Quem nunca passou uma raiva aguardando vários minutos, quiçá horas, no balcão de alguma repartição pública ou mesmo na mesa de algum bar campista pode se considerar alguém de sorte. Mas mesmo que isto já tenha acontecido com você, é bom lembrar que pode ser o de menos. Com uma pequena dose de azar, não é nada difícil ser atropelado por algum ciclista envenenado descendo furiosamente alguma de nossas maravilhosas pontes (muitas vezes com o sinal fechado e na contra-mão, só pra apimentar a história com detalhes). Como se não bastasse, qualquer observador não muito atento é capaz de detectar rapidamente, ao vislumbrar o horizonte da planície goitacá, um nível nada desconsiderável de barulho e sujeira (o que pode ser complementado por um odor peculiar, caso você não esteja com o nariz entupido por alguma fuligem que porventura tenha vindo em sua direção).
Não é difícil elencar inúmeras explicações para estes problemas, que geralmente aparecem em cascata diante de nosso nariz (em alguns casos pode se entender isso literalmente). Por exemplo, o barulho de um trânsito desorganizado e o fluxo quase chinês de bicicletas poderiam ser amenizados com intervenções administrativas na organização do trânsito. A sujeira, claro, é uma questão de limpeza pública. Quanto ao péssimo atendimento em lugares públicos e até mesmo em várias fatias do mercado (onde em tese o cliente tem sempre a razão, só que esta quase nunca é respeitada) geralmente ouvimos falar, nos ares pseudo-críticos da planície, que se trata de frutos de uma mentalidade específica que paira sobre o cidadão goitacá (é claro que tais problemas não são privilégio nosso, mas aqui me concentro na especificidade campista). Esta seria uma mentalidade atrasada, típica de um lugar tenebroso onde a modernidade, o capitalismo, o mercado, enfim, toda esta parafernália que enche nossos olhos liberais não teria ainda chegado em medida suficiente.
Temos aqui logo de cara dois enganos, que na realidade são faces de uma mesma moeda. Primeiro, a evidente falha da administração pública, seja por má-fé ou por mera burrice mesmo (e isto pra não falar em uma perfeita combinação entre ambas) em cumprir com aquilo que não passa de suas obrigações mínimas. Por outro lado, teríamos uma população incapaz de agir eficientemente no mercado, pela ausência de uma suposta mentalidade mais moderna. Isto surtiria também efeitos nas repartições públicas, pois é o mesmo campista que age com má vontade, por ser um homus atrasadus, que ali se encontra alojado. No geral, a idéia que sutilmente predomina no “papo cabeça” campista é que falta capitalismo em Campos, como faltaria no Brasil como um todo.
Gostaria agora de tentar desconstruir este engano. A verdade é que temos muito capitalismo em Campos, um ultra-capitalismo. Todos os problemas sociais tratados aqui são inimagináveis em outro contexto econômico e social. Culpar o Estado (em suas instâncias locais) retoricamente sem forçá-lo a funcionar efetivamente, pela participação pessoal em mecanismos coletivos, como seria o caso do orçamento participativo, é algo estritamente moderno. Assim, demoniza-se o Estado, algo bem brasileiro e não apenas goitacá, e se precisa depositar esperanças em algum lugar, pois este já está amaldiçoado pelas malvadezas de políticos que provavelmente foram maus meninos quando garotinhos. Por isso só resta esperar que o mercado salve nossas almas (e nosso bolso, é claro). Como nos achamos incompetentes sem saber o porquê, a tese resolutória é simples: dá-lhe mais mercado neles, mais mentalidade moderna, mais igualdade de oportunidade. Algo extremamente moderno. E continuamos nos achando atrasados.
