Por Paulo Sérgio Ribeiro
A institucionalização de um sistema de ensino é uma temática recorrente quando focamos a co-determinação entre a estratificação social e o monopólio da cultura letrada, delineando uma questão de fundo no estudo da formação social brasileira. A universalização quase irrestrita do acesso à escola para a população de sete a 14 anos, observável desde a década de 1990, é um avanço nas demandas pelo direito à educação, embora suceda em questionamentos entre a burocracia estatal e seus órgãos especializados, as organizações civis e os demais atores politicamente relevantes diante de impasses na atribuição de competências e alocação de recursos para o setor educacional na assimétrica federação brasileira. Em acordo com essas ponderações, a educação integral prescrita na LDB de 1996 como modalidade de ensino a ser expandida na educação básica é uma meta suscetível a inúmeros testes de meios nas políticas públicas em vigor. Assim, delimito a educação integral como um ethos escolar específico, cuja adoção pelas famílias é uma variável dependente de estratégias de socialização escolar afeitas à situações de classe.
No ensino fundamental, a universalização do acesso escolar não vem demonstrando ser uma medida resoluta para as deficiências no processo ensino-aprendizagem. Os fatores concorrentes para essas deficiências estão associados às condições intra e extra-escolares que influem no tempo médio de conclusão acima do desejável. Uma distorção que se acentua quando observadas as desigualdades regionais: em escala nacional, o tempo médio de conclusão no ciclo educacional obrigatório – as nove séries do ensino fundamental – corresponde a dez anos, podendo chegar a 13 anos na região Nordeste, tal como verificado em 2005 (Ipea, 2007). A presença massiva de estudantes repetentes impõe constrangimentos à organização das escolas, cujas deficiências de rendimento são reforçadas pelos limites quantitativos de vagas para reuni-los com os estudantes matriculados em idade própria. Nem mesmo a possibilidade de multiplicação de escolas responde eficazmente o problema, pois não altera as múltiplas causas da distorção idade / série. Todavia, o aspecto mais crítico do baixo rendimento escolar é o abandono definitivo da escola, ocorrendo em alguns casos quando os estudantes mal iniciaram sua vida escolar, o que os mantém ou os fazem regredir ao estado de analfabetismo.
Não obstante os limites de financiamento público no setor, a educação integral é um referencial possível para as famílias no que toca à correlação entre socialização escolar e socialização primária, assim como um segmento da administração pública na política educacional fluminense, dada a permanência dos Cieps. A educação integral, em sentido estrito, pode ser entendida como a transmissão de conhecimentos não exclusiva à herança social formalizada em conteúdos curriculares e, não obstante, como uma aspiração coletiva passível de consensos e dissensos nas concepções de famílias e professores acerca da divisão do trabalho escolar.
A democratização de oportunidades educacionais requer não apenas um novo patamar distributivo para as políticas públicas, mas a continuidade e a qualificação das discussões e pesquisas sobre a emergência de “responsabilidades educacionais, não tipicamente escolares” (Cavalieri, 2002) cuja tradução pelos professores e estudantes pode não ser bem-sucedida na ausência de um projeto político-cultural renovado para o ensino fundamental, que responde pelo grosso da população escolarizada no país. Sua abordagem enfatiza a dimensão integradora da educação face às demandas dificilmente assimiláveis pelos papéis tradicionais que demarcam a identidade profissional dos educadores. A socialização primária é cada vez mais co-extensiva à socialização escolar, caracterizando-se por “atividades relacionadas à higiene, saúde, alimentação”, assim como pela “grande dependência afetiva de parcela importante do alunado que, muitas vezes, tem na escola e em seus profissionais a referência mais estável entre suas experiências de vida” (Cavalieri, 2002, p.249). A negação por parte desses profissionais de responsabilidades entendidas como alheias ao ato de instruir é contraposta pelas evidências de que sua incorporação no sistema de ensino é inevitável. O problema é que tais demandas são incorporadas quase sempre sem planejamento, a despeito de sua institucionalização silenciosa nas escolas públicas.
