domingo, 13 de abril de 2008

O cirurgião e o cientista social


Uma das perguntas clássicas da política comparada refere-se aos motivos pelos quais determinados países tornam-se democráticos e outros não. Questão não menos importante concerne à estabilização das democracias, ou seja, uma vez democráticos quais fatores contribuem para que sustentem os regimes sob regras democráticas. Aqui há uma distinção entre se tornar democrático e permanecer democrático.

Há centenas de trabalhos acadêmicos que se dedicaram ao tema. Poucos são os consensos produzidos pela literatura especializada, mesmo entre os campos homogêneos (entre os quantitativistas, por exemplo) pairam dúvidas metodológicas cruciais. A primeira delas é basilar e se direciona à definição do conceito: o que é uma Democracia? Essa questão que, à primeira vista, parece tão fácil de responder torna-se um enigma quando se tenta sair dos mundos das elucubrações para aterrissar na realidade.

Dito de outra, a operacionalização da variável democracia não é uma tarefa simples. Qualquer critério metodológico de classificação tem conseqüências devastadoras. A decisão de incluir ou excluir uma determinada característica de classificação pode fazer o cientista social comprometer todas as suas conclusões a partir de então. O conceito de democracia é apenas um exemplo dos muitos existentes nas ciências sociais, assim o é com clientelismo, com Estado, com sociedade civil, com cultura, com religiosidade, com raça/cor/etnia, com classe, apenas para citar os clássicos.

Como um cirurgião oncologista que precisa operar um paciente para retirar um tumor cerebral, o cientista social deve definir exatamente os critérios que classificarão seus conceitos. Qualquer vacilo fará o cirurgião simplesmente matar seu paciente, seja por que retirou células além das cancerígenas, seja por que não alcançou todas que deveriam ser retiradas. Menos dramático, mas não menos melindroso, é o trabalho do cientista social, pois qualquer vacilo na classificação incluirá ou excluirá casos em sua análise com possibilidade de levá-lo a conclusões enganosas.

Vejamos o exemplo da operacionalização do conceito de democracia. Além dos critérios que definirão os países que são democráticos e quais não o são, permanece outra questão acerca da gradação entre os que são democráticos e os que são ditaduras. Nesse quesito está uma decisão metodológica fundamental que influenciará os instrumentos que se utilizarão a partir de então. Caso se opte por uma classificação binária (sim ou não, 0 ou 1), ter-se-á uma variável conhecida como dummy, o que exigirá determinadas técnicas estatísticas específicas (como as regressões logísticas binárias, por exemplo).

Caso se opte por uma classificação gradativa entre os países, teremos duas alternativas: ou os países serão dispostos em uma escala ordinal (onde se distinguirá apenas quem é mais democrático do que os outros, como num gride de largada de uma corrida, mas não sabemos a distância que separa o primeiro do segundo e assim sucessivamente); ou serão dispostos num continuum que permitirá não somente saber quem é mais democrático, como também a distância que separa um país de outro, como se os países estivessem dispostos numa régua (variável contínua).

Duas alternativas possíveis com duas conseqüências distintas. A primeira levará o cientista social a utilizar as regressões logísticas ordinais (que se assemelham bastante com logística binária), já a segunda o conduzirá para uma infinidade de opções (sendo as mais comuns as regressões OLS, ordinary least square).

Com o exemplo acima tento chamar a atenção para a contextualização das decisões metodológicas, pois essas são tomadas dentro de discussão muito mais ampla do que a simples escolha de instrumentos econométricos. A definição do conceito de um determinado fenômeno traz conseqüências não somente para as técnicas estatísticas que serão utilizadas, mas também todas as conclusões do estudo sobre o fenômeno.

Um comentário:

xacal disse...

Boa questão...

Eu ainda não superei a questão do valor estratégico ou universal da democracia, confesso...

Me parece que um dos problemas principais não é estabelecer distinções entre sistemas democráticos, e sim uma referência única a partir da qual poderíamos estabelecer uma gradação...

Grosso modo, democracias mais ou menos efetivas são aquelas onde as minorias têm possibildades institucionais de, uma vez violados, reverter a supressão de seus direitos...

Onde os canais de vigilância dos excessos cometidos pelos interesses hegemônicos funcionem a contento...