Por Fabrício Monteiro Neves (Bill)*
Deixe-me usar as metáforas de Brand e Vítor postadas abaixo.
Doenças são objetos de angústia para homens sãos e objetos de estudo para pesquisadores da saúde. O normal é desinteressante para ambos. Para o primeiro, os cuidados só existem na eminência da doença e para os segundos sua profissão só existe em função de tais possibilidades patológicas. Esta unidade na diferença entre “o normal e o patológico” foi magistralmente discutida por Georges Cangilhem em conhecido livro de 1943, cuja conclusão defendia uma antiga concepção médica do século XIX (e filosófica, já que Nietzche a utilizou) em que os fenômenos patológicos eram iguais aos fenômenos normais correspondentes, as variações eram de ordem quantitativa, tudo seria uma questão de intensidade. Bem, intensidade é algo que só existe em relação a alguma coisa e, no caso da vida, dificilmente aquilo que se chama estado normal é algo absoluto, afinal, se está sujeito às variações de temperatura, pressão, escassez de nutrientes, etc... O que se quer dizer é que a definição entre o normal e o patológico corresponde a determinados arbítrios, no caso da medicina, ao consenso científico que esse estabelece no seio da comunidade médica (sujeita aos conflitos de paradigmas divergentes, inclusive). E no caso da política, como a relação entre o normal e o patológico ou entre a crise e a normalidade se estabelece?
Penso em vários fenômenos políticos recentes, que se tornaram “fatos políticos”, “fatos jornalísticos” e “fatos científicos”: Crise política é o “fato” por excelência da política, da mídia e da sociologia, é o “fato” que permite falar de “ordem política”, “receita de bolo” e “ordem social”, já que é o contraste disso, o patológico, que nos permite falar da norma, ou vice-versa. A questão é menos uma questão de descobrir a crise ou de medir sua intensidade quanto de falar daquilo que a criou. Oposições criam crises já que a normalidade é amiga da situação: a medida da patologia construída pela oposição é mais exagerada daquela feita pela situação. A medida dos jornalistas segue o mesmo, porém, neste caso, há outros elementos envolvidos, por exemplo, a ligação de um periódico com o governo correspondente ou sua total discordância, embora se saiba de casos de mudança de opinião em função dos eleitores (leitores). É Claro que a situação também cria crises: colocar a polícia federal a serviço delas é uma boa forma... Crises e estados patológicos ligam-se ao seu tempo, no segundo caso ao estado da ciência no momento do diagnóstico e, no primeiro, ao estado das forças políticas, do embate entre elas. Podem-se criar crises com uma tapioca, assim como não criá-las com consumo exagerado de caviar ou transações nebulosas nas vendas de estatais.
No caso da medicina, o restabelecimento do estado normal segue aquilo que é definido como normal em contraste com o patológico, definição relacionada ao estado da arte da disciplina naquele momento: a determinados padrões de temperatura e pressão, formação tecidual, etc.. No caso da política não é tão simples. É possível que os padrões do momento da crise continuem os mesmos e a crise acabe, por exemplo, pela cooptação da oposição... É possível também que tudo mude, melhorando inclusive em relação à ordem anterior, e que a crise continue já que para a oposição isso é vantajoso e para o editor de tablóides, lucrativo. Criar crises, aumentar ou diminuir sua intensidade, está em razão da maneira como se constituiu, nas sociedades modernas, o mercado político e jornalístico: a crise, assim como a patologia, como nos mostra Cangilhem, não apresenta uma dimensão ontológica, sendo tão somente construções sociais.
Isso nos dá uma responsabilidade absurda já que não há uma realidade fora de nossas escolhas: elas são o ponto arquimédico da existência ou não da crise, em qualquer mercado. Escolhas porém se assentam sobre princípios e fins. Pode ser que aquilo que nos leva a escolher seja tão somente vender mais jornais, ou aniquilar a oposição, ou conseguir um emprego, ou, ainda, mudar o mundo (e isso às vezes não é antagônico). O Le Monde vendeu muito em maio de 68... Como um estado patológico, o estado de crise pode ser um estado de transformações generalizadas.
Deixe-me usar as metáforas de Brand e Vítor postadas abaixo.
Doenças são objetos de angústia para homens sãos e objetos de estudo para pesquisadores da saúde. O normal é desinteressante para ambos. Para o primeiro, os cuidados só existem na eminência da doença e para os segundos sua profissão só existe em função de tais possibilidades patológicas. Esta unidade na diferença entre “o normal e o patológico” foi magistralmente discutida por Georges Cangilhem em conhecido livro de 1943, cuja conclusão defendia uma antiga concepção médica do século XIX (e filosófica, já que Nietzche a utilizou) em que os fenômenos patológicos eram iguais aos fenômenos normais correspondentes, as variações eram de ordem quantitativa, tudo seria uma questão de intensidade. Bem, intensidade é algo que só existe em relação a alguma coisa e, no caso da vida, dificilmente aquilo que se chama estado normal é algo absoluto, afinal, se está sujeito às variações de temperatura, pressão, escassez de nutrientes, etc... O que se quer dizer é que a definição entre o normal e o patológico corresponde a determinados arbítrios, no caso da medicina, ao consenso científico que esse estabelece no seio da comunidade médica (sujeita aos conflitos de paradigmas divergentes, inclusive). E no caso da política, como a relação entre o normal e o patológico ou entre a crise e a normalidade se estabelece?
