conta. Dizer que o desapego aos mecanismos tecnicos vem das dificuldades de reprodução autopoética da burocracia fica sendo uma tautologia se a dimensão da estratificação social.

bill disse...

Roberto, acho que seria interessante a discussão relativa a moral, aquela que vc e Fabrício discutiram. acho que esta é uma dimensão negligenciada na discussão, como vcs colocaram...

Abraços.

VP disse...

Interessante o debate que vcs montaram.

Uma preocupação que tenho é que vcs inserem o tema da estratificação como se fosse central em todos as questões. Assim tenho algumas objeções: (1) a burocracia é exclusivamente brasileria, ou seja, países desenvolvidos com baixa concentração de renda não possui? (2) o fato de no Brasil a Burocracia incidir com mais rigor entre os pobres siginifica que a estratificação é a CAUSA dos problemas?

Analisar o sistema burocrático brasileiro significa que teremos que passar de alguma forma pelo tema da estratificação. Mas daí a colocá-la no cerne do problema é, na minha opinião, um crasso equívoco.

Concordo que as consequencias são mais drásticas para os estratos inferiores, mas isso não significa que sejam as únicas consequencias. E mais: seria interessante separar as causas das consequencias.

Enfim, nem tudo no Brasil é culpa da desigualdade!

Abraços,

bill disse...

Vítor,

Bem, em nenhum momento relacionei estratificação com renda. Duvido muito que nas ciências sociais contemporâneas alguém discuta este tema relacionando-o somente a questões de renda. Afinal até o empresariado mais capitalizado deste país reclama dos gargalos burocráticos. Concordo com seu último ponto, sobre agrupar nossos males em torno das desigualdades, mas isso eu não disse no texto, portanto disso eu não posso ser acusado. Ademais, minha questão se concentra mais na questão da diferenciação, de todo tipo, inclusive estratificada. mas isso também não é nosso problema arquimédico, é somente uma parte deles. Abraço.

VP disse...

Bill, onde eu escrevi que vc se resumiu a estratificação? Pelo contrário!

Abraços,

Roberto Torres disse...

Bem Vitor, um dos ganhos da teoria da diferenciacao, articulando diferenciacao funcional e estratificada, e nao pressupor uma relacao simplista entre causa e efeito. Mas isso nao para cair em uma indeterminacao causal, e sim em sobredeterminacoes em que, na minha, visao, os dois aspectos da diferenciacao devem ser analsiados em conjunto sempre. Claro que a desigualdade nao e causa de tudo! Mas sem ela nao se compreende bem nada! Sobretudo o sentido pratico da burocracia e seus males para os diferentes tipos de pessoas.

Por isso e importante comninar, num debate como este, perspectivas com enfonques sobre cada um dos aspectos.

VP disse...

Ah tá Roberto, agora entendi... Tudo que não passa pela estratificação é senso comum e simplista. Entendi.

Abraços,

VP disse...

Entendi, mas ainda permanecem algumas dúvidas tais como resolver os reclames do bancos brasileiros sobre a morosidade do BACEN? E as empresas que clamam por desburocratização do CADE? Como explicar o sistema de patentes no Brasil? E as concessões para construção de Hidroelétricas?


Abraços

Roberto Torres disse...

Acho que nesses casos seja necessário considerar o poder social desses grupos empresariais e financeiros que criticam esses instituições.

Penso num exemplo bem recente quando tento compreender essa relação. A considerável rapidez com que o judiciário agiu a favor dos clientes das empresas aéreas na crise recente instalando postos nos aeroportos. Ai, claro, toda a pressão da mídia foi necessária para canalizar as demandas dessa fração da classe média. Sabemos o que ocorre nas rodoviárias .... nos ônibus de campos, onde todos os procediementos legais são violados em favor das empresas ...

VP disse...

