quinta-feira, 17 de abril de 2008

Sobre royalties e razão pública – o que é fazer da sociologia um esporte de combate? - Parte Final

A chamada razão pública, em uma inspiração kantiana e re-visitada por diferentes tradições liberais contemporâneas[1], não é pertinente a um suposto mundo irreal e transcendente composto igualmente por humanos não existentes. Razão pública é aquilo que se manifesta no momento de debates acerca de bens essenciais em que, por motivações intrínsecas, exige para a sua legitimidade o filtro de debate público. É um princípio perfeitamente pragmático não transcendental e pode ser reivindicado diante da defesa de algo que podemos compreender como “bem comum”.

Prosseguindo, neste(s) debate(s) publico(s), mediante procedimentos discursivos assegurados constitucionalmente e defendidos pela coletividade, em que grupos de pressão vigiam uns aos outros e abertamente competem entre si, temos um desfecho simples de ser compreendido: o triunfo do melhor argumento, ou ao menos o triunfo de algum tipo de convencimento consensuado obviamente entre as partes. Não há acordo se as partes não consentem sobre este, base sob a qual constitui-se a razão pública.

Notório é que estes procedimentos nem sempre resultam nos melhores resultados, não há aparato perfeito. Mesmo o “gigante”[2] de Königsberg, Immanuel Kant, asseverava que “de madeiro tão torto que é o homem nada de muito reto pode se esperar dele”. A grande questão, que me interessa para fins deste pequeno ensaio, é que se aplicarmos especificamente a premissa da “razão pública” sem peias aos agrupamentos sociais que até então “dominaram a caneta” ou que “dominam a caneta” estes encontram-se sob péssimos lençóis.

Vamos aos fatos. Pela explicação resumida por Roberto Moraes em seu blog, os royalties devem ser compreendidos como um bem compensatório visando amortizar, dado que por motivações eminentes a atividade produtiva petrolífera em si deixa seqüelas sob a forma de profundos impactos sociais e ambientais. Incluso que há também os problemas econômicos dado que o petróleo, por conta de sua vultuosa quantidade de riqueza, atinge em cheio a cadeia produtiva local gerando, por conta deste volume de dinheiro, aumento substantivo do preço de bens e serviços. Ainda há a questão geracional, daí este caráter compensatório, dado que a economia do petróleo fundamenta-se em um bem escasso que em algumas décadas irá findar.

Todavia a utilização dos royalties não observou aplicações substantivas no campo social, ambiental, econômico e social. Quando o fez foi exíguo. Irei citar dois exemplos que sem dúvida são insuficientes para avaliar uma lei como um todo, a de distribuição de royalties, mas, ainda podem ser exemplos ilustrativos para o esclarecimento desta questão. No ano de 2007, em Campos dos Goytacazes, a educação fundamental obteve, segundo ranking proposto pelo Ministério da Educação (MEC), a nota de 2,9. Esta nota fez com que a cidade figure como a dotada do pior ensino fundamental no estado do RJ. Isto já resume bem o problema “geracional” e não trata-se aqui de uma posição esculpida apenas pelo último governo. Profissionais estudiosos especificamente de políticas educacionais afirmam que resultados nesta área apresentam modificações apenas no médio prazo, algo que só aumenta a responsabilidade de gestores anteriores.

Um outro dado interessante é no campo da logística e também no da qualidade de vida. Irei me utilizar de uma análise que é transversal mas que nos ajuda a entender o tamanho do problema. Campos dos Goytacazes, segundo análises do Movimento Nacional de Direitos Humanos (RHDH), é proporcionalmente a terceira colocada no ranking de trânsito mais violento do Brasil (dados disponíveis mais uma vez no blog de Roberto Moraes aqui). Possivelmente para o imbróglio “trânsito”, caótico e que aumenta tempo de deslocamento da força de trabalho além de inúmeras dificuldades envolvidas neste deslocamento, não foram exatamente dissolvidas pela aplicação de royalties.

Tudo isto a despeito da proporção crescente inegável ocorrida na participação dos royalties nos orçamentos municipais, exemplo quase paradigmático sendo o de Campos dos Goytacazes, onde tivemos os dados negativos anteriores além da conseqüente desastrosa política anti-epidêmica (?!?) no surto de dengue ainda vivido que não comentarei neste post. Também não irei citar a posição de número 1808 (?!?) no Atlas de Desenvolvimento Humano do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) referente ao já longínquo ano de 2000.

Retomando o debate ilustrado pelo conceito complexo de razão pública. O petróleo é um bem essencial para as economias capitalistas e é sob a imagem e semelhança deste que o modo de produção hoje se movimenta, se alimenta e se autocompreende. Sob este, e em sua nefasta utilização, há debates sendo desenvolvidos no espaço público onde ambientalistas ou não alertam acerca do aprofundamento de uma série de desequilíbrios macro decorrentes da utilização de combustíveis fósseis. Portanto qualquer tipo de receita que retorne para o público que o produziu, cientes que somos das profundas cicatrizes deste processo, devem ser pensadas para além de debates ossificados no campo do direito positivo, onde vemos bradar “que se cumpra a lei” se esta já não cumpre faticamente quaisquer critérios de uma racionalidade substantiva.

