quinta-feira, 17 de abril de 2008

Financiamento de campanhas: entre oximoros e Hidras de Lernas

Difícil imaginar qual(is) ponto(s) da tão falada reforma eleitoral seria(m) o(s) principal(is). São tantas questões e tantos pretensos protagonistas, que o debate se perde em um emaranhado de falsos dilemas, e pior: comandado por pseudo “especialistas”. Ao menos um aspecto parece ser comum entre os “entendedoristas” de plantão: o posicionamento de ser “contra tudo que aí está”. Sob um sistema de causalidade ininteligível, surgiram propostas das mais variadas estirpes, às vezes mais de uma pelo mesmo deputado. Desnecessário seria dizer que o resultado desta confusão não corre o mínimo risco de dar certo.

Para restringir esta análise somente ao sistema de financiamento de campanhas, despontou uma proposta digna de nota, qual seja, um mix de financiamento público e privado, em que as campanhas para os cargos proporcionais seriam financiadas exclusivamente pelo último (por pessoas físicas e jurídicas), enquanto que as campanhas para os cargos majoritários seriam financiadas somente pelo primeiro (público). O que os grandes “engenheiros institucionais” se esqueceram (será esquecimento?) é o fato de que as distintas campanhas acontecem no mesmo período e, obviamente, se auto-influenciam – quem duvidar que correlacione a proporção de votação em legenda dos partidos com seus resultados para os cargos majoritários das últimas eleições nacionais.

Os efeitos perversos ocasionados por este sistema seriam vários, mas vale destacar a presumível utilização das campanhas proporcionais para arrecadar fundos destinados aos cargos majoritários – sendo que os partidos já teriam recebido os recursos dos contribuintes para esta finalidade por meio de financiamento público. Mesmo que estivéssemos a tratar de candidaturas de anjos franciscanos, esta transferência seria inevitável, pois, a lei eleitoral obriga que os candidatos aos cargos proporcionais se refiram em suas propagandas aos candidatos aos cargos majoritários.

Trocando em miúdos: as campanhas eleitorais continuariam sendo “patrocinadas” por financiadores privados direta ou indiretamente, e teriam um aporte do Estado ainda maior do que hoje já existe. Exemplo clássico é a transferência de recursos indiretos através do horário eleitoral, que só é gratuito para os partidos. Pode ser defender como justo, pois faz parte do custo da democracia e visa garantir a mínima competitividade do sistema partidário. Mas não é gratuito. O contribuinte paga.

Dentre os 111 países que analisei em dissertação defendida no IUPERJ em 2004 (“Votos valem quanto pesam? O impacto do Financiamento de campanhas eleitorais no Brasil”), o Brasil é um dos países que mais impõem restrições regulatórias sobre as fontes de financiamento privado.

Em 39 países, sequer existe um sistema organizado de regulação das campanhas eleitorais. No Brasil, tanto os partidos quanto os doadores são obrigados, pela legislação, a declarar movimentações financeiras de cunho eleitoral. Há proibições para doações oriundas de sindicados (trabalhadores e patronais), empresas estrangeiras, concessionárias de serviços públicos etc. Enfim, há um sistema e há um órgão do judiciário responsável pela regulação (TSE e TRE's).

A simples obrigação dos partidos em prestar contas é observável em apenas pouco mais da metade dos casos (59 países). Entretanto, em 42 deles, a responsabilidade de dar informações é, exclusivamente, dos partidos políticos. Isso para não citar os países que sequer proíbem doações anônimas (apontadas pelos analistas como as fontes de financiamento de narcotraficantes em muitos países latinos). São não menos que 63 casos que permitem doações sem que seja declarado o doador, e o Brasil está fora destes.

Destarte, não serão por meio de regras ainda mais proibitivas que se resolverão os problemas de intervenção dos grupos organizados na política, muito menos os casos de corrupção. Proibir sem fiscalizar só é válido para atividades religiosas. O Papa, o Bispo, o Reverendo, o Pai de Santo, o Rabino e demais líderes religiosos podem pedir ética e moral. Ao Estado cabe fazer cumprir as leis (Law enforcement). Seja criando mecanismos que diminuam a probabilidade de impunidade, seja aumentando os custos da punição. Em não se tratando de anjos, nada valerá impor ainda mais regras proibitivas e não assegurar que elas sejam efetivamente aplicadas aos transgressores.

O que não significa afirmar que o sistema atual é o melhor possível. Há sim necessidade de se corrigir equívocos regulatórios do sistema de financiamento em vigência, que utiliza tanto fontes públicas (direta ou indiretamente) quanto privadas para ambos os cargos.

