sexta-feira, 17 de outubro de 2008
Permanecer para que tudo possa mudar
De tempo em tempo ocorre um retorno de uma antiga concepção que tende a relacionar grau civilizatório alcançado por um país com expressões como “tradição” e “cultura”. O que geralmente se quer ressaltar é que a história de um povo é reconhecida em sua solidez institucional, que promove limites normativos dentro dos quais a inovação e a mudança são aceitas. Se é sólida a cultura em um período relativamente longo de tempo, há a tendência de considerar o país “civilizado”, a despeito do grau de desenvolvimento econômico alcançado. Portanto, a mudança aceitável é a incremental, não estrutural. Nas instituições econômicas, ocorre o mesmo: as análises de risco econômico, como o “risco Brasil” leva em conta exatamente a possibilidade de permanência do grau institucional alcançado, por exemplo, a tendência a honrar contratos firmados. É por isso que o Governo Lula representa um dos maiores saltos civilizatórios feito pelo Brasil.
1 – A história institucional
Nossa história é feita de rupturas institucionais duras e conviveu com uma profunda latência à quebra de expectativas de agentes políticos e econômicos. Após a proclamação da república sabe-se lá quantas vezes as expectativas institucionais foram alteradas. Já ouvi alguns senhores lembrarem que votaram em uma eleição, mas não sabiam se votariam na seguinte. Recentemente: Ditadura, a não posse de Tancredo, A Nova Constituição, Collor, planos econômico, congelamento de poupanças... quais são nossas expectativas em relação ao futuro diante de tantas mudanças?
2 – O Partido dos Trabalhadores
Já faz 28 anos desde que o PT se tornou um partido político. Muito mais que isso, um partido de esquerda de massas que representava finalmente as possibilidades de mudanças na equação de classe que perdurava: uma pequena parte com o bolo e o resto sem convite para a festa. Uma desigualdade social lastimável e vergonhosa que resistia a tudo, mesmo ao fato de ser o Brasil o país que mais cresceu desde a segunda guerra mundial, até a década de 70. O novo partido aglutinava bandeiras e tinha tintas socialistas e uma indefectível tendência à mudança radical, à revolução. Estava ali a ameaça às expectativas dos agentes, econômicos ou não, e esta verborragia petista renovou as expectativas passadas de mudanças bruscas, inclusive antes de lula tomar posse. Mas estes extremos se tornaram insustentáveis, como se a garra revolucionária fosse tomada de uma preguiça macunaímica e uma programática tucana, misturado com uma pragmática leninista. No fim, deu no que deu, Lula afirmando: “nunca fui de esquerda”.
3 – De intelectuais e tucanos.
O PSDB é uma social democracia liberal que tentou em oito anos de governo federal impedir os excessos de estado e escassez de mercado, estabilizar a moeda e promover políticas sociais para atenuar as conseqüências humanas de tal “projeto”. Estabilizou a moeda, a um preço altíssimo, indicou caminhos de promoção de renda e fez da estabilidade monetária o ponto arquimédico para se pensar na estabilidade institucional. O Real adquiriu a face de uma tradição secular consensual, e se fez marca de um país que em um aspecto se mantinha estável. Foi só isso. Não fez nação com a estabilidade monetária. Os custos humanos viriam em 2002...
4 – Eleições
A posse do operário fora precedida de encontros entre membros do governo que se encerrava e do novo governo. O intelectual apertou a mão do operário, a esquerda estava sentada com o centro, o capital com o trabalho (ainda que isto soe demodé). Esta imagem talvez seja o símbolo mais forte da nova república. Havia uma renovação sem ruptura institucional, e um revezamento de entidades políticas antagônicas no plano político, ainda que não o fosse no plano político-programático. O que há de novidade é isto.