As ambigüidades dos professores diante dessas mudanças são compreensíveis pelo modo como a socialização na escola torna-se uma esfera potencial de conflitos entre a instituição escolar e os grupos familiares situados em pólos extremos da escala social. A escolha do destino escolar orienta-se por uma noção de “boa educação”, um conjunto inarticulado de valores e interesses que define o estilo de vida de uma fração ou classe social. Noutros termos, o habitus de uma classe fundamenta-se em disposições socialmente adquiridas, inscritas de modo pré-reflexivo nas práticas e visões de mundo de indivíduos e grupos em uma mesma situação de classe. As escolhas das famílias quanto ao tipo de socialização dos filhos podem ser tomadas como “livre” escolha apenas em termos de oportunidades objetivas de adequação entre o ethos familiar e a organização escolar.
“A violência simbólica nunca se exerce sem a cumplicidade (extorquida) dos que a sofrem”, lembra Bourdieu, o que equivale a dizer que a reprodução de condições sociais adscritas no percurso escolar é indissociada da forma como famílias e professores avaliam-se mutuamente. No senso comum pedagógico predomina a idéia de que há uma divisão do trabalho na qual a família educa e a escola ensina. A insuficiência de socialização prévia é diagnosticada pela maioria dos professores como prejudicial à aprendizagem, obrigando-os à tarefa de ensinar comportamentos que poderia e/ou deveria ser exclusiva à instituição familiar. Essa exigência é tomada como um “desvio” de suas tarefas ordinárias. A percepção dos professores deve ser analisada não como um mote para sua culpabilização diante do fracasso escolar generalizado, mas como um apontamento para novas competências profissionais ante a participação da mulher no mercado de trabalho e a mudança de seu status social (há muito distante do exclusivismo doméstico), a reestruturação dos arranjos familiares e o prolongamento do tempo vivido por crianças e jovens na escola. A incorporação nas últimas décadas das grandes massas no sistema de ensino no país implica na entrada de crianças oriundas de camadas pauperizadas que partilham modos de educar diversos dos que organizam a escola.
Ao ingressar seus filhos na escola, famílias de elite e famílias das camadas populares têm interesse não apenas na transmissão estrita de conhecimentos, mas no aprendizado de comportamentos socialmente valorizados. Entretanto, o conteúdo dessas expectativas e a realização das mesmas variam conforme a posição que essas famílias ocupam na hierarquia social e, por conseguinte, com o grau de proximidade da cultura escolar dominante. Assim sendo, para as famílias de elite tende a haver mais chances de se obter concordância entre a escolha da escola e o controle da educação ali realizada, ao contrário das classes populares, marcadas por inúmeras dissonâncias entre a socialização primária e a socialização escolar.
Em uma perspectiva relacional das classes sociais, a confrontação de grupos de elite e classes populares ocorre com referência a modelos hegemônicos de socialização escolar. Com efeito, a luta de classes é uma luta pela (re)definição de princípios de visão e de divisão do mundo estabelecidos nos termos de uma classe ou fração de classe dominante que, difundidos de modo inconsciente, servem de orientação para a classe dominada em condições sócio-econômicas que as separam no espaço social e físico. Tais esquemas de classificação são dotados de uma “cumplicidade ontológica” com as formas de apropriação do capital simbólico em trajetórias escolares distintivas do ethos de classe das camadas de alta renda que, a despeito das alterações de sua composição social nos ciclos de modernização experimentados no século passado, intervieram no controle da expansão escolar de modo a operar no monopólio dos poderes públicos o monopólio de fato da cultura letrada.
A ideologia do mérito, que justifica a noção de desempenho diferencial a partir do esforço individual na incorporação do saber escolar, dissimula as condições prévias para a formação e transmissão do capital cultural e, assim, o fundamento sócio-econômico da distinção social na confluência da origem familiar com o capital escolar. Com efeito, basta que a escola efetive o desiderato universalista de tratar em igual medida todos os estudantes, a despeito de desigualdades diante da cultura atribuíveis a uma socialização primária desfavorável, para que a esperada eqüidade formal na transmissão de conteúdos disciplinares e na avaliação da aprendizagem confirme, na prática, a naturalização do privilégio cultural na socialização escolar.