Roberto, sinceramente, pensei que vc teria uma resposta um pouco mais criativa diante da provocação. Suas colocações apenas negam a existência dos empecilhos da burocracia aos estratos superiores, como se fossem ilegítimas os reclames de quem não é ralé. Citar o exemplo da “crise aérea” não dirime as demais questões que citei. Até concordo que a percepção de morosidade da burocracia e a possibilidade de vocalização sejam absolutamente desiguais, mas isso não nos autoriza a afirmar que são inexistentes. Citei ao menos quatro exemplos que são incontestes! No caso da construção das hidroelétricas, por exemplo, até o próprio Presidente Lula fez coro. Era um projeto de alto interesse do governo, onde a burocracia do IBAMA foi utilizada pelos ambientalistas na tentativa de inviabilizar o empreendimento (aqui não me cabe julgar se justo ou não, particularmente, sou a favor, mas isso não vem a caso nesse momento).

Se vc ainda aventasse a possibilidade de explicar a burocracia pelo “ressentimento” hannaarendtiano, onde os burocratas se sentiriam em condições econômicas não condizentes com a situação educacional, por exemplo, até seria uma resposta mais instigante. Pois, continuaríamos a falar sobre diferenciações entre estratos etc. e tal. Mas não vai muito longe a teoria que simplesmente nega a existência do excesso de burocracia quando se trata de demandas de estratos superiores.

Uma contribuição em outra dimensão poderia ser aquela relativa às corporações de ofício. Onde bacharéis do direito e contabilidade se fazem representar e garantir reserva de mercado.

Essa explicação já foi levada a sério em análises de aberturas e fechamento de empresas, por exemplo. Há quem afirme que determinadas atividades são reservadas a grupos de profissionais (caso do impedimento de auto defesa em tribunais reservados aos advogados, por exemplo). Entretanto, quando da impossibilidade de se reservar por meio de legislação, há incentivos para a complexificação dos sistemas. Dessa forma, sempre haverá a “necessidade” da contratação de alguma “especialista” que conheça o sistema para “resolver” a questão. Na gíria popular, criar dificuldades para vender facilidades.

Um exemplo clássico é a abertura e fechamento de empresas, onde a Receita Federal exige que o proprietário da empresa a cadastre nas Associações de Lojistas para conseguir o CNPJ. Caso o empresário queira vender sua empresa a um terceiro, não basta mostrar o contrato de compra e venda a Receita Federal, pois precisará também de um “Certidão” da Associação de Lojistas. Na Associação de Lojistas, além das taxas das certidões, o empresário também necessitará do contrato de compra e venda registrado em cartório (que também cobram a autenticação e o registro). Resumindo a questão, o Estado (por meio da Receita Federal) exige que o cidadão seja “associado” a uma instituição privada, e que se submeta a ela. Simples forma de obrigar o cidadão a bancar os custos daquela instituição e ainda contratar um “contabilista” que atue como “despachante”. E assim temos uma instituição privada e uma profissão que se “tornam” absolutamente necessárias!


Enfim, há mundo além ralé, Mané! (risos... isso é só uma brincadeira!!!)
Abraços saudosos,

Brand Arenari disse...

Hum. . . vou ter q entrar nesse debate. . .

bill disse...

Bem, acho que não há divergências, somente provocações...
1- ninguém aqui acredita que a diferenciação estratificada seja a causa de todos os nossos males.
2- Todos concordam que exista problemas burocráticos em todos os estratos.
3- todos acham que o acesso PODE ser regulado por meio da diferenciação de poder.
4 - todos acham que estas dificuldades facilitam a venda de facilidades.
5- Todos concordam que o Vítor provocando é infinitamente melhor do que o Mainardi.

Abraço.

Roberto Torres disse...

hahahaaha,

Pois e, Bill conciliador ... mas assim vai tirar a graca do debate ...

Vitor, vc conhece muito melhor o assunto do que eu, e as respostas que vc deu as suas questoes nao negam o peso relativo que eu acho necessario conferir a desigualdade de poder. Alias, os ambientalistas tb constituem um grupo de poder, nao e?

Mas, acho que todos vcs concordam, que as duas dimensoes da estratificacao, juntas, aparecem em todas as melhores formas de analisar os casos levantados. Alias, um dos efeitos conjuntos dessas duas formas de diferenciacao e que se constitua um estamento burocratico, que longe de ser algo de arranjos estatais pre-modernos e brasileiros, sao, como bill falou no inicio do texto, um traco de todas as burocracias, inclusive nas empresas privadas ...