Também sustento que critérios “técnicos” são insuficientes para determinamos a forma com que os royalties devem ou não ser repartidos. Qualquer tipo de repartição geográfica é em última instância decorrente de convenções e anexas a determinados paradigmas que são, antes, socialmente construídos. A questão geográfica deve ser parâmetro inicial. Todavia falta um elemento a este pois ele define onde principia o direito apenas.

O argumento particularista/bairrista é o “pior dos mundos” pois ele simplesmente nega ao outro acesso a bens e recursos que também poderiam ser essenciais para o seu desenvolvimento. É essencialista, pré-reflexivo e pré-político pois crê que não necessita de justificação para sua reivindicação. Ainda, no caso de todos os argumentos e advertências encetados pelo poder local, que em última instância objetivaram a “razão pública” na arena campista, o argumento bairrista desaba fragilmente sobre si mesmo pois não se sustenta.

Se formos utilizar qualquer princípio de “bem comum” atinente à razão pública devemos dizer que estes recursos passaram a quilômetros. Retomando, os estudos e análises já produzidos pela inteligência local são duros e não mentem. Portanto, pelo “bem comum” não há porque estes recursos, ressaltando sua escassez, por aqui continuarem ingressando impunemente sem que de fato tenhamos critérios de eficiência de aplicação.

Uma proposição. Reconhecendo, mais uma vez, que não há arranjo perfeito, eu diria que no espírito de um “bem comum” eu apoiara, como cidadão, a proposta do senador federal João Pedro (PT- AM) que defende a aplicação deste recurso compensatório exclusivamente na educação. Cabe lembrar que no Brasil temos uma das mais baixas taxas de jovens, em idade estudantil, freqüentando as universidades se compararmos somente com a América Latina. Se os royalties participassem deste processo, gerando mão de obra qualificada e estofo crítico, minha reivindicação de “razão pública” neste breve esforço de análise sociológica fundidos com determinados princípios de filosofia política já se daria por satisfeita.

Por fim devemos nos livrar terminantemente dos argumentos de impacto sobre a economia local no curto prazo para o bem desta. Reitero que uma economia local “consolidada” sob pés de barro é uma monstruosidade para com a população anexa. Para a economia local devem-se buscar soluções realmente sólidas e não remendos, a despeito do tamanho destes, como os royalties prosseguem sendo.

George Gomes Coutinho – sociólogo e doutorando em sociologia política pela UENF



[1] Refiro-me aqui especificamente a definição proposta por John Rawls em “O liberalismo político” lançado no Brasil em 2000 e originalmente nos EUA em 1993.

[2] As más línguas dizem que sua estatura física era, em verdade, baixa. Portanto “gigante” aqui é uma figura de linguagem.

9 comentários:

xacal disse...

Ok George, mas se a lógica é essa, vamos então discutir os royalties da mineração que a Vale paga aos municípios da Amazônia, que se não me engano, têm distorções iguais ou piores que as nossas, resguardads aí, lógico, as diferenças de acumulação de riquezas durante o curso da História....

Penso que esse argumento que procura retirar recursos sob o argumento do desperdício e má gestão é muito semelhante a tese da predestinação dos EEUU acerca do Iraque...ou seja, aqueles malucos não podem continuar sentados sobre "nossa" gasolina...

Há ainda o assédio estadunidense sobre a Amazônia com argumentos parecidos, de que tais recursos naturais são de todo o mundo...

Mas porque não discutir as florestas e riquezas minerais deles também sob a ótina humanista universalista...?

Não é SP, ou qualquer outro grupo que "legitimará" nossa gestão dos recursos, somos nós que devemos cumprir essa tarefa...

bill disse...

Ainda acho que esta discussão reproduz o fado histórico da exploração natural com prazo de validade condicionando o prazo das instituições...Campos se acomoda sobre tais vultuosas somas. A serra gaúcha não produz só vinho, e mesmo assim este é produzido por pequeníssimas propriedades. Há toda uma atmosfera de aprimoramento técnico, busca de qualidade, busca de canais de comércio, formação de grupos de interesses, entre outros. isso acaba condicionando outras esferas, inclusive a econômica, em um círculo virtuoso de reprodução institucional e econômica. Os cículos do preço do vinho, das frutas, do turismo não prejudicaram ou arrefeceram a vida cívica tão por aqui badalada. Campos carece de deste "capital social", acostumou-se a verticalidade em todos os seus níveis.

xacal disse...

Iss é verdade, e a experiência de ocaso econômico da elite rural não produziu uma nova ordem sócio-política-econômica horizontal...

Com a injeção de tantos recurso, houve a prefeiturização das relações sócio-político-econômicas, que gerou uma casta de funcionários do politburo...

nessa nova verticalização, toda a atividade econômica foi transferida para o arbítrio dessa ou aquela gestão, e os poderosos de antes trataram de se submeter as novas regras do jogo, mesmo que isso significasse abrir mão do mando...

Campos ainda não experimentou uma forma autônoma de economia, pois veja que a atividade sucro-alcooleira sempre esteve vinculada a benesses governamentais...

Não é à toa que apenas o setor de serviços ampliou suas atividades, embora também dependente de acertos com os novos donos do poder...

George Gomes Coutinho disse...

Prezados Xacal e Bill,

Ainda atordoado pelos abalos de grande monta na estrutura institucional de Campos depois de ontem me sinto um pouco desconfortável a falar sobre razão pública e bem comum. Pelo que vi ontem acho que só reforça a questão de que temos recursos que não deveriam estar por aqui, circulando nas mãos de quem circulará (e circula).

Vou aos pontos:

a) Xacal, eu jamais utilizaria o debate sobre eficência sobre o uso de recursos para elaborar a justificação de quebra de soberania (única garantia institucional do direito internacional, que vive aind ano estado de natureza, de que o mais fraco não sucumba ao mais forte). E também reconheço que a minha proposta só encontra eco em países com uma base linguístico-jurídica-institucional comum. A releção USA e Iraque é truculenta e ponto. Todavia a distribuição de recursos escassos tem a necessidade de regras claras sobre estes. O que proponho é a centralização destes recursos em momentos de improbidade (te lembra algo?) ou em casos da mais profunda inadequação de usos que poderia ser averiguado ao acompanhar a série histórica de determinados índices de fácil acesso (IDH, ìndice de indigência da FGV, etc);

2) Concordo com o Bill mais uma vez. As elites locais, como demonstrado por excelente artigo do Xacal, são modernas e perversas. Na ausência de capital social, que pode ser uma variável a se pensar na distribuição de royalties, encontramos a barbárie que já estamos nos acostumando a ver: política e polícia nas mesmas páginas dos jornais;

3)O último comentário de Xacal reforça meu argumento em prol de uma economia que não seja "fictícia", como esta sustentada pelos royalties. O argumento não é anti-capitalista. É pró mercado vejamos!

Abçs ainda atônitos.

George Gomes Coutinho disse...

Minha pergunta neste momento é: como a justiça reconduz ao cargo um senhor que neste momento não goza de qualquer legitimidade política para tal mediante algum tipo de filigrana jurídica?

Será que teremos uma resposta plausível para isso?

xacal disse...

Bill,

A existência de uma unicidade institucional, jurídica e lingüística que presumiria a possibilidade de uma intervenção para cessar os desvios e redimensionar a distribuição de recursos é tão arbitrária quanto a relação EEUU x Iraque, que não se esqueça, detêm sobrerania, mas respondem, ou pelo menos deveriam, respeitar uma ordem jurídica internacional, que regula a relação em temas universais...

Ora, embora estados e municípios não detenham soberania, a autonomia entre entes federados é que consolida nossa forma de organização...

SP tem uma atitude tã impreialista quanto os EEUU em realação ao resto do país (lembra 1932?)...

Claro que utilizei uma alegoria teórica para exemplificar, me desculpe se foi muito reducionistas, mas em tese, violências e intervenções, assim como "ações predatórias", às vezes são mais graves em territórios com a unicidade institucional e lingüística do que entre entes estrangeiros...

Se há algo bom nessa celeuma é o nível do debate..deveríamos publicar uns cadernos para compilar esses textos: Planos da planície...

xacal disse...

perdão: atitude imperialista...

bill disse...

Xacal,

Vc me lembra os gaúchos... Eles têm um recalque muito grande em relação ao sudeste (é claro que este não é o seu caso): "São Paulo isso", "Rio aquilo", "aqueles nordestinos..." e estas outras expressões que reproduzem uma imagem reificada sobre a discussão política... Na política real não há "véu da ignorância" e acho muito normal que se lute cada um pelo seu quinhão, quando, é claro, se garanta condições mais ou menos iguais de fala. Acho que há muita análise levando-se em conta relações espúrias (São paulo fez isso, Rio fez aquilo...) tirando nossa própria parte do sistema causal. Nada mais exemplar do que Campos, meu amigo.

Obs. Concordo também com o nível do debate...

xacal disse...

Meu caro, não é recalque...
É apenas uma referência, e é claro, que boa parte de nossas agruras, campistas, fluminenses e brasileiras são resultado das opções que fazemos, e principalmente, das nossas "elites"...

Mas desconsiderar o componente dominador de certas oligarquias, e centros de poder em relação às suas periferias também é mistificação...

Tanto é assim que com o governo atual, em Brasília, nossas perspectivas apontam em rumo diferente, mas os países dominantes se mexem para manter seu quinhão, conquistado, na maioria das vezes, com interferência mediatas ou imediatas...