Famílias de camadas populares têm grande probabilidade de exporem-se a duas escolhas mutuamente excludentes: engajamento dos filhos em uma economia domiciliar e no trabalho remunerado não-formalizado ou o ingresso na escola pública. Todavia, está implícito nessa escolha mais do que uma necessidade material pungente, considerando que a opção dos pais pela inserção precoce das crianças no mundo do trabalho decorre de uma demanda de socialização escolar não atendida, discernível pela oferta desigual do tempo nas práticas escolares e de todos os recursos estratégicos provenientes do mesmo. as classes populares, assim como os grupos de elite, procuram escolas com as quais tenham afinidades, embora, no caso das primeiras sob o reconhecimento tácito de que sua educação familiar é considerada ilegítima em relação às práticas escolares que submetem seus filhos, o que não impede necessariamente a elaboração de estratégias de intervenção direcionadas para a conservação / transfiguração de seu ethos familiar, que tende a se confundir com o ethos das classes trabalhadoras, matizado pela valorização da disciplina e do saber prático corporificados numa visão de mundo ambígua e reativa à socialização escolar em sua contigüidade com a cultura de elite.
Um novo marco para a regulação do sistema de ensino encaminha-se para ou, ao menos, está constrangido à tentativa de viabilizar uma oferta equânime de tempo e espaço na escolarização da população brasileira que comporte demandas correlacionadas à socialização primária, posto não ser monopólio de uma única classe ou grupo social. Subscrevo o diagnóstico de Cavalieri (op. cit.) de que essas demandas “vem ocorrendo por urgente imposição da realidade, e não por uma escolha político-educacional deliberada”, o que tende a reforçar uma ausência de razoabilidade nos processos decisórios do setor educacional.
A institucionalização de um sistema de ensino é uma temática recorrente quando focamos a co-determinação entre a estratificação social e o monopólio da cultura letrada, delineando uma questão de fundo no estudo da formação social brasileira. A universalização quase irrestrita do acesso à escola para a população de sete a 14 anos, observável desde a década de 1990, é um avanço nas demandas pelo direito à educação, embora suceda em questionamentos entre a burocracia estatal e seus órgãos especializados, as organizações civis e os demais atores politicamente relevantes diante de impasses na atribuição de competências e alocação de recursos para o setor educacional na assimétrica federação brasileira. Em acordo com essas ponderações, a educação integral prescrita na LDB de 1996 como modalidade de ensino a ser expandida na educação básica é uma meta suscetível a inúmeros testes de meios nas políticas públicas em vigor. Assim, delimito a educação integral como um ethos escolar específico, cuja adoção pelas famílias é uma variável dependente de estratégias de socialização escolar afeitas à situações de classe.
No ensino fundamental, a universalização do acesso escolar não vem demonstrando ser uma medida resoluta para as deficiências no processo ensino-aprendizagem. Os fatores concorrentes para essas deficiências estão associados às condições intra e extra-escolares que influem no tempo médio de conclusão acima do desejável. Uma distorção que se acentua quando observadas as desigualdades regionais: em escala nacional, o tempo médio de conclusão no ciclo educacional obrigatório – as nove séries do ensino fundamental – corresponde a dez anos, podendo chegar a 13 anos na região Nordeste, tal como verificado em 2005 (Ipea, 2007). A presença massiva de estudantes repetentes impõe constrangimentos à organização das escolas, cujas deficiências de rendimento são reforçadas pelos limites quantitativos de vagas para reuni-los com os estudantes matriculados em idade própria. Nem mesmo a possibilidade de multiplicação de escolas responde eficazmente o problema, pois não altera as múltiplas causas da distorção idade / série. Todavia, o aspecto mais crítico do baixo rendimento escolar é o abandono definitivo da escola, ocorrendo em alguns casos quando os estudantes mal iniciaram sua vida escolar, o que os mantém ou os fazem regredir ao estado de analfabetismo.
