sábado, 10 de maio de 2008

UENF, ideologia: notas para um debate

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Pensar a ciência e a tecnologia exige o exercício vigilante de desvencilhar-se de alusões comumente aceitas sobre as tecnologias na cotidianidade. O ideal científico nos termos atuais envolve, por um lado, áreas do conhecimento discerníveis em sistemas de classificação mais ou menos rígidos; por outro, sua pretensa aplicabilidade nas inovações tecnológicas que passam a pautar as possibilidades da ação humana.

Não há acordos prévios entre as tecnologias e seus fins, o que marca a distância entre os caminhos quase sempre tortuosos do conhecimento científico e a expectativa social diante dos seus resultados mais aparentes subjacente à ideologia cientificista. Podemos descrevê-la pela suposição de que os conhecimentos científicos em seu movimento histórico poderão oferecer a explicação plena da realidade; ou pela apreensão mitológica desses mesmos conhecimentos, entendidos como vias de acesso a um poder de determinação sobre os homens e as coisas cuja eficácia seria comparável à crença mágica em um corpus de conhecimento inviolável.

Há inúmeras dificuldades na rotinização de uma auto-análise coletiva da Universidade, particularmente no tocante a análises que tematizem a dimensão metapolítica do conhecimento científico. Sobrevive nessa instituição uma perene contradição: a busca de conhecimento atinente a visões de mundo contra-fáticas e o caráter fechado de sua organização política, quase sempre limitador dessas diferentes visões. Outra questão que merece atenção diz respeito aos aspectos de previsibilidade e controle dos instrumentos e paradigmas tecnológicos que revelam um desafio prático e teórico para as ciências sociais. Com efeito, os temas e problemas estudados pela filosofia, sociologia, antropologia, história, economia e demais disciplinas – formações sócio-econômicas, processos históricos e culturais – observam variações nas suas abordagens teóricas e metodológicas. Não apenas as ciências sociais, mas particularmente as ciências sociais, sabem que trabalham com objetos que falam, ou melhor, respondem e lidam obrigatoriamente no processo de objetivação de seu campo de estudo – os valores que orientam as práticas, saberes e falas daqueles que tomamos como “objetos”. Exercitamo-nos na dúvida, no ceticismo organizado, no comunismo que o sociólogo Robert Merton definira como o ethos do cientista quando entende seu conhecimento como necessariamente público e não mais de propriedade daquele que um dia o pensou.

Toda construção do conhecimento é inevitavelmente intersubjetiva, não apenas no que concerne à comunicabilidade entre os pares mas à interação com o pesquisado e aqui nos defrontamos com os esquemas avaliativos que orientam as relações sociais investigadas e aqueles que orientam o cientista social em seu trabalho. Não é diferente, por exemplo, quando tomamos como problema de investigação a relação entre a Universidade e a vigência de uma ordem social e jurídica.

Tendo como pressuposto uma concepção de universidade pública que, num país subdesenvolvido, teria a missão de ser geradora de ciência e tecnologia, a proposta da UENF materializa-se numa realidade muito mais complexa na qual a educação, a ciência e a tecnologia interagem numa teia de acontecimentos que caracterizam a modernidade na periferia. Mais uma vez, somente a capacidade de perscrutar a UENF sem retirá-la do mundo e das suas contradições pode explicar as virtualidades e os impedimentos do que ficou conhecido como Projeto Darcy Ribeiro, assentado numa peculiar teoria da evolução, alvo de não poucas controvérsias no campo das ciências sociais. Cabe um questionamento sobre as possibilidades de se estabelecer interfaces entre a UENF e a região Norte Fluminense, entre os ideais de ciência e de tecnologia professados na comunidade acadêmica e o espaço social sedimentado no bloco histórico que tem em Campos dos Goytacazes seu pólo tradicional.

Reconhecer tais ideais como significativos ou, sendo mais preciso, dotar-lhes de sentido não deve entorpecer o observador naquilo que “se move rapidamente”, como diz o historiador Fernand Braudel. As mediações entre as instituições sociais e as práticas instituídas não podem ser tomadas pela “medida dos indivíduos, da vida cotidiana, das nossas ilusões, das nossas rápidas tomadas de consciência; o tempo por excelência do cronista e do jornalista”, para citar uma vez mais Braudel. Os processos decisórios são indissociáveis de um campo de poder e de um campo de lutas (Bourdieu) cuja apreensão global escapa à percepção imediata – o “tempo pobre” –, desviando-nos da matéria viva do poder e do contra-poder (da liberdade): a relação entre meios e fins, que no tocante à ciência e a tecnologia podem ser traduzidas pelas mediações entre técnica e valores.

A aposta no desenvolvimento das forças produtivas a partir dos cérebros reunidos na UENF, dedicados exclusivamente a projetos de ponta no âmbito da ciência, da tecnologia e da inovação, projetara a constituição de “Centros de Ciências e Tecnologias, associados a empresas” que, juntos, promoveriam o desenvolvimento regional. A intervenção modernizante do Estado – e da Universidade Pública – na estruturação sócio-econômica do Norte Fluminense esbarrou, no entanto, em padrões materiais e morais de pouco vulneráveis aos apelos da mudança. A projeção do discurso oficial da UENF em seu nascedouro sofreu os previsíveis constrangimentos de uma ordem social que não se limita ao âmbito regional.

A Universidade como lócus potencial de concepções da mudança social é, também, forjada na lógica capitalista. O pensamento e a prática crítico-revolucionária são uma utopia se não percebidos no embate cotidiano onde cientistas, donos do capital, trabalhadores, cidadãos e governos intervêm sobre quais acordos e consensos podem ser firmados nos usos sociais da ciência. A UENF vinha com o anunciar do “terceiro milênio” mas jamais o construiria por si só.

O ideário da inovação tecnológica como resultante da interação entre a universidade e o setor produtivo local impõe uma série de desafios até hoje não solucionados pelas comunidades científicas e tampouco pelo empresariado nacional. Não menos importante é considerar que mesmo que se garanta a inovação tecnológica não se garante que tal força produtiva seja capaz de alterar padrões redistributivos face às relações de dominação em suas especificidades locais e regionais. O velho e gasto tema do desenvolvimento, embora não possa ser espantado das políticas estatais, ainda carece de rigor em sua conceituação a fim de que a universidade pública não seja desprezada, nem superestimada, em sua potencialidade de construção coletiva de um futuro menos sombrio.

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