Entretanto, por que não propuseram a fixação absoluta dos limites aos doadores e aos partidos? Hoje os limites aos doadores privados são relativos ao faturamento auferido no ano anterior (2% e 10% para pessoas jurídicas e físicas, respectivamente). Por que não estabelecer um limite absoluto único, em que cada um pudesse doar até aquele patamar? E mais, e pior: os limites impostos arrecadadores são determinados por si próprios no início da campanha. Por que não impor aos partidos um limite único para cada campanha?

Outro ponto é a prestação ser realizada somente após as eleições, o que se constitui em um obstáculo tanto à informação dos eleitores, quanto ao eficaz controle do próprio TSE. Caso uma conta de campanha seja rejeitada, pode causar danos irreparáveis aos cálculos de cadeiras num sistema eleitoral proporcional. Pode-se até cassar o mandato de um candidato, mas os efeitos para a distribuição proporcional já foram ocasionados. Se um candidato é cassado, quem assume é o seu suplente pertencente ao partido (ou à coligação). Mas o partido que foi beneficiado pelo desvio de conduta daquele candidato não perde aquela cadeira. Em alguns casos, se fossem refeitos os cálculos de distribuição como proponho, o partido poderia até mesmo ficar sem cadeira alguma! Em realidade isso transformaria o partido em co-responsável na prática, com punições que não se resumiriam ao pagamento de multas.

Por que não obrigar, então, os partidos e candidatos a declararem suas receitas e despesas durante as campanhas? Seria uma importante informação que estaria à disposição do eleitor para que este saiba quem está a financiar o seu candidato. Tecnicamente, seria mais um atalho informacional à disposição da accountability (que chamo de proto-prospectivo, pois se refere às futuras perspectivas do candidato). Antes das eleições há possibilidade do eleitor mudar seu voto, depois de apertada a tecla verde terá de esperar quatro anos!

Parece que se tornou moda ser reformista, mesmo que em prejuízo das regras da causalidade, propõe-se de tudo um pouco sem se ter a mínima noção das possíveis conseqüências. Surgem propostas para todos os gostos e por todos os lados, como se o sistema eleitoral fosse uma Hidra de Lerna que precisasse ser abatida a todo o custo, nem que para isso fosse necessário entregar nosso destino ao primeiro Hércules que aparecer. Ainda há até os que justificam o financiamento exclusivamente público como forma de proibir caixa dois... Ora, oximoro maior não deve haver! Receio que estes “sabidões”, um dia, enveredem-se nos estudos de violência urbana. Provavelmente, proporão uma lei que proíba assassinatos.

4 comentários:

xacal disse...

Sérgio Buarque parece bombril...
Sua obra tem mil e uma utilidades....
Por isso é tão fundamental, principalmente para iletrados como o Xacal...
Aqui, mais uma vez está presente o seu paradigma exposto no texto lá no blog...

Leis não garantem sua eficácia sem um consenso que a legitimem...

A tentativa de "apertar" o controle sobre as eleições é uma patética declaração de que tudo está sob escombros...

Mas tal providência não é gratuita, como bem sabemos...ela atende a "judicialização" da política, como forma de engessar e mediar tudo aquilo que ameace o "establishment"...

É claro que no bojo de tal "controle" figurarão algumas excentricidades dignas de punição, mas que não justificam tais gastos e prioridades dadas a situações que são desvios, mas são "vendidas" e publicadas como gênese do sistema...

Ufa...gastei toda a pilha dos neurônios...cadê meus "aceleradores de parículas"...???

VP disse...

Xacal, suas últimas linhas me fez lembrar dessa reportagem que segue:

http://www.theglobeandmail.com/servlet/story/RTGAM.20080410.wnature10/BNStory/Science/home

"Science journal finds 20% of its readers are 'doping'
Poll respondents use brain-boosting drugs to improve memory"

ANNE MCILROY

From Thursday's Globe and Mail

April 10, 2008 at 5:01 AM EDT

The prestigious science journal Nature surveyed its readers to find out how many were using cognitive-enhancing drugs, and found one in five have boosted their brain power with compounds such as Ritalin.

"Poll results: look who's doping," says the headline in today's edition of the British journal. The informal Internet survey involved 1,400 people from 60 countries. Most were from the United States, but 78, or 5.5 per cent, were from Canada.

About 20 per cent of respondents said they had tried to improve their memory, concentration and focus by taking drugs for non-medical reasons.

They were asked about three drugs in particular: Ritalin, a stimulant used to treat attention-deficit hyperactivity disorder; Modafinil, prescribed by doctors to treat sleep disorders but also used "off-label" to fight fatigue and jet lag, and beta blockers, which are usually prescribed to treat irregular heartbeats but can reduce anxiety.

The readers of the journal are mainly academics and scientists, but include people in other professions as well.

The survey was not random, but despite its limitations, the Internet poll will add to the growing debate over the ethics of popping brain-boosting pills: Do these kinds of drugs give professors and students who take them an unfair advantage? Are they putting their long-term health at risk to get that advantage? Is the practice comparable to athletes taking performance-enhancing drugs?