Não obstante os limites de financiamento público no setor, a educação integral é um referencial possível para as famílias no que toca à correlação entre socialização escolar e socialização primária, assim como um segmento da administração pública na política educacional fluminense, dada a permanência dos Cieps. A educação integral, em sentido estrito, pode ser entendida como a transmissão de conhecimentos não exclusiva à herança social formalizada em conteúdos curriculares e, não obstante, como uma aspiração coletiva passível de consensos e dissensos nas concepções de famílias e professores acerca da divisão do trabalho escolar.
A democratização de oportunidades educacionais requer não apenas um novo patamar distributivo para as políticas públicas, mas a continuidade e a qualificação das discussões e pesquisas sobre a emergência de “responsabilidades educacionais, não tipicamente escolares” (Cavalieri, 2002) cuja tradução pelos professores e estudantes pode não ser bem-sucedida na ausência de um projeto político-cultural renovado para o ensino fundamental, que responde pelo grosso da população escolarizada no país. Sua abordagem enfatiza a dimensão integradora da educação face às demandas dificilmente assimiláveis pelos papéis tradicionais que demarcam a identidade profissional dos educadores. A socialização primária é cada vez mais co-extensiva à socialização escolar, caracterizando-se por “atividades relacionadas à higiene, saúde, alimentação”, assim como pela “grande dependência afetiva de parcela importante do alunado que, muitas vezes, tem na escola e em seus profissionais a referência mais estável entre suas experiências de vida” (Cavalieri, 2002, p.249). A negação por parte desses profissionais de responsabilidades entendidas como alheias ao ato de instruir é contraposta pelas evidências de que sua incorporação no sistema de ensino é inevitável. O problema é que tais demandas são incorporadas quase sempre sem planejamento, a despeito de sua institucionalização silenciosa nas escolas públicas.
As ambigüidades dos professores diante dessas mudanças são compreensíveis pelo modo como a socialização na escola torna-se uma esfera potencial de conflitos entre a instituição escolar e os grupos familiares situados em pólos extremos da escala social. A escolha do destino escolar orienta-se por uma noção de “boa educação”, um conjunto inarticulado de valores e interesses que define o estilo de vida de uma fração ou classe social. Noutros termos, o habitus de uma classe fundamenta-se em disposições socialmente adquiridas, inscritas de modo pré-reflexivo nas práticas e visões de mundo de indivíduos e grupos em uma mesma situação de classe. As escolhas das famílias quanto ao tipo de socialização dos filhos podem ser tomadas como “livre” escolha apenas em termos de oportunidades objetivas de adequação entre o ethos familiar e a organização escolar.
“A violência simbólica nunca se exerce sem a cumplicidade (extorquida) dos que a sofrem”, lembra Bourdieu, o que equivale a dizer que a reprodução de condições sociais adscritas no percurso escolar é indissociada da forma como famílias e professores avaliam-se mutuamente. No senso comum pedagógico predomina a idéia de que há uma divisão do trabalho na qual a família educa e a escola ensina. A insuficiência de socialização prévia é diagnosticada pela maioria dos professores como prejudicial à aprendizagem, obrigando-os à tarefa de ensinar comportamentos que poderia e/ou deveria ser exclusiva à instituição familiar. Essa exigência é tomada como um “desvio” de suas tarefas ordinárias. A percepção dos professores deve ser analisada não como um mote para sua culpabilização diante do fracasso escolar generalizado, mas como um apontamento para novas competências profissionais ante a participação da mulher no mercado de trabalho e a mudança de seu status social (há muito distante do exclusivismo doméstico), a reestruturação dos arranjos familiares e o prolongamento do tempo vivido por crianças e jovens na escola. A incorporação nas últimas décadas das grandes massas no sistema de ensino no país implica na entrada de crianças oriundas de camadas pauperizadas que partilham modos de educar diversos dos que organizam a escola.