Penso em vários fenômenos políticos recentes, que se tornaram “fatos políticos”, “fatos jornalísticos” e “fatos científicos”: Crise política é o “fato” por excelência da política, da mídia e da sociologia, é o “fato” que permite falar de “ordem política”, “receita de bolo” e “ordem social”, já que é o contraste disso, o patológico, que nos permite falar da norma, ou vice-versa. A questão é menos uma questão de descobrir a crise ou de medir sua intensidade quanto de falar daquilo que a criou. Oposições criam crises já que a normalidade é amiga da situação: a medida da patologia construída pela oposição é mais exagerada daquela feita pela situação. A medida dos jornalistas segue o mesmo, porém, neste caso, há outros elementos envolvidos, por exemplo, a ligação de um periódico com o governo correspondente ou sua total discordância, embora se saiba de casos de mudança de opinião em função dos eleitores (leitores). É Claro que a situação também cria crises: colocar a polícia federal a serviço delas é uma boa forma... Crises e estados patológicos ligam-se ao seu tempo, no segundo caso ao estado da ciência no momento do diagnóstico e, no primeiro, ao estado das forças políticas, do embate entre elas. Podem-se criar crises com uma tapioca, assim como não criá-las com consumo exagerado de caviar ou transações nebulosas nas vendas de estatais.
No caso da medicina, o restabelecimento do estado normal segue aquilo que é definido como normal em contraste com o patológico, definição relacionada ao estado da arte da disciplina naquele momento: a determinados padrões de temperatura e pressão, formação tecidual, etc.. No caso da política não é tão simples. É possível que os padrões do momento da crise continuem os mesmos e a crise acabe, por exemplo, pela cooptação da oposição... É possível também que tudo mude, melhorando inclusive em relação à ordem anterior, e que a crise continue já que para a oposição isso é vantajoso e para o editor de tablóides, lucrativo. Criar crises, aumentar ou diminuir sua intensidade, está em razão da maneira como se constituiu, nas sociedades modernas, o mercado político e jornalístico: a crise, assim como a patologia, como nos mostra Cangilhem, não apresenta uma dimensão ontológica, sendo tão somente construções sociais.
Isso nos dá uma responsabilidade absurda já que não há uma realidade fora de nossas escolhas: elas são o ponto arquimédico da existência ou não da crise, em qualquer mercado. Escolhas porém se assentam sobre princípios e fins. Pode ser que aquilo que nos leva a escolher seja tão somente vender mais jornais, ou aniquilar a oposição, ou conseguir um emprego, ou, ainda, mudar o mundo (e isso às vezes não é antagônico). O Le Monde vendeu muito em maio de 68... Como um estado patológico, o estado de crise pode ser um estado de transformações generalizadas.
*Fabrício Monteiro Neves é sociólogo, graduado na UENF, e doutorando em sociologia na Universidade federal do Rio Grande do Sul
6 comentários:
Olá Fabrício, quanto tempo amigo!? Então andas pelas bandas do Sul che? Rapaz... esse blog tem me oportunizado momentos nostálgicos! É bom poder trocar algumas palavras com vocês, ainda que seja via internet.
Companheiro... parabéns pela carreira acadêmica e pela análise rica, sóbria e dialética que acaba de fazer do cenário social e político que vivemos. Em certo sentido você continua o mesmo heim? análises profundas, complexas... Faz-me lebrar dos projetos de iniciação, da auto-organização do universo etc. Discordavamos muito, é verdade, mas sempre com muito respeito e admiração.
Bem, quanto ao artigo, pelo menos dessa vez, não vou discordar de você, pode ficar tranquilo!!! (brincadeira)
Falando sério, acho que sua abordagem nos leva a outro nível de análise onde os modelos simples e simplificadores de explicação da realidade não encontram mais lugar. O debate promete!
Um grande abraço.
Manoel M. Caetano Jr
ô Manoel, já fazem bons 8 anos, mais ou menos... Éramos os loucos por fazermos parte do LCC, lembra? haha. Mas afinal o que é o normal e o patológico, não é mesmo? abraço.
Muito lúcido xará, as patologias se tornam o toque de caixa da agenda política enquanto nao se compreende que são efeitos de um processo histórico cuja aparencia de normalidade sempre anula seus paradoxos.
É Bill velho de guerra....
Concordo com o Manoel... Importante o resgate da dialética em sua análise ao desconstruir as noções de crise/patologia/normalidade.
Mas em última instância ao término do seu texto o que senti foi a proximidade de algo próximo do abismo por não conseguir sequer vislumbrar qualquer resposta sobre o que nos aguarda quando a "normalidade" retornar.
Grande george!
Cara, Eu tendo a concordar com o Vítor, acho que melhoramos. Acho, porque o que nos temos para sanar crises institucionais está melhor hoje, como a atuação da polícia federal... acho que esta vai cada vez mais se distanciando de seus resquícios da ditadura e assumindo seu papel em uma democracia liberal... No fim do texto tento passar a idéia vitalista das transformações em cascata. Até um blog a crise já criou! abração.
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