No fundo, o problema que podemos ver aqui está na interpretação que temos sobre nossa desigualdade social. A tese do atraso é estritamente liberal. Basta trazer empresas (é quase um gozo coletivo quando chega uma “indústria” na planície) que todo mundo fica feliz, e principalmente os políticos depois dos resultados nas urnas. Dá-lhe progresso neles. Doce ilusão. Enquanto esperamos a modernidade material e sua prosperidade não podemos nos dar conta de que a modernidade moral, ou seja, seus princípios hierarquizantes e práticas distintivas já estão aqui, pra usar um ditado natal, “fazendo a laúza” há muito tempo.
O que acontece é que as estruturas econômicas do capitalismo são implacáveis em qualquer lugar onde cheguem. Elas impõem um modo de vida guiado pelo individualismo da livre competição, sem jamais dizer por que algumas pessoas estão mais preparadas para tal guerra do que outras. Ao entrar gradualmente na planície, através da burocracia administrativa e do mercado competitivo, o capitalismo encontrou, como em qualquer lugar, um modo de vida já estabelecido. Em nosso caso, a desqualificação generalizada de enorme fatia da população, descendente de um radical contexto de escravidão, como bem sabemos, impôs uma difícil transição para a economia de mercado. O resultado pode ser visto em uma ralé gigantesca se espremendo em bicicletas sem freio na corrida (literal e simbólica) por um espaço no centro urbano para, quem sabe, lavar um carro ou vender um picolé.
Como se não bastasse, nosso super-capitalismo não pune apenas estes sobrantes que mendigam cotidianamente um espaço nas franjas de nosso mercado de trabalho, apesar de a punição maior ser sem dúvida despendida a eles. Cada um de nós paga o preço de se ter uma ralé, tanto no nível nacional quanto em nossa cidade. Isto por que sua construção é relacional, ou seja, não vivemos nosso cotidiano de privilégios sem uma desgraça paralela. Como dizia nosso maior abolicionista do século XIX, Joaquim Nabuco, toda a sociedade paga por possuir escravos, pois assim é “nivelada por baixo”. O que isto significa para nós hoje? A resposta é facilmente vista no caos que vivemos nos espaços públicos campistas, desde as ruas bagunçadas até os balcões de lojas e repartições públicas. E isto se você não for atropelado qualquer dia desses por alguma bicicleta descontrolada, conduzida por alguém desesperado em busca de seu lugar ao sol, ou mesmo por algum carro acima da velocidade com emplacamento atrasado que fugirá sem te prestar socorro (Não se trata de um trauma pessoal do autor, mas sim de um medo mudo e inexplicado compartilhado por todos nós).
Não é difícil elencar inúmeras explicações para estes problemas, que geralmente aparecem em cascata diante de nosso nariz (em alguns casos pode se entender isso literalmente). Por exemplo, o barulho de um trânsito desorganizado e o fluxo quase chinês de bicicletas poderiam ser amenizados com intervenções administrativas na organização do trânsito. A sujeira, claro, é uma questão de limpeza pública. Quanto ao péssimo atendimento em lugares públicos e até mesmo em várias fatias do mercado (onde em tese o cliente tem sempre a razão, só que esta quase nunca é respeitada) geralmente ouvimos falar, nos ares pseudo-críticos da planície, que se trata de frutos de uma mentalidade específica que paira sobre o cidadão goitacá (é claro que tais problemas não são privilégio nosso, mas aqui me concentro na especificidade campista). Esta seria uma mentalidade atrasada, típica de um lugar tenebroso onde a modernidade, o capitalismo, o mercado, enfim, toda esta parafernália que enche nossos olhos liberais não teria ainda chegado em medida suficiente.
Temos aqui logo de cara dois enganos, que na realidade são faces de uma mesma moeda. Primeiro, a evidente falha da administração pública, seja por má-fé ou por mera burrice mesmo (e isto pra não falar em uma perfeita combinação entre ambas) em cumprir com aquilo que não passa de suas obrigações mínimas. Por outro lado, teríamos uma população incapaz de agir eficientemente no mercado, pela ausência de uma suposta mentalidade mais moderna. Isto surtiria também efeitos nas repartições públicas, pois é o mesmo campista que age com má vontade, por ser um homus atrasadus, que ali se encontra alojado. No geral, a idéia que sutilmente predomina no “papo cabeça” campista é que falta capitalismo em Campos, como faltaria no Brasil como um todo.