Ao ingressar seus filhos na escola, famílias de elite e famílias das camadas populares têm interesse não apenas na transmissão estrita de conhecimentos, mas no aprendizado de comportamentos socialmente valorizados. Entretanto, o conteúdo dessas expectativas e a realização das mesmas variam conforme a posição que essas famílias ocupam na hierarquia social e, por conseguinte, com o grau de proximidade da cultura escolar dominante. Assim sendo, para as famílias de elite tende a haver mais chances de se obter concordância entre a escolha da escola e o controle da educação ali realizada, ao contrário das classes populares, marcadas por inúmeras dissonâncias entre a socialização primária e a socialização escolar.
Em uma perspectiva relacional das classes sociais, a confrontação de grupos de elite e classes populares ocorre com referência a modelos hegemônicos de socialização escolar. Com efeito, a luta de classes é uma luta pela (re)definição de princípios de visão e de divisão do mundo estabelecidos nos termos de uma classe ou fração de classe dominante que, difundidos de modo inconsciente, servem de orientação para a classe dominada em condições sócio-econômicas que as separam no espaço social e físico. Tais esquemas de classificação são dotados de uma “cumplicidade ontológica” com as formas de apropriação do capital simbólico em trajetórias escolares distintivas do ethos de classe das camadas de alta renda que, a despeito das alterações de sua composição social nos ciclos de modernização experimentados no século passado, intervieram no controle da expansão escolar de modo a operar no monopólio dos poderes públicos o monopólio de fato da cultura letrada.
A ideologia do mérito, que justifica a noção de desempenho diferencial a partir do esforço individual na incorporação do saber escolar, dissimula as condições prévias para a formação e transmissão do capital cultural e, assim, o fundamento sócio-econômico da distinção social na confluência da origem familiar com o capital escolar. Com efeito, basta que a escola efetive o desiderato universalista de tratar em igual medida todos os estudantes, a despeito de desigualdades diante da cultura atribuíveis a uma socialização primária desfavorável, para que a esperada eqüidade formal na transmissão de conteúdos disciplinares e na avaliação da aprendizagem confirme, na prática, a naturalização do privilégio cultural na socialização escolar.
Famílias de camadas populares têm grande probabilidade de exporem-se a duas escolhas mutuamente excludentes: engajamento dos filhos em uma economia domiciliar e no trabalho remunerado não-formalizado ou o ingresso na escola pública. Todavia, está implícito nessa escolha mais do que uma necessidade material pungente, considerando que a opção dos pais pela inserção precoce das crianças no mundo do trabalho decorre de uma demanda de socialização escolar não atendida, discernível pela oferta desigual do tempo nas práticas escolares e de todos os recursos estratégicos provenientes do mesmo. as classes populares, assim como os grupos de elite, procuram escolas com as quais tenham afinidades, embora, no caso das primeiras sob o reconhecimento tácito de que sua educação familiar é considerada ilegítima em relação às práticas escolares que submetem seus filhos, o que não impede necessariamente a elaboração de estratégias de intervenção direcionadas para a conservação / transfiguração de seu ethos familiar, que tende a se confundir com o ethos das classes trabalhadoras, matizado pela valorização da disciplina e do saber prático corporificados numa visão de mundo ambígua e reativa à socialização escolar em sua contigüidade com a cultura de elite.
Um novo marco para a regulação do sistema de ensino encaminha-se para ou, ao menos, está constrangido à tentativa de viabilizar uma oferta equânime de tempo e espaço na escolarização da população brasileira que comporte demandas correlacionadas à socialização primária, posto não ser monopólio de uma única classe ou grupo social. Subscrevo o diagnóstico de Cavalieri (op. cit.) de que essas demandas “vem ocorrendo por urgente imposição da realidade, e não por uma escolha político-educacional deliberada”, o que tende a reforçar uma ausência de razoabilidade nos processos decisórios do setor educacional.