5 – Alguns anos depois
Estável institucionalmente e, o que parece, financeiramente, já que o país resiste, ainda, a uma crise econômica sem precedente. Não há como negar que a substância desta força seja a manutenção de marcos institucionais após dois governos sucessivos. Ou melhor, há sim, mas não há como negar que a substância desta força seja também a manutenção de marcos institucionais após dois governos sucessivos. Não há sorte nisso, a não ser que queiram acreditar em bruxaria, oráculos e magia. Há competência, não deste ou daquele governo, mas daquilo que PSDB e PT souberam expressar juntos até agora: uma nação, como uma civilização, se constrói com expectativas institucionais correspondidas no tempo.
6 - Enfim
O país é sólido economicamente agora, na crise? Creio, é por que é sólido institucionalmente. Promover a permanência, ás vezes, pode ser a postura política mais revolucionária no momento.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
14 comentários:
Bill, o sua sistematicidade e sua argúcia de análise me causam inveja. Fiquei realmente impressionado com a forma como voce sintetizou sua ferramenta conceitual para atingir o alvo de entender o que significa sermos hoje uma país melhor e mais civilizado. As condicoes institucionais capazes de viablizar e de atender expecativas de longo prazo sao capazes de (re)criar uma nacao na medida em que expectativas estáveis funcionam como horizonte cognitivo de ampliacao da solidariedade social. Se aqueles que vivem sobre as condicoes de instituicoes estáveis sabem possuir um futuro, ou seja, uma expectativa estável de que suas demandas sejam atendidas, eles podem olhar para o lado e investir nas expectivas de outrem. Numa análise sobre o subproletariado da Argélia Bourdieu conclui que nenhuma solidariedade de classe pode ser criada na classe dos "sem futuro". O seu texto me estimula bastante a pensar esse tema com o instrumental do Luhmann, fonte importante de seu brilhantismo.
Caros amigos,
Fiquei cá com uma dúvida:
"Há competência, não deste ou daquele governo, mas daquilo que PSDB e PT souberam expressar juntos até agora: uma nação, como uma civilização, se constrói com expectativas institucionais correspondidas no tempo."
Ok, tudo bem...
Mas até que ponto essa maturidade institucional suporta os solavancos de eventos esógenos, que tendem a turbar, ou até mesmo transformar a espectativa que até então estava sedimentada...
Explico: o 11 de setembro, nos EEUU, por exemplo...ninguém duvida que os marcos institucionais estadunidenses estão muito mais solidificados por essa "reafirmação" das tradições e valores nacionais do que em nossa jovem democracia...
O comportamento "oportunista" dos neocons, e a própria dramaticidade do episódio, e toda sua carga simbólica, levaram o povo estadunidense a rever em segundos sua carga de espectativa e sua capacidade de enxergar o outro, o vizinho do lado...ao invés de reforçar a crença nos valores que a distingüia como nação: democracia, direitos individuais, liberdade de expressão e de imprensa, etc, etc.
A pergunta é: até que ponto esse pilar institucional é volátil, e mais, que forças são mais eficientes na manipulação dessas variáveis, e como criar os antídotos democráticos para perenização dessas conquistas...?
Roberto,
É isso mesmo, mas antes achava que a permanência é o mecanismo cognitivo próprio das elites, sem reparar que a própria possibilidade de mudanças sociais era baseada em uma série de expectativas políticas cirstalizadas no tempo. Ou seja, até a manutenção da esperança em um mundo melhor depende fundamentalmente de dispositivos institucionais permanentemente mantidos.
Abraço
Xacal,
vc se refere a substância que anima os valores institucionais, penso eu. Ou seja, o que anima a incursão americana no Iraque? A bandeira da liberdade ou do ganho econômico? ou seja, obviamente em determinados momentos utilizar os valores institucionais, subvertendo-os, é interessante para grupos interessados, por exemplo, em lucros do petróleo. A questão é que mesmo agindo assim, isso não elimina, como vc sugere, as expectativas americanas sobre o que a américa é, e quais os elementos institucionais que os caracterizam. Inclusive todos os movimentos de protesto que emregiram pós 11 de setembro reforçam os valores aos quais vc faz referência.