"Morally, it puts a disadvantage to people without access," said one American who took part in the poll.

But another respondent quoted in the article argued that taking the drugs could benefit humanity.

"As a professional, it is my duty to use my resources to the greatest benefit of humanity. If 'enhancers' can contribute to this humane service, it is my duty to do so."

The study didn't ask participants if they were researchers or students.

Brendan Maher, who analyzed the poll results for the journal, says demographic data allows for some assumptions. It looks, he says, as though about 19 per cent of the academics surveyed were using such drugs for non-medical purposes - the same percentage as the other participants, which included people working in the media and in education.

James Turk, executive director of the Canadian Association of University Teachers, says he isn't surprised by the results. Top performers in academia have a heavy workload, manage large labs and travel frequently.

He says he doubts the use of these kinds of drugs in academia is any higher than in the corporate world. It is totally inappropriate, he argues, to suggest that healthy researchers who take these drugs are somehow cheating.

"What we are dealing with is a society in which stress in work is increasingly common," he says.

Sharon Morein-Zamir, a behavioural neuroscientist at Cambridge University in Britain, says the survey may have attracted a disproportionate number of people who use the drugs.

"It tends to cluster around people who know about it. Some people are very savvy about it, either because they know other people or are aware of these topics, so within that group these numbers aren't surprising," Dr. Morein-Zamir says.

"But there are still areas where a lot of people don't know about it."

Is it fair? She says it depends on the situation. If 100 students taking a university entrance exam are vying for 25 places, those that take Ritalin could have an unfair advantage.

But when it comes to researchers and professors, she says, the issues are not as clear cut. The drugs can't provide the content a researcher needs for a grant proposal, she says, but they may help with the process of writing one.

In December, she and a colleague, Barbara Sahakian, wrote a commentary in Nature about the ethical questions raised by healthy individuals taking cognitive-enhancing drugs.

It was the strong response to that article that prompted the British journal to carry out its survey.

The most popular drug was Ritalin, followed by Modafinil and beta blockers. Slightly more than half obtained the drugs through prescriptions, while a third per cent said they ordered them over the Internet and 14 per cent said they bought them at the drug store.

There was a pretty even split between those who used them daily, monthly or weekly or no more than once a year, and people of all ages reported taking the pills. About half reported unpleasant side effects, including headaches, trouble sleeping, or feeling jittery or anxious.

*****

What they use

Methylphenidate or Ritalin

The stimulant is usually prescribed to treat attention-deficit and hyperactivity disorder, but it has become increasingly popular on university and college campuses for students trying to improve their concentration when they study. Side effects can include dizziness, nausea, vomiting, diarrhea, chest pain and shortness of breath.

Modafinil, or Provigil

It is prescribed to treat sleepiness caused by narcolepsy, but has gained popularity as a way to combat general fatigue or to get over jet lag. Side effects can include gas, constipation, back pain, sweating, itchiness, mouth sores and hives.

Beta blockers

Sold under various names, including Acebutolol (Sectral), Atenolol (Apo-atenolol) and Labetalol (Normodyne), these drugs are prescribed for cardiac arrhythmia. But because they can have an anti-anxiety effect, they are also used to quell nervousness or performance anxiety. Staff

VP disse...

Xacal, mas isso não me faz concordar plenamente com vc. Para mim as instituições são constructos humanos, e assim devem ser pensadas como efeitos. Entretanto, são capazes de mudar comportamentos através dos seus constrangimentos àção. Aqui está o cerne de minha profissão: verificar o elas produzem.

Dito de outra, são variáveis dependentes e independentes, explicadas e explicativas.

As regras eleitorais podem nos servir de exemplo, pois foram produzidas (escolhidas, moldadas, pensadas) por grupos de poder. Excelente trabalho mostrando isso é o artigo do cientista politico espanhol Joseph Colomer (tenho ele em pdf. posso te enviar) intitulado "SON LOS PARTIDOS LO QUE ELIGEN LOS SISTEMAS ELECTORALES". Todavia, constituem um sistema de estrutura de oportunidades, dado que os atores não agem num espaço ilimitado. As instituições impoem recompensas distintas para determinados comportamentos. Assim como não agem sozinhos, os resultados de suas ações dependem das ações do demais. Por isso, diz-se que são estratégicas.
Enfim, papo para outro artigo! Em breve.

Grande abraço,

Vitor Peixoto

xacal disse...

São constructos humanos submetidos a um juízo de valoração, sem o qual, nenhuma coerção ou recompensa produz efeitos...

Aqui entra meu tacanho senso jurídico:fato, valor e norma...

Mas o fato...a decisão é sempre anterior, mesmo que as instituições lá já estejam...

É a primazia da vontade...pura!