5 comentários:
Texto muito interessante Paulo. Mas eu acho que a violencia simbólica tem ai dois níveis, um mais agudo e qualitativamente distinto também. O fato de haver a imposcao de um modelo dominante de escola, dos valores institucionalizados de uma classe sobre outras, segundo o que voce apresenta na análise, pode ser violencia simbólica tanto 1) porque as classes que recebem a escola criada por outra classe nao puderam participar simentricamente da criacao do modelo, embora os indivíduos desta classe possam, em termos típicos, se adaptar bem ao jogo esolar. Como também ela pode ser 2), além desta imposicao, a privacao das ferramentas simbólicas (disposicoes e capacidades) mais básicas para se jogar o jogo, como a privacao da disposicao para planejar o futuro. Eu acho isso importante, porque nem sempre fica claro na visao de Bourdieu que uma escola que impoem a cultura legitima e universaliza as ferramentas básicas para usar esta cultura (e que permite a acumulacao de outras) é sempre melhor do que uma que, além de impor a cultura dominante, ratifica a incoerencia de serem os pobres intimado à jogar, sem as armas básicas da disputa. Em Bourdieu, nao fica claro se o que se quer é universalizar o modelo de escola "burgues", aquele que funciona para quem quer estudar, ou reconhecer o valor das afinidades educacionais das classes pobres, posto que estas sao formadas em meio uma privacao mais forte e castradora.
Bom te ver de novo aqui Paulo. òtimo texto, que me faz lembrar a idéia de ma-fe institucional em Bourdieu e Foucault. A escola nao pode nunca resolver de cima os problemas objetivos da ralé, ainda que possa amenizá-los, acabando por continuar o serviço que a familia desestruturada inicia, na reprodução da desigualdade através da construção do habitus precário. Acho que voce tem muito a debater com nossa amiga Lorena, de volta a Uenf agora, no doutorado. Também sugiro, se ainda não viu, o livro "the State nobility" de Bourdieu, obrigatório para seu tema, onde ele explicita a relação de transferencia de poder pelo canal familiar, fazendo com que a qualificação seja um signo de status moderno que reproduz privilégios de classe por formas tao intactas quanto as tradicionais. Também o Lahire possui coisas fundamentais para seu importante tema na questão do mérito na escola.
Nas sociedades formalmente democráticas em que vivemos, é corrente a divisão da política em “bastidores”, as salas secretas em que se fazem os acordos e se tomam as grandes decisões, e “palco”, o jogo de cena representado para os
não-iniciados, isto é, para o povo em geral. O que ocorre no palco serviria apenas para distrair a platéia e manter a estabilidade do sistema, perpetuando o mito da democracia como “governo do povo”. Por motivos óbvios, a mídia pertence a este segundo espaço — mas os fatos políticos relevantes ocorreriam no primeiro ,nos “bastidores”.
Não se trata de negar as imperfeições da democracia formal, que se caracteriza, de fato, pela limitação da participação política popular. Mas a distinção entre bastidores e palco merece ser relativizada. Em primeiro
lugar, a passividade política da “massa” não se trata de um dado “da natureza”, como quer a tradição do pensamento elitista. Ela precisa ser produzida. Aliás, uma investigação sobre o papel dos meios de comunicação na produção desta passividade seria de grande interesse. Como a produção
da apatia é imperfeita, a massa irrompe, de tempos em tempos no
jogo político, ou seja, a platéia invade o palco e tumultua aquilo que fora acertado nos bastidores.
Além disso, nos regimes formalmente democráticos, o povo
mantém a prerrogativa de decidir quem exercerá o poder político. Ou, continuando com a metáfora, a platéia decide quem vai para os bastidores. Pela emergência desta crise, portanto, consta-se uma cisão inegociável no seio de uma produção de sentido, seja
no campo da arte, seja no campo da sociedade – o que veio a se constituir como visão de estado, engenhoso aparelho de reprodução de textualidades institucionais,
prática de política de poder e de produção de sentido cultural.
Se fossemos continuar a pensar através do esquema de relação entre projeto de visão de estado, projeto de construção de identidade nacional e produção de
discursos e produtos de arte, perceberíamos como a contraposição que emerge nesta crise é um corte sem precedentes. Ambos ainda se encontram ligados aos ideais modernos de institucionalização de discursos de construção de nação. Geralmente esses discursos incorrem no problema – problema esse que é do âmbito do modo de ação do moderno – da institucionalização de práticas totalizantes e totalizadas de modos de vida social,cultural, econômica, política etc.