Abraço.
Bill, entao a própria possibilidade de reproducao auto-refenrenciada de instituicoes (e sistemas sociais), como no exemplo destacado para o direito, é pré-condicao para as mudancas mais radicias. Quando mais seguranca, menos ansiedade, mais possibilidiades e mais chances de transformais radicais..
Roberto,
O marcelo Neves nos mostrou exatamente isso. Os problemas de nosso sistema jurídico é exatamente a sua permeabilidade diante de lógicas extrínsecas ao seu funcionamento, como a política, portanto ruptura institucional em sua lógica própria. Nossas expectativas jutídicas são: queremos um julgamento "justo" e não permeado pela lógica do "poder".
Abraço.
Bill,
mas a concepção de "justo" não é fixa...e muita das vezes, muda com a ordem política vigente, porque em larga escala, mudanças politicas significam também reestruturações no aparto jurídico-normativo estatal...
talvez a espectativa de justo que mais se aproxime da natureza do poder hegemônico seja o mais próximo de estabilidade que possamos ter...
veja nosso caso: uma sociedade democrática e um sistema jurídico vertical, excludente e privatista...
é a permeabilidade jurídica, em alguns casos, que possibilita a oxigenação, inclusive para alternar poder...
um abraço...
Oi Bill!
Não me sinto tão confortável em escrever a minha opinião a respeito do objeto de discussão do texto diante de tantos comentários bem estruturados, então só deixo registrado que passei pelo blog , e que gostei muito, principalmente de ler algo advindo das tuas reflexões, além das que acompanho em sala de aula.
Abraço,
Anne
Xacal,
A estabilidade e autoreferencialidade do sistema jurídico a que me refiro não diz respeito tanto à substância ou a qualidade do "justo", mas a sua forma no tempo. O que digo, ademais, é que a modernidade do sistema jurídico é sua máxima circularidade em torno da forma que o subjaz: isto é o que cria expectativas, em um nível, do que é "justo". mas, obviamente o conteúdo sempre muda, e que o seja, já que a sociedade está sempre mudando também.
Anne,
Bom te ver por aqui, mas ficaria mais feliz se opinasse, ora! Conheço suas reflexões e sei que elas acrescentariam muito.
Bj.
Bill, mas a continuidade operacional da forma, como voce mesmo disse, somente em um nível explica a possibilidade das expectativas sobre o justo.
Roberto,
De outra forma cristalizaríamos a sociedade em torno de conteúdos universais e atemporais, eu não posso concordar com isso. como o Xacal disse, eles sempre mudam... Abração.
Claro Bill, eu também nao concordo a cristalizaco de conteúdos morais na coesao social, e, do ponto de vista da análise sociológica, é claro que a autoreproducao das formas explica muita coisa sem os conteúdos. A comecar por todo tipo de ritualismo primitivo, até os sofisticados rituais de mundo moderno e de seus sistemas sociais, nao explicamos como a sociedade se reproduz se nao vemos que existe uma crenca e uma continuidade irrefletida de procedimentos, de formas. A crenca no procedimento cria inclusive as expecativas de longo prazo na medida em que a consecussao de tais procedimentos deixa de ser algo e questao para tornar-se o pano de fundo inquestionável. O que eu acho que fica ainda em questao, para além do enorme poder explicativo de uma sociologia que analisa o encadeamento simbólico destas formas autoreferenciadas, sao as condicoes de funcionamento e as afinidades eletivas destas formas com conteúdos do estilo de vida de estratos sociais específicos. Tento por esta questao na mesma linha que Bourdieu critica Levi-Straus. Por mais que a diferenciacao funcional se autonomize da diferenciacao estratificada, ela nao funciona e nem se expande a despeito da diferenciacao estratificada, logo dos conteúdos que dao sentido ao agir dos diferentes estratos sociais .
Postar um comentário