Gostaria agora de tentar desconstruir este engano. A verdade é que temos muito capitalismo em Campos, um ultra-capitalismo. Todos os problemas sociais tratados aqui são inimagináveis em outro contexto econômico e social. Culpar o Estado (em suas instâncias locais) retoricamente sem forçá-lo a funcionar efetivamente, pela participação pessoal em mecanismos coletivos, como seria o caso do orçamento participativo, é algo estritamente moderno. Assim, demoniza-se o Estado, algo bem brasileiro e não apenas goitacá, e se precisa depositar esperanças em algum lugar, pois este já está amaldiçoado pelas malvadezas de políticos que provavelmente foram maus meninos quando garotinhos. Por isso só resta esperar que o mercado salve nossas almas (e nosso bolso, é claro). Como nos achamos incompetentes sem saber o porquê, a tese resolutória é simples: dá-lhe mais mercado neles, mais mentalidade moderna, mais igualdade de oportunidade. Algo extremamente moderno. E continuamos nos achando atrasados.
No fundo, o problema que podemos ver aqui está na interpretação que temos sobre nossa desigualdade social. A tese do atraso é estritamente liberal. Basta trazer empresas (é quase um gozo coletivo quando chega uma “indústria” na planície) que todo mundo fica feliz, e principalmente os políticos depois dos resultados nas urnas. Dá-lhe progresso neles. Doce ilusão. Enquanto esperamos a modernidade material e sua prosperidade não podemos nos dar conta de que a modernidade moral, ou seja, seus princípios hierarquizantes e práticas distintivas já estão aqui, pra usar um ditado natal, “fazendo a laúza” há muito tempo.
O que acontece é que as estruturas econômicas do capitalismo são implacáveis em qualquer lugar onde cheguem. Elas impõem um modo de vida guiado pelo individualismo da livre competição, sem jamais dizer por que algumas pessoas estão mais preparadas para tal guerra do que outras. Ao entrar gradualmente na planície, através da burocracia administrativa e do mercado competitivo, o capitalismo encontrou, como em qualquer lugar, um modo de vida já estabelecido. Em nosso caso, a desqualificação generalizada de enorme fatia da população, descendente de um radical contexto de escravidão, como bem sabemos, impôs uma difícil transição para a economia de mercado. O resultado pode ser visto em uma ralé gigantesca se espremendo em bicicletas sem freio na corrida (literal e simbólica) por um espaço no centro urbano para, quem sabe, lavar um carro ou vender um picolé.
Como se não bastasse, nosso super-capitalismo não pune apenas estes sobrantes que mendigam cotidianamente um espaço nas franjas de nosso mercado de trabalho, apesar de a punição maior ser sem dúvida despendida a eles. Cada um de nós paga o preço de se ter uma ralé, tanto no nível nacional quanto em nossa cidade. Isto por que sua construção é relacional, ou seja, não vivemos nosso cotidiano de privilégios sem uma desgraça paralela. Como dizia nosso maior abolicionista do século XIX, Joaquim Nabuco, toda a sociedade paga por possuir escravos, pois assim é “nivelada por baixo”. O que isto significa para nós hoje? A resposta é facilmente vista no caos que vivemos nos espaços públicos campistas, desde as ruas bagunçadas até os balcões de lojas e repartições públicas. E isto se você não for atropelado qualquer dia desses por alguma bicicleta descontrolada, conduzida por alguém desesperado em busca de seu lugar ao sol, ou mesmo por algum carro acima da velocidade com emplacamento atrasado que fugirá sem te prestar socorro (Não se trata de um trauma pessoal do autor, mas sim de um medo mudo e inexplicado compartilhado por todos nós).
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