Dito de outra forma: mais do que explicitar a falência de certas práticas, detona um processo de possibilidade de releitura da relação dos projetos nacionais institucionais com as forças constituintes do fazer artístico e do social, através do engendramento de formas delirantes ao longo de percursos históricos na arte brasileira.
A formação de grupos de poder faz parte dos processos de construção de práticas de políticas de cultura. Não se pode ser ingênuo e descartar as elaborações de regimes de forças que irão estar compondo a todo o momento operações de significação no campo cultural e, nesse sentido, contribuindo para a consolidação de determinadas práticas institucionalizantes de controle.
O embate se configura, pois, justamente nesse ponto: sair de uma lógica binária causal e buscar estabelecer possibilidades de leitura em que as linhas de
força de cada projeto sejam nitidamente explicitadas. As forças reativas e ativas
estão a todo o momento criando e viabilizando processos constitutivos de
significação.
Oi Roberto, desculpa pela demora em te responder. Confesso que ao escrever o texto, pensava mais no segundo nível de análise delimitado por você. A maior ou menor possibilidade de adequação entre a socialização primária e a socialização escolar é uma questão que sugere, a meu ver, analisar os contornos concretos das situações de autonomia e de heteronomia na escolha do destino escolar - um dos atributos da tarefa cotidiana de “projetar o futuro”. Entendo a heteronomia, atribuível às classes populares e aos grupos da “ralé”, como as (in)disposições para se jogar o jogo em termos de uma crença compartilhada na promessa de que todos podem se fazer herdeiros dos prêmios da escola, explicitadas muitas vezes em atos de revolta em âmbito pré-político e radicadas em um quadro de privação material das “ferramentas” para se apropriar das competências sociais não restritas ao domínio estrito dos conteúdos curriculares, mas imprescindíveis para uma inserção social autônoma. “Distinção vem do berço”. Acolho sua dúvida quanto ao posicionamento de Bourdieu sobre o que é determinante em seu diagnóstico sobre as vantagens e desvantagens de uma escola unificada. Uma resposta provisória é de que “reconhecer o valor das afinidades educacionais das classes pobres” pode suceder no efeito perverso de oportunizar a reprodução do capital familiar conforme expectativas de socialização escolar mitigadas ou mesmo anuladas pela insegurança econômica extrema. Estou buscando problematizar no programa dos Cieps talvez se propusesse um sistema de ensino que comportasse tanto uma política universalista quanto uma política de focalização – vínculo que foi desacreditado pela maioria dos críticos desse programa de educação integral ao afirmarem a sobreposição da política dita assistencialista à política educacional. Tais críticos tendiam a considerar na generalização do Ciep a inviabilidade de uma escola unificada. Em suma, está em jogo na pesquisa sobre essa experiência educacional uma proposta de socialização escolar que, de modo mais ou menos factível do ponto de vista das lutas sociais, promovesse o que você vem qualificando ultimamente por uma “acumulação primitiva de capital simbólico”.
Um abraço véio.
P.S: Agora sei exatamente o que você me disse há quase dois anos sobre a solidão intelectual. Ainda bem que eu deixo a tristeza de lado aqui no blog e posso voltar a conversar com a rapaziada. Mas, uma cerva gelada ainda cai bem (rs).
Bom te ver também Fabrício! Pelo que li de seu último post, você tá na terrinha de novo. Agradeço muito suas referências. Do Bourdieu, estou trabalhando por enquanto com o “Escritos de educação”, “Poder simbólico” e o “Coisas ditas” e com um artigo do Lahire chamado “Crenças coletivas e desigualdades culturais”. Este a gente encontra no Scielo. Fiquei feliz pelo douto da Lorena. Bom pra ela e melhor ainda pra a Uenf que vai receber uma estudante séria e competente. Vou procurar os textos que você citou. Adelia me passou uma coletânea que você e Roberto certamente já conhecem: “Trabalhar com Bourdieu”. Dei uma olhada rápida e vi uns textos poderosos lá.
Abraço, nêgo véio.
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