Retornando a Habermas este elabora em amplo espectro os determinantes da crise da década de 1970, sob uma análise fortemente sistêmica e complexa, onde são dissecados os elementos econômicos, administrativos e até ambientais da crise em suas múltiplas reverberações. E os impactos dessa crise geram fortes e inequívocos abalos em uma parte sensível da sociedade, a sua esfera pública, onde são produzidos intricados e delicados processos de legitimação e/ou deslegitimação de projetos e demandas provenientes dos diferentes estratos onde, discursivamente, estes são vocalizados. Como um dos reflexos desta crise podemos ver, nitidamente, os processos de destituição da legitimidade do Estado de Bem Estar Social na Europa, muito bem descritos por Pierre Rosavallon para o caso específico francês, que até a década de 1970 era visto como um aparato inabalável. Afinal, fora as críticas de autores frankfurtianos e o neoliberalismo de F. Von Hayek, ninguém em sã consciência imaginaria a redução do Estado Social Democrata tal como acompanhamos nos últimos 30 anos.
Prosseguido, processos de destituição de legitimidade podem ter, como teorizado por Habermas e descrito por Rosanvallon, repercussões na própria ossatura social das diferentes formas de constituição da modernidade. Afinal, os processos de legitimação são fundamentais em sociedades secularizadas, não mais dependentes de autocompreensões transcendentais.
Neste sentido estamos no epicentro de um enorme processo de deslegitimação do que o pensador elitista Gaetano Mosca do século XIX chamava de classe política (agrupamento social especializado em manter-se no poder) em Campos. Não é meu objetivo aqui discutir os limites deste corpus teórico, apenas me utilizarei desta nomenclatura em um sentido de reconhecimento da complexidade da sociedade contemporânea e do decorrente processo de constituição de diferentes especializações funcionais de atuação e, partindo do princípio de que a política não esteja além desta sociedade, também nesta possamos encontrar um agrupamento social especializado em fazer da política especificamente um meio de vida. Então, para Campos dos Goytacazes, defendo que esta noção de “classe política” possa ser aplicada dadas as características desta em que encontra-se um descomunal vácuo programático, com baixa alternância de poder em sua história recente (o mesmo grupo há 20 anos no poder) e, evidentemente, onde estruturam-se enormes redes clientelistas e anti-republicanas expressas, por exemplo, nos precários vínculos de trabalho no poder local onde exerce-se no cotidiano uma gramática anti-meritocrática. Isto nos faz interpretar que majoritariamente a classe política local, mormente fisiológica e justamente por conta disto, tenha o espaço “político” como meio de vida. E não muito mais do que isso.
A desligitimação desta classe política decorre das imputações morais provenientes da ventilação, em mídia aberta hegemônica ou alternativa, das investigações e acusações sobre o legislativo e o executivo local. Já é de conhecimento geral agora de que TODOS os vereadores de Campos dos Goytacazes serão indiciados pelo Ministério Público. No executivo, mesmo com permanência do prefeito Alexandre Mocaiber este sofre mais uma ação pelo Ministério Público Estadual acerca de possível fraude em licitações públicas, além da acusação de formação de quadrilha. O ex-governador do estado do Rio de Janeiro, e notável quadro egresso da política campista, encontra-se também em processo de investigação pela Polícia Federal sendo acusado de ser o mentor político de pesado esquema de ilicitudes inúmeras praticadas com a insígnia da Polícia Civil do estado. Todas estas acusações/investigações encontram-se sob farta divulgação da mídia local e nacional. A despeito da polarização destas a sociedade civil debate os rumos dos acontecimentos na combalida, e pouco reflexiva, esfera pública local.
Ainda, em diferentes círculos sociais, como o do agrupamento de empresários da construção civil local, os reveses deste processo são sentidos em seus próprios bolsos. Compras de apartamentos efetuadas por indivíduos sobre suspeição não foram consolidadas causando prejuízos. Mesmo o comércio local deve estar amargando a retração decorrente dos pés de barro de uma economia alicerçada sobre critérios imprevisíveis de ação do poder local. A capacidade de atração de investimentos, no médio prazo, diante de uma classe política praticante de espoliação do patrimônio público pode trazer problemas ainda mais graves. Mesmo o crédito pode tornar-se caro, afinal, já sabemos que há muito diz-se que “a campista nem fiado nem a vista” gerando um déficit profundo de confiança no mercado local que atinge os municípios vizinhos multiplicando entre si que a moeda campista possa ser moeda podre em uma sociedade de baixa confiabilidade. Eis os resultados do chamado “custo corrupção” que grassam pela planície.
A estrutura clientelista em que parte da população encontra-se enredada, como na situação dos contratos, desfaz-se como um castelo de areia neste turbilhão de instabilidade institucional. A dança de cadeiras dos milhares de cargos comissionados geram a fúria, justificada ou não, de apadrinhados contra seus padrinhos o que nos permite vislumbrar que os custos têm se tornado altos demais para a permanência destes DAS visto que estes cargos em si são, usualmente, moeda política apenas. Os fiéis apadrinhados talvez não o sejam mais tão fiéis em muitos casos. As peças do jogo podem ser repostas, reposicionadas e descartadas de acordo com a vontade do jogador que as manipula. Eis o ponto de fragilidade desta perversa relação em que é praxe o abandono sistemático de critérios técnicos. Como na dialética do senhor e do escravo, padrinhos e apadrinhados saem deste jogo com um triste resultado de soma negativa.
Na Campos de hoje vemos falarem, a despeito do agrupamento social, em uma necessidade de “limpeza”, termo de fortes conatações simbólicas, quando se fala sobre a política e os políticos locais. Eis o sintoma da crise de legitimação que reforça a particularidade do momento histórico em que vivemos. O ônus para a política local é, em minha perspectiva, incomensurável. Afinal, epítetos como “ladrão”, “pilantrinha”, “corrupto”, “safado” são repetidos ad nauseam pelos egressos do “Muda Campos”, a despeito do lado que ocupem neste momento, o que pode gerar a tragicômica interpretação do “homem comum” que possivelmente todos estejam corretos e que a política local seja caso de polícia somente. Notável que estes epítetos são reproduzidos e incentivados por parcela da imprensa local o que só ilustra a estreiteza do debate.
É lamentável que agrupamentos que poderiam apresentar-se como alternativa, em que poderiam lutar pela herança de processos de “boa política’ ainda encontrem-se com os olhos voltados para formas de se fazer política que neste momento encontram-se condenadas pela judicialização e policialização da política local como nos lembra Vitor Peixoto. Deveriam neste momento é discutir e convencer que sua proposta e seu ethos difere substantivamente dos que até então ocupavam/ocupam o poder. Que representam o outro lado de uma classe política. Caso contrário ao homem comum restará meramente continuar no aprofundamento deste processo de deslegitimação que pode não ter retorno.
George Gomes Coutinho