quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Como um cachorro” 1- ou: a fruição no reino da necessidade


por Roberto Torres


Quase quatro da madrugada, numa festa dos estudantes da Universidade Federal de Juiz de Fora, na praça do Campus próximo aos bairros pobres e favelas da parte alta da Cidade: um catador de latinhas chama a atenção de todos ao iniciar uma disputa física com um cachorro. Era um rapaz negro, aparentando menos de trinta anos, que projetou naquele cachorro uma raiva e uma agressividade urgentes que certamente não se formaram por causa do bicho. Não era a este que se dirigia toda a luta desesperada, em estado de êxtase, do jovem catador por uma espécie de consideração e de apreço que só cabiam aos pares que compartilhavam a festa como festa. Neste momento de prazer e fruição dos estudantes de classe média, os rapazes pobres do entorno participavam da festa alheia para ganhar um trocado e assim aliviar o regime de urgência de suas vidas, marcadas pela ameaça e pela privação tanto material como simbólica.

Estes rapazes estão na festa por necessidade, subordinação de todos os momentos e “esferas da vida” (inclusive a esfera afetivo-sexual) à urgência de uma renda em dinheiro e de um crédito social básico que permita a vida simbólica ser experimentada com autonomia, e por isso não partilham com os estudantes daquilo que tem e que confere valor social na ocasião da festa: o prazer despreocupado. É precisamente a despreocupação relativa com o “reino das necessidades materiais e simbólicas urgentes” o que permite aos jovens criados com significativo afastamento do jogo sério, de “vida ou morte”, disputa pela possibilidade de dominar o estigma de fracassado ou delinqüente, todo o privilégio de fruir a vida numa festa com amigos e amigas.

Mas enquanto os garotos “bem nascidos e criados” desfrutam do privilégio das noitadas livres da preocupação com o “como será o amanha”, os garotos pobres vivem a noitada sempre atormentados por esta questão prática e de significado existencial imenso para todos os que ainda não a resolveram. Por sentirem que não acumulam capital econômico e capital simbólico suficientes para “queimar” dinheiro, entregar o corpo, sem comprometer seriamente o porvir da vida material e simbólica, garotos e garotas da “ralé estrutural” não podem exercer o “distanciamento do papel”, condição básica para qualquer tipo de prazer despreocupado (fruição). Assim, por exemplo, a vida sexual das adolescentes nunca se liberta do medo e da ameaça bem real e arbitrária do estigma de fáceis, vagabundas, de modo a legitimar o uso instrumental e sem consideração afetiva de seus corpos por rapazes que, por sua vez, também não podem se afastar das disputas por honra com os outros homens, a qual se mostra na própria luta instrumental pelas mulheres.

O mito de que, apesar de todas as privações possíveis e inegáveis, as pessoas muito pobres não são impedidas de gozar a vida no sexo é mito justamente porque ignora que gozar a vida em qualquer sentido e lugar depende de já ter a vida defendida das ameaças materiais e simbólicas de privação corporal. Apesar de ser muito esquisito e controverso querer analisar o gozo sexual dos pobres, e caso não acreditemos que o sexo é um tipo de graça doada por deuses que manipulam a vida e as condições objetivas da existência humana, o uso da razão nos obriga a saber que só é possível tomar distância do que é sério, do que envolve nossa sobrevivência material e simbólica no dia a dia, na condição de já termos herdado uma posição estratégica que nos garanta a reprodução segura de nossa vida simbólica e material pelos menos até o limite físico do corpo diante do mundo, ou seja, a morte.

O peso implacável da preocupação e da urgência com a sobrevivência material e simbólica faz com que aquilo que “deveria ser” fruição seja a ritualização sem autonomia de tudo que atormenta constantemente as pessoas quando elas não sabem como afastar o risco do estigma e da ameaça de privação material. Assim, vemos que nos bailes funks as garotas expostas ao risco constante da estigmatização sexual participam de um ritual onde a exibição do corpo estigmatizado, com o foco na bunda, ou seja, a prisão ao papel, se configura como o próprio esforço para aliviar o estigma, bem sucedido na mesma medida em que os rapazes também exibem a bunda, cooperando na tarefa da des-estigmatização. Claro que o sucesso do rito traz um imenso prazer! Como de fato as funkeiras confessam ao esperarem com ansiedade pelos dias dos bailes. E como todos nós podemos sentir ao “por pra fora” em ocasiões propícias à generosidade humana tudo aquilo que nos atormenta nas situações mesquinhas do dia a dia. Mas o problema é que esta des-estigmatização mostra-se impotente para se transferir para o dia a dia da vida afetiva e sexual das meninas. “Como cachorras”, num paráfrase a Franz Kafka, elas simplesmente vivem o prazer como mera satisfação de necessidades que elas nunca escolherem para conduzir as suas vidas. No caso ai a necessidade de expor e aliviar o peso do estigma sobre o corpo hiper-sexualizado e reduzido a mero corpo potencialmente descartável.

No caso do rapaz da festa que se jogou na disputa física com o cachorro – e este em sua condição sub-humana explicitamente reconhecida incomodava menos os estudantes do que o rapaz - o simples fato da “diversão” ser buscada na luta com um animal a meu ver exibe sem deixar qualquer dúvida o sentido da vida para rapazes da mesma classe social deste em qualquer espaço que eles se achem: a urgência de defender a vida como atividade que interdita a entrada em disputas simbólicas de menor “seriedade”, onde o afastamento e a despreocupação com sobreviver material e simbolicamente é capaz de se traduzir em fruição e gozo livre do sexo, da bebida e da companhia das pessoas.

1 Com esta frase Franz Kafka encerra “O processo”. Joseph K, alter ego de Kafka, vive um processo criminal cuja lógica e razões lhes são totalmente opacas e inacessíveis. Então, após resistir até o fim em aderir ao jogo de relações obscuras que envolviam todas as pessoas na operação de seu processo, relações que funcionam tão melhor quanto mais desconhecidas forem para todos os agentes, Joseph é assassinado com uma faca no coração, sem saber, claro, de onde vinha a determinação de sua morte. “Como um cachorro” parece exprimir a condição de viver sob a constante condenação por um crime tão desconhecido quanto as “leis” que o definem. E de modo que a “morte social” seja tão arbitrária e misteriosa quanto a morte biológica.

Nenhum comentário: