sábado, 12 de abril de 2008

A preguiça da imprensa


O jornal O’GLOBO publicou no domingo último 3 páginas inteiras sobre “avaliações” do Programa Bolsa Família por meio da PNAD. Na página 18 de “O PAÍS” a manchete é bastante interessante “Entre os mais pobres, metade não tem bolsas”. Poder-se-ia dizer ser apenas uma questão de otimista/pessimista, para uns o copo está meio cheio, para outros meio vazio. Mas se prestarmos atenção nos dados divulgados, podemos ter uma pequena aula de como mentir com dados.

Existem três formas básicas de se avaliar um programa social de transferência de renda. A primeira forma de avaliação seria relativa à extensão do programa (ou alcance). Nesse caso, deve-se investigar a proporção de indivíduos que cumprem os requisitos mínimos que estão incluídos no programa. Ou seja, a pergunta que se pretende responder é: qual a proporção de público alvo foi atingida pelo programa? Para isso deve-se “fechar” o percentual na variável “RENDA”.

A própria matéria traz os seguintes números: 54,3% dos pobres estão incluídos no programa. E isso representa nada menos do que 18% da população total. Mas a manchete era de que METADE dos pobres estava fora do programa! Ora, pode-se até ser pessimista, o que não se pode é deturpar, pois 45,7 não é metade. Se o fosse, não teríamos segundo turno em 2006, Lula teria ganhado no primeiro turno!

O segundo critério é quanto à focalização do programa. Para isso deve-se investigar o percentual de pessoas incluídas no programa que cumprem os requisitos mínimos, ou não. A pergunta que se coloca é: o programa acerta os alvos precisamente? Em termos simplórios, a tabela deve “fechar” 100% na variável BF para que se possa verificar se existe não-pobres recebendo o benefício. Isso sequer não foi realizado pela matéria do jornal em questão, apenas foi tocada na entrevista do Eduardo Rios-Neto. Mas como o especialista elogia o programa e ainda recomenda o aumento do valor do benefício, isso não foi explorado na matéria (muito menos daria manchete). Nesse quesito, talvez apenas o PROER tenha tido maior sucesso que o Bolsa Família!

A terceira se refere às conseqüências do programa. A pergunta que norteia essa questão é: o que acontece com os indivíduos que foram incluídos no programa? Para isso não basta focar somente nos indivíduos atingidos pelo programas, há a necessidade de compará-los com o chamado grupo de controle (nada mais do um grupo que possui as mesmas características, renda, cor, escolaridade etc., mas que estão fora do programa). Isso se aprende em qualquer manual de metodologia científica adotado pelos cursos de graduação. Esse passo não foi realizado e, a partir de então, toda a matéria se focou numa comparação espúria.

A entrevista do Eduardo Rios-Neto traz informações de que o BF aumentou a freqüência escolar, aumento o consumo de alimentos, roupas e material escolar. Portanto, dados existem e pesquisas foram realizadas. Mas como dados positivos não são importantes para o jornal, foram completamente omitidos.

Os crassos equívocos da matéria não param por aqui. Insistindo em comparar fenômenos não-comparáveis (sem um grupo de controle e com faixas etárias distintas de um ano para outro), o jornal se refere a um suposto “efeito-preguiça” do BF. Em outros termos, o pobre que recebe benefícios do programa não procura emprego. Pois bem, impressionantemente, os dados se referem aos jovens entre 14 e 17 anos. Ora senhores, nessa faixa etária, o que se espera é exatamente que os que estejam ocupados sejam desocupados de forma que os possibilitem freqüentar a escolar. Essa é exatamente uma das intenções do programa! O jornal não somente inverte os objetivos como deturpa a fala de uma técnica do Ministério de Desenvolvimento Social supostamente afirmando que esse seria um efeito perverso e não-esperado do programa.

Que fique aqui não uma desconstrução de uma matéria jornalesca, mas um alerta para a própria imprensa de que nós leitores não somos meros receptores das (des)informações publicadas. Somos dotados de capacidades reflexivas o suficiente para julgar o que recebemos e possuímos memória para levar fatos como estes para futuros julgamentos.

O papel da imprensa num sistema democrático não pode se resumir a uma postura simplista de ataques a todo custo a quem está no governo. Aqui não se cobra imparcialidade, mas sim responsabilidade, pois numa Democracia os resultados das políticas não são de responsabilidade exclusiva do seu executor (o ESTADO), mas sim compartilhada com seus críticos. Pois são destes que se esperam os apontamentos de correção – tão importantes quanto à execução. Corrigir o certo é tão nocivo quanto se elogiar o errado.

Ao inventar o que não existe e deturpar o existente a imprensa brasileira comete um crasso equívoco, por preguiça principalmente, em não apontar os erros e acertos das políticas públicas. Às vezes por incapacidade, às vezes por má-fé, a imprensa prevarica por não cumprir o papel do crítico de correção.

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